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sexta-feira, 20 de abril de 2012

OS LIMITES E OS NÃO-LIMITES DA RAZÃO NA CRÍTICA TRANSCENDENTAL DE IMMANUEL KANT




I – Introdução:

            O problema do conhecimento tem movido a história da filosofia ocidental desde os seus primórdios. Às perguntas “como sabemos?” e “como sabemos que sabemos?” têm sido apresentadas respostas das mais variadas possíveis e, geralmente, polarizantes. Se por um lado os racionalistas encontram no pensamento, na razão, a fonte principal de todo conhecimento, por outro, os simpatizantes do empirismo costumam fundamentar a base do conhecimento humano, ou o material com o qual ele se constrói, somente na experiência obtida através dos sentidos. Há ainda aqueles que, não conseguindo conceber sequer uma real possibilidade de o conhecimento ser alcançado pelo homem, mergulham no ceticismo.
            No período em que viveu Immanuel Kant, o pensamento racionalista era predominante no continente, enquanto o empirismo tinha mais força nas terras inglesas. (Cf. SILVEIRA, 2002, p. 29) [1]. Ambas as correntes, porém, para ele, pareciam apresentar sérias limitações, não respondendo à questão de maneira satisfatória. E, entusiasmado com as grandes descobertas científicas dos séculos XVII e XVIII, em especial a mecânica newtoniana, a opção pelo ceticismo também não lhe parecia uma boa saída. Dessa maneira, Kant desenvolveu uma complexa teoria do conhecimento, onde procurou, resguardando a legitimidade da ciência, integrar a experiência sensível ao uso rigoroso da razão.
            Este breve estudo tem por objetivo introduzir as inovações produzidas por Kant na epistemologia, procurando destacar, por um lado, o caráter restritivo da crítica kantiana, devido aos limites impostos à razão humana e, por outro, as lacunas deixadas pela mesma, que acabaram por torná-la menos profunda do que, de fato, ela pretendia ser. Para isso, será abordado, inicialmente, o breve contexto histórico-filosófico que antecedeu a filosofia kantiana, assim como a identificação de alguns de seus pressupostos fundamentais. Em seguida, serão apresentados, sinteticamente, os principais pontos que constituem o idealismo transcendental no tocante ao pensamento teórico. E, por fim, será introduzida uma crítica baseada no pensamento do filósofo holandês Herman Dooyeweerd.


II – O despertar do sono:

            O período kantiano pré-crítico foi marcado por uma grande influência do racionalismo dogmático de sua época. Tanto Descartes, quanto Leibniz e Wollf tinham desenvolvido suas filosofias como sistemas lógico-matemáticos, visto que a lógica, a matemática e, mais tarde, a física eram, até então, consideradas as únicas ciências seguras. A filosofia, dessa forma, acabara reduzida ao método matemático e aos princípios de identidade e não contradição.
            Entretanto, não demorou muito para que os empiristas se levantassem e oferecessem críticas a esse sistema. A investida do filósofo escocês David Hume foi, certamente, a mais contundente. Num ataque central ao coração da metafísica clássica, Hume defendeu que “seria a imaginação, não o entendimento, a responder pelo princípio de causalidade” (FIGUEIREDO, 2005, p.20) [2]. Entendendo que, na experiência, não há uma relação de necessidade entre dois eventos, a causalidade não seria “mais que uma expectativa que possui sua origem em um sentimento gerado pelo hábito” (Ibidem, p.21).
            Foi exatamente essa vulnerabilidade dos limites da metafísica clássica que chamou a atenção de Kant. Apesar de não concordar com a conclusão cética a que chegou Hume, ele considerou sua crítica de grande valia para o desenvolvimento de sua própria filosofia. A esse respeito, o próprio Kant chegou a afirmar o seguinte: “foi a advertência de David Hume que primeiramente interrompeu (...) o meu sono dogmático e que deu uma orientação completamente diferente às minhas investigações no campo da filosofia especulativa” (KANT, 1982, p. 17) [3].
            O objetivo de Kant passou a ser, a partir de então, a construção de um sistema filosófico onde a metafísica pudesse se estabelecer como uma verdadeira ciência. Para ele, além de as questões metafísicas consistirem em uma disposição natural da razão, a própria matemática e a universalidade dos conceitos da ciência da natureza mostravam que a razão seria capaz de realizar juízos necessários. Na verdade, há uma relação direta entre essas duas afirmações: “não haveria ciência necessária, não fosse a exigência que a razão faz pelo incondicionado” (FIGUEIREDO, Op. Cit., p.12). Assim, em uma posição intermediária entre o ceticismo humeano e o dogmatismo clássico, Kant propõe uma via mediana:

