I
- Introdução:
Se é verdade que o período medieval
tem sido tratado com pouca atenção pela história da filosofia, certamente é
possível afirmar que poucos filósofos têm sido tão negligenciados como o
franciscano João Duns Scotus. Dono de uma obra riquíssima, produzida durante
seus breves 42 anos de vida, o Doutor Sutil, como ficou conhecido devido à meticulosidade de seu pensamento, “foi
aquele que, entre as abordagens medievais, mais fortemente influenciou o
desenvolvimento filosófico nos séculos XVI e XVII e marcou de modo profundo a
filosofia da primeira modernidade.” (HONNEFELDER, 2010, p. 24) [1].
Com o objetivo de colaborar de
alguma maneira para o enriquecimento do debate sobre a tradição medieval, com sua
enorme influência sobre as filosofias subseqüentes, esse trabalho tenciona
apresentar uma breve introdução à teoria da univocidade do ser, desenvolvida
por Duns Scotus. Para isso, inicialmente será identificado o ponto de partida
da filosofia scotista e abordadas as questões referentes à definição do objeto
da metafísica. Em seguida, será introduzida a questão da univocidade do ser
propriamente dita, não sem antes, entretanto, o exame da teoria da distinção
formal, que lhe dá sustentação. E por
fim, será feita uma conclusão crítica com base no pensamento do filósofo
reformacional holandês Herman Dooyeweerd.
II – O ponto de partida de Duns Scotus e o
objeto da metafísica:
Para
uma compreensão mais precisa sobre a formação do pensamento de Duns Scotus, ou
mesmo do pensamento escolástico como um todo, a primeira ilusão que precisa ser
dissipada é a de que o pensamento cristão e o pensamento muçulmano pertenciam a
realidades paralelas, que não se tocavam. Isso de forma alguma é verdade. Não
se podia conhecer um sem conhecer o outro. Assim como os muçulmanos não
ignoravam o que se produzia no ocidente cristão, Avicena e Averróis constituíam
leituras obrigatórias para todo cristão que resolvesse se lançar no universo do
pensar filosófico.
Dessa forma, quando Duns Scotus,
ainda jovem, começa a desenvolver seu pensamento e se pergunta sobre o objeto
da metafísica, sabe que “duas soluções ao problema se apresentam à sua escolha:
admitir com Avicena que o objeto próprio da metafísica é o ser; admitir com
Averróis que o objeto próprio da metafísica é Deus”. (GILSON, 2010, p. 129) [2].
Seguir com Averróis não lhe pareceu
o melhor caminho. A escolha de Deus como objeto da metafísica implicaria, além
da afirmação de sua inteligibilidade, na necessidade da demonstração de sua
existência por uma ciência anterior à metafísica. Afinal, se não for suposto
que “o metafísico tenha a sua disposição a ideia de Deus ao começar sua
pesquisa, o objeto de sua ciência não pode ser o de estudá-la, mas o de procurá-la.”
(Ibidem, p. 130)
Avicena, por sua vez, afirmava que:
“Tudo quanto existe tem uma essência. É essa essência o princípio de que ela
seja o que é.” (FERREIRA DOS SANTOS, 1958, p. 165) [3].
Para ele, essa essência não era singular nem universal, já que universalidade e
singularidade são apenas determinações acidentais que o pensamento lhe atribui.
Além disso, “o modo de ser essencial antecede ao modo de ser existencial [...]
pois o mundo das essências não é o mundo do tempo, mas da eternidade, e nele
não há antecedências nem sucessões.” (Ibidem,
p. 166).
Duns Scotus, assim, entendendo que a
teoria de Avicena seria capaz de preservar uma ideia mais elevada de Deus (Cf.
GILSON, Op. Cit., p. 134), acaba por
optar pelo ser como objeto de sua
metafísica. Segundo Etienne Gilson:
“Toda
metafísica escotista está centrada na ideia de ser, pois não há outra ideia que
nos possa permitir chegar a Deus. Com efeito, é como Ser que ele mesmo se
definiu para nós; é unicamente a primazia na ordem do ser que nos conduzirá a
um conhecimento de um ser infinito , e consequentemente de Deus” (Ibidem, p. 136).
