A boca fala do que o coração tá cheio

quinta-feira, 19 de abril de 2012

AFORISMOS DO JOVEM ESTETA A ALTERNATIVA I

Afora meu numeroso círculo de amizades restante, ainda tenho uma confidente íntima: minha melancolia; em meio à minha alegria, em meio ao meu trabalho, ela me acena, chama-me à parte, ainda que eu permaneça corporalmente no mesmo lugar. Minha melancolia é a mais fiel das amantes que já conheci. Que há de estranho em que eu também a ame? Perguntem-me o que quiserem, só não me perguntem acerca das razões. A uma menina se perdoa se não souber fornecer razões, ela vive no sentimento, como se diz. Comigo é diferente. Em geral eu tenho tantas razões e, no mais das vezes, intimamente contraditória, que por isso mesmo se me torna impossível fornecer razões. Com causa e efeito, parece-me que também as coisas não combinam como deviam. Ora surge de uma causa enorme e poderosa um efeito bem pequenininho e imperceptível, às vezes mesmo efeito nenhum; ora, uma causa minúscula desencadeia um efeito gigantesco. É preciso uma grande ingenuidade para crer que adianta gritar e clamar pelo mundo como se com isso se conseguisse alterar o próprio destino. Tomese a coisa como ela se apresenta, renunciando-se à prolixidade. Quando, em minha juventude, eu entrava num restaurante, dizia ao garçom: um pedaço bom, um pedaço bem bom, do lombo, que não seja gordo demais. O garçom talvez nem ouvisse meu grito, e menos ainda atentasse para ele, supondo que minha voz pudesse mover aquele que cortava a carne. Muito embora tudo isso acontecesse, talvez nem mesmo existisse um bom pedaço em todo o espeto. Agora eu não grito mais.
Kierkegaard, coleção passo-a-passo, de Jorge Miranda de Almeida e Álvaro L.M Valls, da editora Zahar

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