“Ora, o supra-sensível, embora não seja cognoscível, responde por uma aspiração natural da razão, cuja legitimidade devemos reconhecer a despeito das ilusões da filosofia dogmática. Não é exagero dizer que a Crítica vê na metafísica clássica uma ideologia da razão, que a desvirtua de sua vocação própria – uma vocação que Kant pretende resguardar ao abrigo do ceticismo abraçado por Hume.” (FIGUEIREDO, Op. Cit., p. 13).

               Entretanto, é importante observar que alguns elementos fundamentais da Crítica foram desenvolvidos por Kant ainda no período pré-crítico. É dessa época, por exemplo, a afirmação da irredutibilidade do princípio de razão ao princípio de contradição. Segundo essa teoria, o princípio de razão passaria a ser dotado de dois sentidos: um puramente lógico, que poderia ser reduzido ao princípio de identidade e outro real, onde a pura possibilidade não seria suficiente para definir nem compreender uma existência.

“Dessa distinção resulta que o possível não rege mais o real, que o juízo analítico não pode apreender a ordem dos existentes, que a passagem do conceito não-contraditório para a existência é ilegítima. A partir de então, a existência não pode mais ser, como na filosofia Wolffiana, a essência com ‘algo mais’, o complemento da possibilidade” (CRAMPE-CASNABET, 1994, p.21) [4].

            Além disso, o dogma da autonomia da razão, já presente nos antigos e deificado na modernidade, é incorporado por Kant à Crítica, ironicamente, sem um exame crítico. Em consonância com seus antecessores, ele admitiu como pressuposto a razão pura como “uma unidade completamente à parte e autónoma” (CRP, BXXIII) [5], livre de quaisquer orientações exteriores.

III – A Revolução Copernicana e os limites da razão:

            Em toda a metafísica tradicional até Kant, a noção de experiência havia produzido como resultado um conhecimento regulado pelo objeto. A proposta kantiana, entretanto, introduziu uma nova perspectiva para o conhecimento: o deslocamento de foco do objeto para o sujeito. Kant entendeu ser necessária a inversão porque, segundo ele, “a própria experiência é uma forma de conhecimento que exige concurso do entendimento” (CRP, BXVII). Para que o objeto dado fosse conhecido seria imprescindível que houvesse no sujeito cognoscente conceitos a priori que viabilizassem esse conhecimento. Em outras palavras, Kant afirmou que:

“Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que ele derive da experiência. Pois poderia o nosso próprio conhecimento por experiência ser um composto do que recebemos através das impressões sensíveis e daquilo que a nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em acção por impressões sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse que não distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa atenção não despertar por um longo exercício que nos torne aptos a superá-los” (CRP, B1, B2).

Antes de prosseguir, é necessário esclarecer as noções de juízos analíticos e sintéticos, peças de fundamental importância na teoria do conhecimento kantiana. Se, por um lado, nos juízos analíticos ou elucidativos, o predicado se encontra contido no sujeito, tendo sua veracidade baseada no próprio significado dos seus termos, sendo, portanto, juízos a priori, por outro, nos juízos sintéticos, o sujeito não contém o predicado, e este, por sua vez, amplia o conhecimento sobre o sujeito, constituindo-se em juízos a posteriori, de natureza empírica.
Entretanto, para Kant, essa mera distinção entre analítico a priori e sintético a posteriori não pareceu satisfatória para a explicação da possibilidade da ciência. Segundo ele, haveria ainda outra possibilidade não abordada até então: o juízo sintético a priori. Além de ampliar o conhecimento, este teria também caráter universal e necessário.