III – A distinção formal do ser:
Além da determinação de seu objeto, Duns
Scotus entende que é necessário provar a própria possibilidade da existência de
uma metafísica.
“Para
um intelecto finito, remetido ao ponto de partida das experiências sensórias, a
possibilidade de uma ‘filosofia primeira’, que é anterior à física e tem por
objeto as determinações ‘transcendentes’, ou seja, transcategoriais, não se
entende por si mesma.”. (HONNEFELDER, Op.
Cit., p. 82).
Para o Doutor
Sutil, a passagem do não-saber ao saber não começa com um “conhecimento
distinto”, mas com aquilo que denominou “conhecimento confuso”. O sentido mais
apropriado da expressão não seria o de um conhecimento nebuloso ou sombrio, mas
o de um conhecimento ordinário. Em outras palavras, seria o conhecimento que
“se
estabelece no domínio lingüístico, na designação de um objeto por um nome, em
diferença ao conhecimento distinto, no qual tudo o que pertence ao conteúdo
essencial de um objeto também é apreendido com evidência e em específico, tal
que esse se estabelece, no âmbito da linguagem, na designação do objeto por
meio de uma definição [...]. No conhecimento confuso, o objeto experienciável
pelos sentidos é apreendido primeiramente no contorno de sua species specialissima, ou seja, de sua natureza específica plenamente
determinada, de acordo com a qual algo exerce sua efetividade”. (Ibidem, p. 83).
Já para explicar a formação do
conhecimento distinto, Duns Scotus recorre às doutrinas avicenianas da resolução dos nossos conceitos e do “ente” como o “primeiro conhecido”.
Segundo ele, a resposta à pergunta “O que é algo?” (Quid est?) sempre se
utiliza de um conceito mais universal conhecido, delimitado por um conceito
mais delimitante. Assim, o determinável é predicado como um quê (in quid),
enquanto o determinante é predicado como um como (in quale). Entretanto, prosseguindo
com a pergunta “O que é algo?”, observa-se um processo de redução de conceitos
parciais a conceitos parciais ainda anteriores. Não podendo prosseguir até o
infinito, essa busca de resolução chega a um ponto em que os conceitos parcias
não mais podem ser reduzidos analiticamente e têm que ser tratados, segundo seu
conteúdo, como absolutamente simples (simpliciter
simplex). Assim, Duns Scotus conclui
que:
“O
conceito predicado quididativamente, que não pode ser analisado em conceitos
‘anteriores’, isto é, ainda mais universais, e que tem de ser pensado como o
primeiro comum absolutamente, contido em todos os conceitos quididativos e como
indeterminado e puramente determinável com respeito aos conceitos determinantes
mais especificamente, é o conceito de ‘ente’ (ens)” [4]
(Ibidem, p. 83).
Em
outras palavras,
“Duns
Escoto não aceita nenhum argumento que pretenda nos obrigar a admitir que
conceber alguma coisa seja necessariamente concebê-la como contida sob este ou
aquele gênero determinado. Antes de pensar qualquer coisa, pensamos que isto
[ou aquilo] é; cabe aos procedimentos ulteriores do pensamento demonstrar o que
isto [ou aquilo] é.” (GILSON, Op. Cit.,
p.150).
Dessa forma,
fica claro que o pensamento scotista, desde seus primeiros passos, manifesta
certa “preferência” pelo aspecto lógico da realidade, em detrimento da
experiência sensível. Nesse sentido, Gilson observou que há em Duns Scotus
“uma
tendência bastante acentuada a relegar ao segundo plano a evidência sensível,
que fornece à prova seu ponto de partida, para se apoiar em relações necessárias
entre conceitos tomados emprestados da experiência. Ele raciocina de
preferência a partir do necessário, isto é, desenvolvendo o conteúdo de certas
noções primitivamente emprestadas da experiência, mas sobre as quais, uma vez
apreendidas pelo intelecto, a experiência nada nos faz saber. Sem dúvida, Duns
Scot admite que, de fato, todo conhecimento humano principia pelo sensível,
mas, em direito, o intelecto humano deveria poder dispensá-lo, e o metafísico
tem de fazer tudo o que estiver a seu alcance para dispensá-lo.” (GILSON, 2001,
p. 752) [5].
