Há
pelo menos duas perspectivas possíveis para a leitura de A Cabana, de William P. Young: como um manual de teologia
sistemática ou como um livro de ficção, que parece ter sido a proposta do
autor. A primeira opção torna a obra um enorme acervo de heresias. Já a
segunda, ao compreender o papel da metáfora como importante instrumento de
elucidação de questões complexas, oferece uma riquíssima oportunidade de o
leitor entrar em contato com uma abordagem simples e acessível dos grandes
problemas existenciais da humanidade.
Através
de uma narrativa leve, mas profundamente emocionante, o autor apresenta a fé
também como fonte de conhecimento, ao lado da razão, numa relação de
complementaridade.
"Há ocasiões em que optamos por acreditar em
algo que normalmente seria considerado absolutamente irracional. Isso não
significa que seja mesmo irracional, mas certamente não é racional. Talvez
exista a supra-racionalidade: a razão além das definições normais dos fatos ou
da lógica baseada em dados. Algo que só faz sentido se você puder ver uma
imagem maior da realidade. Talvez seja aqui que a fé se encaixe." (p. 61).
A Trindade aparece como tema central da obra. Deus
Pai é Elousia, uma mulher negra,
gorda, governanta e cozinheira; Jesus
aparece como um homem do Oriente Médio, vestido de operário; e o Espírito Santo
é apresentado como uma mulher asiática e pequena chamada Sarayu.
Obviamente,
esses personagens fictícios, assim como qualquer doutrina teológica, não dão
conta de explicar o mistério da Trindade. A idéia do autor consiste justamente
em desconstruir paradigmas religiosos que “aprisionam” Deus em caixas e
sistemas fechados, esvaziando não só seu caráter, mas sua beleza.
“Se eu escolho aparecer para você como homem ou
mulher, é porque o amo. Para mim, aparecer como mulher e sugerir que você me
chame de Papai é simplesmente para ajudá-lo a não sucumbir tão facilmente aos
seus condicionamentos religiosos.” (p. 83).
A questão central que envolve o mistério da
Trindade, entretanto, é preservada. Elousia, Jesus e Sarayu, apesar de pessoas
distintas, são apresentados como sendo um só Deus. Além disso, o aspecto
relacional da Trindade, tão importante para explicar a natureza do amor de Deus
pela humanidade, também é bastante ressaltado, assim como a coexistência das
duas naturezas, humana e divina, na pessoa de Cristo. “Sou totalmente Deus, mas
sou humano até o âmago.” (p. 103).
Como pontos duvidosos, que não chegam a ser
negativos, justamente pela falta de rigor teológico proposto pela obra, podem
ser apontados a possível sugestão de um universalismo e, talvez, um escorregão
pelo panteísmo ou panenteísmo. Jesus inicialmente é apresentado não como o único caminho que leva ao Pai, como na
Revelação, mas como o melhor caminho.
“Eu sou o melhor modo que qualquer humano pode ter de se relacionar com Papai
ou com Sarayu.” (p. 101). Posteriormente, entretanto, aparece uma possível
explicação. Ou não. Fica a dúvida.
“Os que me amam estão em todos os sistemas que existem. São
budistas ou mórmons, batistas ou muçulmanos, democratas, republicanos e muitos
que não votam nem fazem parte de qualquer instituição religiosa. Tenho
seguidores que foram assassinos e muitos que eram hipócritas. Há banqueiros,
jogadores, americanos e iraquianos, judeus e palestinos. Não tenho desejo de
torná-los cristãos, mas quero me juntar a eles em seu processo para se
transformarem em filhos e filhas do Papai, em irmãos e irmãs, em meus amados.
[...] A maioria das estradas não leva a lugar nenhum. O que isso significa é
que eu viajarei por qualquer estrada para encontrar vocês” (p. 169).
Em
outra parte, há a seguinte afirmação: “Deus, que é a base de todo o ser, mora
dentro, em volta e através de todas as coisas, e emerge em última instância
como o real. Qualquer aparência que mascare essa verdade está destinada a
cair.” (p. 102). Aqui, portanto, também permanece a dúvida se é de fato uma
declaração panenteísta ou apenas a falta do rigor teológico característica
desse tipo de literatura.
A
obra aborda ainda, além das questões já citadas, o problema do mal e a questão
referente à liberdade humana e soberania divina. No primeiro caso, o autor
segue o pensamento de Agostinho de Hipona, apresentando o mal não como uma
estrutura ontológica, mas como ausência do bem. No segundo, o autor, assim como
a própria Bíblia, não procura apresentar uma resposta à questão, mas,
simplesmente, afirma tanto a liberdade humana quanto a soberania de Deus como
processos indiscerníveis que não podem ser entendidos de forma separada.
De
uma forma geral, o livro vale muito a pena. As pesadas críticas que recebeu por
setores mais conservadores da igreja, tanto na tradição católica quanto na
protestante, revelam muito mais o medo diante de um período de transição e
incertezas, características da pós-modernidade, do que uma crítica bem
sustentada em argumentos sólidos. De qualquer forma, e isso deve ficar claro, A Cabana continuará sendo somente uma
obra de ficção.
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