“Este último tipo de juízo é caracterizado por Kant como independente da experiência, porém relacionado a ela, já que diz respeito às suas condições de possibilidade. Os princípios mais gerais da ciência, os fundamentos da física e da matemática e os juízos filosóficos da teoria do conhecimento que Kant pretende estabelecer, pertenceriam a esta nova classe de juízo.” (MARCONDES, 2010, p. 214) [6].

Esse passo, certamente, constitui um momento chave da teoria kantiana. É através da prova da possibilidade de existência de juízos sintéticos a priori que Kant opera na metafísica aquilo que ele próprio comparou à revolução feita por Copérnico no campo da Astronomia: a inversão de perspectiva entre o sujeito e o objeto.
Com a mudança de referencial, o objeto só seria acessível ao sujeito condicionado às suas estruturas subjetivas. Portanto, diferentemente da metafísica dogmática tradicional, não haveria a possibilidade de conhecimento da totalidade do objeto, da “coisa em si” (númeno), mas apenas de sua aparência, de sua realidade que é apreendida pela experiência (fenômeno). Não se pode deixar de notar, entretanto, que

“essa redefinição, por mais severa que seja em relação às pretensões especulativas da razão dogmática, é pautada pela premissa de que pensar é mais do que simplesmente perceber e ligar percepções – de que, portanto, toda percepção só se torna inteligível na medida em que se subordina a regras prévias que projetam o que é determinado como experiência em uma totalidade sistemática posta pela razão” (FIGUEIREDO, Op. Cit., p, 23).

Assim, esquematicamente, na concepção kantiana, o conhecimento do objeto se dá mediante o exercício de duas faculdades da mente humana, a saber: a sensibilidade e o entendimento. E, visto que, para Kant, não há possibilidade de experiência sem razão, “qualquer determinação objetiva é marcada, em sua origem, pelo modo como algo nos afeta (Estética transcendental) e pela maneira como o que é dado pelos sentidos é pensado pelo entendimento (Lógica transcendental)” (Ibidem, p. 23).
            O ato cognoscitivo consiste, portanto, na união dos dados sensíveis, cuja receptividade é intuitiva, aos conceitos gerais formulados pelo entendimento. Enquanto pela sensibilidade os objetos são apreendidos sob as duas formas de intuição inerentes à própria estrutura do sujeito – o espaço e o tempo –, pelo entendimento os dados sensíveis ganham unidade conceitual, possibilitando o pensamento.
               Há ainda, entretanto, na filosofia de Kant, e talvez esse possa ser considerado o ponto alto de sua revolução copernicana, a possibilidade de um uso puro da razão, totalmente especulativo, independente da experiência e que não produz conhecimento. Para isso, há de se fazer a importante distinção entre os conceitos puros do entendimento e as Ideias da razão.
            Segundo Kant:

“Se o entendimento pode ser definido como a faculdade de unificar os fenômenos mediante regras, a razão é a faculdade de unificar as regras do entendimento mediante princípios. Nunca se dirige, portanto, imediatamente à experiência, nem a nenhum objeto, mas tão-só ao entendimento, para conferir ao diverso dos conhecimentos desta faculdade uma unidade a priori, graças a conceitos; unidade que pode chamar-se unidade de razão e é de espécie totalmente diferente da que pode ser realizada pelo entendimento” (CRP, A 359).

            Assim, na medida em que colabora para o conhecimento, através da unificação dos resultados obtidos pelo entendimento, a razão possui conceitos racionais ou Ideias. Enquanto a razão, em seu uso lógico, relaciona as proposições do entendimento, formulando apenas silogismos provenientes da relação, a Ideia, por sua vez, contrariamente ao conceito do entendimento, é sempre derivada, nunca primitiva.

“A razão, pela Idéia transcendental, persegue um fim totalmente diferente do entendimento, que não cessa de percorrer as séries de condições sem nunca chegar a uma condição primeira ou última; a razão procura a integralidade de todas as condições que ela tenta incluir numa totalidade. A razão se define pela procura do incondicionado.             O incondicionado é o absoluto, o que é válido sem restrição alguma. O absoluto é a totalidade, ou o que é o mesmo, o sistema” (CRAMPE-CASNABET, Op. Cit., p. 62).
                               