IV – A univocidade do ser:
Tendo demonstrado a natureza
indeterminada do ser, Duns Scotus tem o terreno aberto para afirmar seu caráter
comum. E dizer que há uma essência comum compartilhada por todos os seres é
justamente a afirmação scotista de que a predicação do ser é unívoca. Entretanto,
para que se não caia no erro bastante comum de opor as filosofias tomista e
scotista como teorias inconciliáveis, é importante esclarecer o sentido exato que
Duns Scotus atribuiu a sua doutrina da univocidade do ser.
Para o franciscano, essa univocidade
seria somente metafísica, dando-se apenas na ordem essencial. Pensando em
termos puramente lógicos, ele entendia haver somente duas predicações possíveis
ao ser: unívoca e equívoca. E já que a ciência procede por meio de
demonstrações e seu objeto deve conter a totalidade dos enunciados verdadeiros
dessa mesma ciência, o objeto deverá ser a fonte de toda possibilidade
demonstrativa. Assim, é necessário que o objeto seja um conceito com unidade e
distinção suficiente para poder figurar como termo médio de um silogismo ou de
uma demonstração. (Cf. PARCERIAS, 2004, p.110) [6].
Como a equivocidade não tem unidade para se afirmar como termo médio de uma
demonstração, é necessário que o ser seja unívoco.
“Afinal,
a pressuposição mínima para o desempenho lógico de um conceito é a preservação
de sua unidade de significado em aplicação a diferentes sujeitos de referência,
não mais. Por isso mesmo, critério abalizado para a preservação dessa unidade
do conceito pode ser somente a prova se sua predicação de um e o mesmo sujeito
conduz, no caso de simultânea afirmação e negação, a uma contradição.”.
(HONEFELDER, Op. Cit., p.89).
Nas palavras do próprio Scotus:
“Um
conceito unívoco, eu chamo (um conceito) que é de tal modo uno que sua unidade
basta para a contradição, quando se o afirma e se o nega do mesmo (sujeito), e
a qual (além disso) basta para o (conceito) médio na conclusão, de maneira que
se pode, a partir dos extremos unidos por um conceito (médio) uno nesse
sentido, ser concluído sem a falácia de equivocação que eles são unidos um com
o outro” (DUNS SCOTUS, Ord. I, d. 3, p.1, q. 1-2, n. 26; Ed. Vat III 18, apud Ibidem, p.89)
Assim,
simplificadamente, pode-se dizer que “a definição de univocidade é,
precisamente, o ser suficiente para excluir a contradição.” (PARCERIAS, Op. Cit., p. 110). No pressuposto
scotista, “nenhum conceito pode ser ao mesmo tempo certo e duvidoso. Ou não
consta em absoluto nenhum conceito real, ou constam em realidade dois conceitos
diferentes (Cf. Ord. I,
d.3, p.1, q. 1-2, n. 27; Ed. Vat. III 18 apud HONNEFELDER, Op. Cit.,
p. 91).
Sua argumentação baseia-se na ideia
de que conceitos distintos de conteúdos absolutamente simples não podem
apresentar simultaneamente certeza e dúvida. Ou esses conceitos podem ser
conhecidos plenamente, ou não o podem ser de maneira nenhuma. Com isso, Scotus
constrói não só sua fundamentação para a cognoscibilidade de entes que
transcendem a experiência, mas a fundamentação para o conhecimento do próprio
mundo.
“Afinal,
podemos conhecer só até o ponto em que se nos abre a ‘primeira concepção’ (prima conceptio). Cerne da doutrina da univocidade é a tese de que a
certeza de nosso conhecimento do ‘mundo em torno de nós’ repousa em uma
primeira ‘certeza’ (certitudo), a
saber, aquela certeza com a qual apreendemos esse ou aquele ente ‘como ente’.
