A boca fala do que o coração tá cheio

sexta-feira, 20 de abril de 2012

A meu pai

Por Eduardo Marinho


Livro "Crônicas e Pontos de Vista"

Durante a composição do livro, Rodrigo Rosa, o editor, me pediu pra fazer um texto homenageando alguém que eu admirasse, dedicando o livro. Eu disse que não queria fazer isso, não via porque dedicar o livro a ninguém além das pessoas que o lessem. Ele insistiu, disse que não precisava ser ninguém vivo e aí eu lembrei do meu pai, da nossa história inacabada, interrompida por sua morte inesperada. Então fiz o texto, que foi colocado na abertura do livro.
  
A meu pai

Senti a dor que lhe impus. Lamentei cada fração dessa dor. Ninguém acreditou. Eu me tornei o agressor, o ingrato, aquele que desprezou todos os esforços feitos em meu próprio benefício. Um traidor da família.

Lamentei cada grão da dor que minhas atitudes provocaram. Ninguém viu, ninguém sabe, ninguém acredita. Durante muito tempo, minha família de origem deixou de existir em minha vida, eu deixei de existir na vida dela. Creio que em meu pai a dor foi mais profunda, pelas projeções a meu respeito que ele viu desmoronar.

Ah, meu pai! Esperei, na certeza de um dia você entender que foi minha busca por justiça, minha inconformação com a situação absurda da nossa sociedade, o que moveu minhas atitudes, depois de várias tentativas de me enquadrar em alguma posição convencional – apenas para não ferir, pois tais conquistas já não me empolgavam, ao contrário, me pareciam uma espécie de rendição, de conformação, de injustiça.

Quando soube da sua morte, tive o sentimento de que o nosso abraço tinha sido adiado, "agora só quando eu chegar do outro lado, também”. Lá deve ser mais fácil compreender os valores que me guiaram, pois aqui os valores sem sentido são impostos e têm base na forma, no aspecto, no externo. Nosso entendimento talvez já se esboçasse, nos últimos tempos, mas não seria nesse plano. A casa onde moro foi comprada por ele, em decisão própria e para minha surpresa, três meses antes da sua partida. Agradeci pela casa e lhe desejei boa viagem e boa chegada. No vazio que senti naquele dia, diante da ausência, da carência, do amor distante e pleno, escrevi na última página de um caderno, sem pensar, apenas sentindo, muito, esse pequeno texto de despedida e esperança que exponho mais abaixo.

É preciso explicar que, quando nasci, meus pais tinham, ambos, 39 anos. Nos meus 19, quando me expus ao sol do mundo, estavam nos 59 anos. Quando tornei a encontrá-los, os sinais do tempo eram bem marcantes, quinze anos haviam se passado. Eu lhes ficara tão estranho que a distância permaneceu grande – agora menos física, mais sensorial, ideológica, vibracional. A visão de mundo desenvolvida na vivência em pleno chão da sociedade é francamente rejeitada, hostilizada, negada raivosamente não só por eles, mas por toda aquela classe, à qual eu já não pertencia.

“Tivemos tão pouco tempo...
acabei nascendo tarde
e pensando diferente.
Tivemos tão pouco tempo...
e o pouco tempo que tivemos
foi sem muita intimidade.
Cresci tão distante,
fiquei tão estranho,
estivemos tão longe
tanto tempo...
O pouco que tivemos
jamais intimidade
e, no entanto,
eu o amo, tanto, tanto...”
Amor incondicional. Lamento sua visão da minha pessoa e dos meus valores, mas respeito inteiramente, mesmo discordando. Não tenho verdades, mas impressões, opiniões, intuições. O tempo se encarrega das mudanças que não pudemos realizar e que são inevitáveis. Formar a própria visão de mundo e as opiniões é direito e responsabilidade de cada um.

Grande amor, grande respeito e vontade de encontrá-lo, quando chegar o momento.


Fonte: Observar e absorver



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