            A Idéia seria uma espécie de focus imaginarius, ou seja, um ponto de fuga, localizado fora de toda experiência possível, que confere unidade e extensão máximas aos conceitos do entendimento. Segundo Kant, se a natureza fosse destituída de um princípio interno de ordenação, seria impossível ao entendimento, por si mesmo, afastar a hipótese de desordem empírica, visto que sua competência é exatamente a determinação de fenômenos enquanto objetos da experiência.
            A dialética transcendental ensina, dessa forma, através da afirmação da razão e suas idéias, que, apesar da natureza não se constituir como um sistema em si mesmo, a experiência pode ser pensada como um sistema de leis empíricas. A harmonia e a finalidade da natureza, ao invés de derivarem da experiência, devem ser questionadas pelo homem a partir da vocação sistemática da razão, de maneira a se considerar o conhecimento empírico defeituoso e inadequado enquanto este não for conforme à idéia de sistema (Cf. FIGUEIREDO, Op. Cit., p.52).
            Com essa argumentação, Kant acreditou estar se livrando daquilo que ele mesmo denominou ilusão metafísica, uma espécie de inclinação que desvia o homem da verdade.  Seu objetivo era pôr freio “à pretensão da razão pura de ultrapassar o campo da fenomenalidade, de ir além dos limites marcados para a possibilidade de conhecimento humano, de operar a passagem mortal do conceito para a existência” (CRAMPE-CASNABET, Op. Cit., p. 60).
            Apesar disso, é importante notar que, a despeito do caráter restritivo quanto ao uso especulativo da razão, a Crítica também apresenta uma utilidade positiva, o que possibilitou Kant chegar ao uso prático da razão, seu objetivo maior. Nas palavras do próprio Kant,

“se nos compenetrarmos de que os princípios, em que a razão especulativa se apóia para se arriscar além dos seus limites, têm por conseqüência inevitável não uma extensão mas, se considerarmos mais de perto, uma restrição do uso da nossa razão, na medida em que, na realidade, esses princípios ameaçam estender a tudo os limites da sensibilidade a que propriamente pertencem, e reduzir assim a nada o uso puro (prático) da razão. Eis porque uma crítica que limita a razão especulativa é, como tal, negativa, mas na medida em que anula um obstáculo que restringe ou mesmo ameaça aniquilar o uso prático da razão, é de facto de uma utilidade positiva e altamente importante, logo que nos persuadirmos de que há um uso prático absolutamente necessário da razão pura (o uso moral), no qual inevitavelmente se estende para além dos limites da sensibilidade, não carecendo para tal, aliás, de qualquer ajuda da razão especulativa, mas tendo de assegurar-se contra a reacção desta, para não entrar em contradição consigo mesma” (CRP, BXIV,XV).

IV – Os não-limites da razão e a necessidade de radicalização da crítica:

            Aparentemente procurando resguardar sua teoria da crítica dos metafísicos tradicionais, Kant estabeleceu uma importante distinção entre o procedimento dogmático da razão e o dogmatismo. Enquanto o primeiro seria, para ele, justificável, visto que a ciência, estritamente demonstrativa, baseia-se em princípios a priori, o segundo deveria ser combatido devido a sua postura acrítica em relação à capacidade de conhecimento da razão.
            Entretanto, a não-radicalidade da crítica kantiana da razão teórica permitiu com que seu ponto de partida real permanecesse oculto (Cf. DOOYEWEERD, 2010, p. 74) [7], conservando um caráter dogmático, se não idêntico, pelo menos semelhante ao combatido por ele. Dessa forma, a autonomia do pensamento teórico, “mesmo sem ser justificada por um exame crítico sobre a estrutura interna da própria atitude teórica do pensamento” (DOOYEWEERD, Op. Cit., p.74) continuou gozando do status de condição intrínseca da verdadeira filosofia.
            Desde os gregos, passando pelo escolasticismo tomista, até a filosofia secular moderna, a autonomia da razão sempre constituiu a base comum que unia essas diferentes correntes de pensamento. Contudo, a variedade de sentidos atribuídos a essa mesma autonomia no interior das diferentes escolas filosóficas é, de fato, um aspecto revelador de pressuposições mais profundas que ultrapassam os limites do pensamento teórico.