Essa certitudo da prima conceptio – como é mostrado por Scotus pela análise de nosso
conhecimento conceitual distinto – comprova-se por si mesma. Na prima conceptio é nos aberta com ‘ens’,
uma ratio que é a partir de si,
categorialmente, plenamente indeterminada, que através de seu conteúdo
absolutamente simples não predica nada de um sujeito senão somente ser um ente
e que, por isso mesmo, pode ser predicada de tudo univocamente em uma
comunidade que transcende os conceitos categoriais. Caso não ocorresse a
‘transcendência’ de nosso intelecto por sobre as coisas particulares
experimentáveis pelos sentidos e por sobre a sua apreensão categorial já na prima conceptio, nesse caso nenhum passo de conhecimento adicional
conseguiria levar para além dos limites com isso traçados e abrir, assim, algo
como ‘o mundo em sua totalidade’ como unidade transcategorial de
conhecibilidade.” (HONNEFELDER, Op. Cit.,
p. 92-93).
Sendo assim, no pensamento scotista,
a entidade (entitas) é a propriedade
de tudo aquilo que possui ser, em qualquer sentido e em qualquer grau. É ela
que possibilita ao ser a inteligibilidade. Como objeto primeiro do intelecto
humano, o ser é apto a conhecer tudo quanto é. “Todos compreendem o ser quando
pensam o ser. É um objecto próprio e adequado ao intelecto humano. E por ser
assim inteligível, como sempre o mesmo, eis por que nosso conhecimento é
‘unívoco’.” (FERREIRA DOS SANTOS, Op. Cit.,
p.173).
É importante perceber que o problema
central cuja solução Duns Escoto tenta oferecer nada mais é do que o problema
agostiniano da iluminação, formulado em termos emprestados do aristotelismo. (Cf.
GILSON, 2010, p.152) [7].
Como bem observa Gilson:
“Para
ele, como também para São Tomás, nosso intelecto é suficiente à obra do
conhecimento, sem exigir uma iluminação especial. Mas a iluminação divina que
ele coloca em nosso intelecto, para submetê-la à função da luz natural, é bem
diferente nele e em São Tomás. Ao invés de ter seu objeto motor diante de si,
na quididade sensível, como quer o tomismo, ela o conserva em si mesma, neste
conceito de ser que o homem carrega como a marca deixada por Deus em sua obra,
e que se torna assim objectum naturaliter motivum intellectus creati. Assim sendo, a univocidade do
ser, do modo como Duns Escoto a empresta de Avicena, se reduz essencialmente à
afirmação de que o Ser, causa de todos os seres, nos dotou de uma luz natural à
sua semelhança. Imagem d´Aquele que é, nosso intelecto nada pode conceber sem
concebê-lo sob as espécies do ser.” (Ibidem,
p.152)
V- Conclusão:
Como foi mostrado até aqui, é importante notar que, como
um filósofo cristão, a grande preocupação que perpassa todo o pensamento de
Duns Scotus, assim como praticamente o de todos os filósofos medievais, é a acomodação
do conteúdo de suas filosofias à Escritura. É notável o esforço intelectual que
Duns Scotus realiza na tentativa de harmonizar o pensamento de Avicena,
fortemente influenciado por Platão, ao conteúdo de sua fé. De fato, seu
raciocínio apurado e preciso é digno de admiração. Não por acaso recebeu a
alcunha de Doutor Sutil.
Todavia, apesar da grandeza de sua contribuição para a
história do pensamento ocidental, seria um engano afirmar que seu objetivo foi
alcançado. Duns Scotus, pensando com categorias escolásticas, não conseguiu
perceber que a síntese de sua fé com o pensamento grego gerava uma tensão
insolúvel em seu próprio ponto de partida. Para esclarecer esse ponto, será necessária
a ajuda de alguns conceitos do filósofo holandês Herman Dooyeweerd.