“Em última análise, essas mesmas pressuposições determinam o sentido atribuído à autonomia. Isso, por sua vez, não está de acordo com a visão dogmática tradicional do pensamento filosófico. Pois essa visão implica que o ponto de partida último da filosofia deveria ser encontrado no próprio pensamento. Todavia, devido à falta de um sentido unívoco, a pretensa autonomia não pode garantir uma base comum para as diversas correntes filosóficas. Ao contrário, esse dogma parece ter continuamente impedido um contato real entre as escolas e correntes filosóficas, o que comprova uma divergência de suas pressuposições mais profundas, as suprateóricas[8]” (Ibidem, p. 50).

            É verdade que a simples possibilidade da existência de pressuposições suprarracionais não prova a impossibilidade de uma teoria filosoficamente autônoma. Mas, por outro lado, é suficiente para demonstrar que é necessário fazer das afirmações dogmáticas referentes à autonomia da razão teórica um problema crítico. Assim, em última instância, a preocupação não deve ser se a filosofia tem demonstrado um caráter autônomo, independente de crenças ou religião. “Antes, a questão em pauta é se essa autonomia é requerida pela natureza interna do próprio pensamento, estando, então, implicada nessa natureza como possibilidade intrínseca” (Ibidem, p. 51). E a resposta dessa questão só pode advir de uma “inquirição crítica radical[9], direcionada às condições universalmente válidas que, sozinhas, tornam o pensamento teórico possível e que são requeridas pela própria natureza e estrutura interna do pensamento” (Ibidem, p.52).
            Como poderia, portanto, ser caracterizada a atitude teórica do pensamento? Para Herman Dooyeweerd, essa atitude teórica apresenta uma estrutura antitética, onde os aspectos lógicos do pensamento são opostos aos aspectos não lógicos da realidade temporal. Como primeiro passo para a compreensão dessa relação, deve-se perceber que o pensamento teórico é limitado ao horizonte temporal da experiência humana e somente nele se move. A experiência temporal, por sua vez, apresenta uma grande diversidade de aspectos modais[10], que são, primariamente, aspectos do próprio tempo, não referindo-se, como tais, “a um concreto que, i.e., a coisas ou eventos concretos, mas apenas a um como, i.e., o modo particular e fundamental, ou a maneira pela qual os experimentamos” (Ibidem, p.54). Dessa forma, esses aspectos são apenas modos fundamentais da experiência, não devendo ser identificados com os fenômenos concretos da realidade empírica, que funcionam, em princípio, em todos os aspectos [11].
            Assim,

“essa dissociação analítica dos aspectos pressupõe que eles foram teoreticamente abstraídos do elo contínuo de sua coerência na ordem do tempo. Isso significa que não podemos capturá-los em conceitos lógicos sem separá-los de todos os outros aspectos em uma descontinuidade lógica abstrata. Mas isso não significa uma eliminação do real de seu elo de coerência que, ao contrário, permanece sendo a condição e a pressuposição necessária de sua dissociação e oposição teórica. Isso apenas prova a impossibilidade de conceber essa coerência de uma forma analítica pelo pensamento teórico” (Ibidem, p.61).

            Dessa forma, a pergunta por esse elo contínuo de coerência entre os aspectos lógico e não lógico da experiência humana, de onde os aspectos são abstraídos, revela primeiramente, em concordância com Kant, a falsidade da idéia dogmática “de que o pensamento teórico seria capaz de penetrar a realidade empírica como essa realmente é, ou mesmo um campo metafísico do ser, que seria independente de possíveis experiências humanas” (Ibidem, p. 61). Após isso, o questionamento que surge é o seguinte: qual seria, então, o ponto de referência central na consciência humana a partir do qual essa síntese teórica pode se iniciar?
            A resposta a essa questão, obviamente, não poderá ser encontrada no interior da própria síntese. Além da relação antitética não oferecer em si mesma uma ligação entre o aspecto lógico e a experiência integrada, não há na ordem temporal, que garante a inquebrantável coerência dos aspectos, um ponto central de referência que transcenda a variedade das esferas modais. Assim, o verdadeiro ponto de partida de uma união teórica entre os modos experienciais lógicos e os não lógicos “deve necessariamente transcender a antítese teórica e relacionar os aspectos que foram dissociados e opostos um ao outro em uma unidade central” (Ibidem, p.68) da consciência humana.

“Isso significa que o dogma relacionado à autonomia do pensamento teórico necessita forçosamente conduzir seus aderentes a um impasse aparentemente inescapável. Para manter essa autonomia, eles são obrigados a buscar o seu ponto de partida no próprio pensamento teórico. Todavia, em virtude de sua estrutura antitética, esse pensamento está limitado à síntese teórica intermodal entre o aspecto lógico e o não lógico. Mesmo uma assim chamada ‘lógica formal’ não pode ser realizada sem uma síntese entre o aspecto lógico e aquele de significação simbólica, os quais não são de forma alguma idênticos” (Ibidem, p. 69).

Dessa maneira, toda vez que o pensamento filosófico busca seu ponto de partida nos pontos de vista teóricos especiais, acaba por cair na absolutização de um aspecto modal especial sinteticamente concebido. Esse processo é o responsável pela construção de todos os ismos na visão teórica da experiência humana e nasce da tentativa de redução de todas as modalidades da experiência temporal à simples modalidade do aspecto absolutizado. Surgem então o historicismo, o psicologismo, o biologismo e assim por diante.
O grande problema, todavia, é que nenhuma dessas absolutizações é capaz de se justificar de um ponto de partida puramente teórico. “Ao contrário, o pensamento teórico, em virtude de seu caráter antitético e sintético, está limitado à irredutível diversidade dos modos fundamentais da experiência e suas inter-relações” (Ibidem, p.70). Não há, dessa forma, na esfera do pensamento teórico, espaço para a absolutidade de um aspecto, evidenciando, de forma ainda mais clara, a influência de motivos suprateóricos mascarados pela ideia de um pensamento filosófico autônomo.
É verdade que esse argumento ainda não demonstra a impossibilidade de o pensamento filosófico encontrar seu ponto de partida em si mesmo. Analisando a possibilidade de demonstração da autonomia da razão por Kant em seu método crítico-transcendental, Dooyeweerd afirma o seguinte:

“Para descobrir o ponto de partida imanente do pensamento teórico como ponto de referência central de toda síntese teórica, Kant aponta para a necessidade de uma autorreflexão em nossos atos teóricos de pensamento, direcionando nossa reflexão ao eu pensante. Essa asserção contém, de fato, uma grande promessa. Pois está além de toda dúvida que na medida em que o pensamento teórico em sua função lógica continuar a ser direcionado meramente aos aspectos modais opostos de nosso horizonte de experiência, ele permanecerá disperso na diversidade teórica desses aspectos. Apenas quando o pensamento teórico é direcionado ao ego pensante, torna-se capaz de adquirir a direção concêntrica para a unidade última de nossa consciência, à qual toda a diversidade modal do horizonte da nossa experiência está relacionada. Se perguntarmos a todas as ciências especiais engajadas em pesquisas antropológicas: o que é o homem? receberemos uma grande diversidade de informações referentes aos diferentes aspectos da existência humana temporal. Essas respostas são, sem dúvida, importantes. Mas mesmo combinando esses diferentes pontos de vista particulares por meio dos quais as respostas são dadas, não se poderá encontrar uma resposta à pergunta central: o que é o homem na unidade central do seu eu? O caminho da autorreflexão crítica é, consequentemente, o único que pode conduzir à descoberta do verdadeiro ponto de partida do pensamento filosófico” (Ibidem, p. 71-72).