Para Dooyeweerd, existem três tipos de conhecimento: um
conhecimento pré-teórico, que, à semelhança do “conhecimento confuso” de
Scotus, seria o conhecimento do senso comum, apreendido nas experiências
ordinárias; um conhecimento teórico, que é aquele que se dá, numa estrura
antitética, a partir da oposição dos aspectos lógicos do pensamento aos
aspectos não-lógicos da experiência temporal; e um conhecimento suprateórico, que
é de caráter essencialmente religioso e que é o responsável pelo direcionamento
do ego humano. Segundo ele,
“é
apenas nessa relação religiosa central com a sua origem divina que o ego
pensante pode colocar a si mesmo, e a diversidade modal de seu mundo temporal,
na direção do absoluto. A tendência interna de fazê-lo é um impulso religioso
inato do ego. Pois sendo o ponto de concentração da totalidade do sentido, que
ele encontra disperso na diversidade modal de seu horizonte de experiência
temporal, o ego humano aponta além de si mesmo para a origem de todo o sentido,
cuja absolutidade reflete-se no ego humano como o assento central da imagem de
Deus. Esse ego, que é vazio em si mesmo, é determinado em um sentido positivo
apenas por sua relação concêntrica com a origem divina. [...] O impulso inato
do ego, no qual a direção em relação à origem divina encontra expressão, toma
seu conteúdo de um motivo-base religioso como o poder espiritual central de
nosso pensamento e ação.”. (DOOYEWEERD, 2010, p.83) [8].
Entretanto, prossegue Dooyeweerd:
“Se
esse motivo é de caráter apóstata, ele distanciará seu impulso religioso para o
horizonte temporal da experiência, buscando nesse tanto a si mesmo quanto à sua
origem. Isso fará com que surjam ídolos originados da absolutização daquilo que
tem um significado apenas relativo. Mas mesmo nessa manifestação apóstata, o
caráter religioso do ego, como ponto de concentração da natureza humana,
continua a revelar-se.”. (Ibidem, p.
83).
Dessa maneira, ao analisar toda a
história da filosofia, Dooyeweerd observou que o pensamento ocidental se
construiu a partir de quatro motivos-base religiosos centrais: o mativo-base
grego matéria/forma; o motivo-base
escolástico natureza/graça; o
motivo-base humanista natureza/liberdade;
e o motivo-base bíblico criação-queda-redenção,
o único capaz de produzir uma visão harmônica da realidade.
Isso porque todos os outros, com
exceção do motivo-base bíblico, apresentam um caráter dialético. “Isso
significa que eles estão intrinsecamente divididos por uma antítese religiosa
irrevogável, pois são compostos por dois poderes-motivos
centrais que permanecem em oposição polar um ao outro”. (Ibidem, p. 88). Assim, essa
antítese, dividindo o impulso religioso central do ego, “bloqueia o insight sobre a unidade radical do ego
humano em sua relação central à totalidade de nosso horizonte temporal da
experiência.” (Ibidem, p. 89).
Como mostra Dooyeweerd, esse foi a
grande erro cometido não só por Duns Scotus, mas por quase todos os filósofos
escolásticos. Para o holandês:
“A
influência da filosofia grega adaptada pela escolástica na teologia dogmática
foi a mais perigosa na medida em que os teólogos, mal conduzidos pela crença
tradicional na autonomia da razão natural, não reconheceram as pressuposições
antibíblicas de sua filosofia”. (Ibidem,
p.224)
Assim, apesar de Duns Scotus ter se esforçado para manter
sua filosofia fiel às Escrituras, ele não conseguiu perceber as implicações de
adotar a teoria de Avicena, tomada de Platão, como ponto de partida para suas
investigações. Iludido por uma pretensa neutralidade teórica do pensamento
grego, não foi capaz de perceber que as pressuposições religiosas daquele mesmo
pensamento jamais se harmonizariam com sua fé. Nesse sentido, Nietzche,
analisando as tragédias, foi o primeiro a conseguir detectar o conflito entre o
espírito apolíneo e dionisíaco no pensamento grego. Para Dooyeweerd, era justamente
aí que residia todo o conflito do motivo básico religioso da vida e do
pensamento clássico.
Enquanto a religião grega pré-olímpica da vida e da morte
“deificou o fluxo perene de vida orgânica que se originava da mãe-terra e que
não podia se fixar nem ser restrito por alguma forma corporal” (Ibidem, p. 229), constituindo-se no
motivo religioso da matéria, a religião olímpica mais jovem, ao deificar o
aspecto cultural da polis, tornou-se
o motivo religioso central da forma. (Cf. Ibidem,
p.230)
“Assim,
o motivo grego matéria-forma deu expressão a um dualismo fundamental na
consciência religiosa grega. Como ponto de partida da filosofia grega, ele não
era dependente das formas mitológicas e representações das crenças populares.