            E aqui, surge mais uma questão: como é possível essa direção concêntrica do pensamento em direção ao ego e qual é a sua fonte? Kant, ao assumir o dogma da autonomia da razão, não foi capaz de perceber esse problema. “Portanto, ele foi obrigado a buscar o ponto de referência central da síntese teórica no aspecto lógico do pensamento, que ele denomina entendimento” (Ibidem, p. 72). Sua noção de “eu penso” precisaria, necessariamente, acompanhar todas as representações, constituindo-se naquele polo lógico subjetivo do pensamento que não pode ser objeto do pensamento, já que ele mesmo é responsável por originar o pensamento.
            Esse suposto centro lógico do pensamento teórico foi o que Kant denominou “unidade transcendental da apercepção”[12], sujeito lógico-transcendental, ou “ego”. Este seria uma unidade lógica subjetiva de caráter absolutamente simples, não admitindo nenhuma multiplicidade ou diversidade de componentes. Além disso, esse eu lógico não poderia ser confundido com o ego empírico, a pessoa humana que se percebe no tempo e no espaço; deveria, por outro lado, ser entendido como uma condição geral de qualquer ato de pensamento, não possuindo qualquer tipo de individualidade. Enfim, seria esse “o sujeito lógico-teórico ao qual toda a realidade poderia ser oposta como seu contrapolo objetivo, seu objeto de conhecimento e experiência” (Ibidem, p. 73).
            Assim, enquanto pólo lógico-subjetivo da antítese pela qual o conhecimento teórico se dá, o sujeito lógico transcendental de Kant nunca poderá ser o ponto de referência central da experiência humana na ordem temporal, com toda sua diversidade de esferas modais. Nas palavras de Dooyeweerd:

“O ‘cogito’ no qual Kant tem seu ponto de partida não pode ser meramente uma unidade lógica. Pois ele implica a relação fundamental entre o ego e seus atos de pensamento, os quais de forma alguma são idênticos. Uma unidade lógica, por outro lado, jamais poderá ser uma unidade absoluta sem multiplicidade. Isso contradiria a natureza modal do aspecto lógico. Assim, a visão de Kant do ego transcendental se baseia em pura mitologia. Ela implica uma identificação contraditória do eu central com suas funções lógicas subjetivas” (Ibidem, p. 74).

V – Conclusão:

            Não restam dúvidas sobre a importância da contribuição da filosofia kantiana para o pensamento ocidental. Verdadeiramente, sua obra não só influenciou e ainda influencia muitos pensadores hodiernos, como também, conforme foi visto, representou uma revolução na maneira do pensar filosoficamente. Especialmente sua Crítica da Razão Pura, obra que trata dos problemas concernentes ao objeto desse estudo, teve fundamental importância para a consolidação do ideário iluminista de uma nova era onde a razão teria atingido sua maioridade.
            Entretanto, apesar do enorme impacto de seu pensamento na história da filosofia, não se pode afirmar que Kant tenha tido sucesso na elaboração de um pensamento que correspondesse às suas reais intenções. Na tentativa de estabelecer os limites da razão humana para não cair no dogmatismo tradicional, Kant não foi capaz de perceber as raízes mais profundas que orientam o homem no ato cognoscitivo. A autonomia do pensamento teórico foi mantida e, conseqüentemente, seu verdadeiro ponto de partida manteve-se encoberto.
            Assim, uma crítica do conhecimento que pretenda ser realmente radical não obterá êxito a menos que se debruce atentamente à natureza interna do eu, ou seja, sem o autoconhecimento já defendido por Sócrates. É preciso entender que “o mistério do ego humano central é o fato de que ele não é nada em si mesmo, i.e., olhado à parte das relações nas quais se apresenta” (Ibidem, p. 78).
            A primeira dessas relações, a do ego com o horizonte temporal da experiência, não é capaz de determinar o caráter interno do ego, a não ser de forma negativa. Não existe um eu lógico, histórico ou moral, visto que sua unidade central não pode ser encontrada na diversidade modal da ordem temporal. Além dessa, é possível falar da relação do eu com os outros, uma “relação comunal central entre o centro individual da experiência encontrado também na fundação de qualquer relação comunal no pensamento teórico” (Ibidem, p. 79). Mas, poderia essa relação eu-tu fornecer um conteúdo positivo à autoconsciência humana? Analisada apenas em si mesma, obviamente não, visto que o ego do outro se confronta com o mesmo mistério do eu.
            Mas existe ainda outra relação central que transcende o ego humano e aponta para sua origem divina: a relação religiosa homem-Deus. “Pode-se objetar que essa relação excede os limites do pensamento filosófico. Isso é certamente verdadeiro, uma vez que o pensamento filosófico está limitado ao horizonte temporal da experiência com sua diversidade de aspectos modais” (Ibidem, p. 81). Contudo, é somente a partir dessa relação que a filosofia, em sua atitude teórica, pode adquirir a direção concêntrica sobre o eu.
Nas palavras de Dooyeweerd,
           