Entretanto, mesmo reivindicando autonomia em relação a essas crenças, a
filosofia grega certamente não intencionava uma ruptura com o motivo básico
dualista da consciência religiosa grega. Ao contrário, esse motivo era o ponto
de partida comum das diferentes escolas e tendências filosóficas e, em virtude
de seu caráter intrinsecamente dualista, direcionou o pensamento filosófico
grego em direções polarmente opostas. E uma vez que uma síntese real entre os
motivos opostos de forma e matéria era impossível, não havia outro recurso à
filosofia grega clássica senão atribuir primazia religiosa a um deles resultando na depreciação do
outro.” (Ibidem, p.231).
No caso da filosofia scotista, fica
evidente a primazia recebida pela forma. Ao supervalorizar o aspecto lógico da
experiência temporal, Scotus acreditou ter conseguido, através da predicação
unívoca do ser, construir uma fundamentação sólida para a ciência metafísica.
Faltou-lhe, entretanto, a percepção de que a separação do aspecto lógico dos
outros aspectos modais da experiência temporal não corresponde à realidade e,
portanto, não tem uma atividade independente da vida orgânica do corpo e dos
órgãos dos sentidos (Cf. Ibidem, p.
62).
Dessa
forma, não é de se admirar a grande influência que o pensamento scotista teve
sobre a filosofia de uma gama bem variada de autores modernos que,
impulsionados pelos idéias de liberdade da Revolução Francesa, acabaram por
atribuir à razão humana um status divino.
VI – Bibliografia:
- DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de
Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.
-
______________________. Conceitos
analógicos. In: Diálogo e Antítese: Revista de Religião e
Transdisciplinaridade. [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho] – Vol 1,
Nº 1, (2009/1).
-
FERREIRA DOS SANTOS, Mário. Teoria do
Conhecimento. São Paulo: Livraria e Editora Logos, 1958.
-
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade
Média. [tradução Eduardo Brandão] - São Paulo: Martins Fontes, 2001.
-
_______________. Por que São Tomás
criticou Santo Agostinho / Avicena e o ponto de partida de Duns Escoto /
[tradução Tiago José Risi Leme]. – São Paulo, Paulus 2010. – (Coleção
filosofia)
-
HONNEFELDER, Ludger. João Duns Scotus.
[Tradução: Roberto Hofmeister Pich] – São Paulo: Edições Loyola, 2010.
-
PARCERIAS, Pedro M. Gonçalo. Heterogeneidade
e a afirmação do ente: Duns Escoto e a estrutura da ontologia. In: Revista
Filosófica de Coimbra. Nº 25/2004.
[1] - HONNEFELDER, Ludger. João Duns Scotus. [Tradução: Roberto
Hofmeister Pich] – São Paulo: Edições Loyola, 2010.
[2]
GILSON,
Etienne. Por que São Tomás criticou Santo
Agostinho / Avicena e o ponto de partida de Duns Escoto / [tradução Tiago
José Risi Leme]. – São Paulo, Paulus 2010. – (Coleção filosofia)
[3] FERREIRA DOS SANTOS, Mário. Teoria do Conhecimento. São Paulo:
Livraria e Editora Logos, 1958.
[4] HONNEFELDER utiliza a denominação
“ente” não com sentido de particular, mas universal. “Obtido no já mencionado
modo de abstração, ‘ente’ (ens) não conota nada senão o ser-ente e desconsidera
a mobilidade e a extensão.”. (HONNEFELDER, 2010, p. 79). Assim, quando
HONNEFELDER fala de “ente”, fala daquilo que os outros autores aqui citados
chamam de “ser”.
[5]
GILSON,
Etienne. A Filosofia na Idade Média.
[tradução Eduardo Brandão] - São Paulo: Martins Fontes, 2001.
[6]
PARCERIAS,
Pedro M. Gonçalo. Heterogeneidade e a
afirmação do ente: Duns Escoto e a estrutura da ontologia. In: Revista
Filosófica de Coimbra. Nº 25/2004.
[7] Op.Cit.
[8]
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de
Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.
Quem é o autor desse texto?
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