“se nosso pensamento não está direcionado para essa relação religiosa central que aponta acima do ego pensante, em direção à sua origem absoluta, toda autorreflexão crítica estará condenada a resultar na conclusão de que o ego não é nada. Essa conclusão, entretanto, é sem sentido, uma vez que implica a negação do próprio pensamento teórico; pois o último não é nada sem o ego. Assim, uma reflexão filosófica que não se direciona para a relação religiosa central será obrigada a buscar o ego no horizonte temporal de nossa experiência a fim de evitar um resultado niilista. Consequentemente, tal reflexão abandonará a atitude crítica e fará do ego central um ídolo, absolutizando um dos aspectos modais de nossa consciência temporal” (Ibidem, p.81).

VI – Bibliografia:

- COSTA, Reginaldo da. O projeto da Crítica da razão pura e a impossibilidade da ontologia enquanto ciência. In: Kalagatos – Revista de Filosofia do Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE. Fortaleza, V. 3, N. 5, Inverno 2006.
- CRAMPE-CASNABET, Michèle. Kant: Uma Revolução Filosófica. [Tradução: Lucy Magalhães] – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
- DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental.  [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.
- FIGUEIREDO, Vinícius de. Kant & a Crítica da razão pura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 
- GONDIM, Raphael e LIMA, Machado. Kant: Filosofia como sistema e o a priori – Problema teórico e prático. In: Daena: International Journal of Good Conscience. 5(1) 132-144. Outubro 2010.  Disponível em < http://www.spentamexico.org/v5-n2/5(2)132-144.pdf > Acesso em 27 Agosto 2011.
- KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. [Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão] – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
- _______________. Prolegômenos. [Tradução: Artur Morão] - Lisboa: Edições 70, 1982.
- MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.
- SILVEIRA, Fernando Lang da. A teoria do conhecimento de Kant: o idealismo transcendental. In: Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, V. 19, número especial: p. 28-51, jun 2002. Disponível em < http://www.if.ufrgs.br/~lang/Textos/KANT.pdf > Acesso em 27 Agosto 2011.


           
           



              


[1] SILVEIRA, Fernando Lang da. A teoria do conhecimento de Kant: o idealismo transcendental. In: Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, V. 19, número especial: p. 28-51, jun 2002. Disponível em < http://www.if.ufrgs.br/~lang/Textos/KANT.pdf > Acesso em 27 Agosto 2011.


[2] FIGUEIREDO, Vinícius de. Kant & a Crítica da razão pura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 
[3] KANT, Immanuel. Prolegômenos. [Tradução: Artur Morão] - Lisboa: Edições 70, 1982.

[4] CRAMPE-CASNABET, Michèle. Kant: Uma Revolução Filosófica. [Tradução: Lucy Magalhães] – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
[5] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. [Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão] – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
[6] MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.
[7] DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental.  [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.

[8] “Dooyeweerd distingue três diferentes ‘atitudes’ ou modos de pensamento: (1) Uma atitude pré-teórica que também é descrita como ordinária ou (segundo Husserl), a atitude natural. Esse é o modo do ‘estar no mundo’ do dia a dia, experimentando objetos e pessoas como totalidades concretas. (2) Na atitude teórica abstrai-se de a experiência pré-teórica, e reflete-se sobre ela, refratando-a em uma multiplicidade de ‘modos’ ou ‘aspectos’ (o que será discutido abaixo). Em razão de requerer uma abstração da experiência ordinária, o pensamento teórico é também, em certo sentido, ‘não natural’. (3) Dooyeweerd aqui discute o nível suprateórico, o qual excede os limites do pensamento teórico e é o campo dos compromissos de fé”. (Ibidem, p. 50).
[9] “‘Radical’ é usado aqui com um sentido preciso: derivado do Latim radix, esta se refere à crítica que penetra nas ‘raízes’, nas pressuposições fundacionais que estão na base do pensamento teórico. Isso requer uma ‘leitura radical’, uma leitura profunda, sob a superfície” (Ibidem, p. 51).
[10]  “O que Dooyeweerd descreve como ‘aspectos’, ‘modos’, ‘modalidades’ ou ‘esferas modais’ são simplesmente aspectos de uma ‘coisa concreta’ que são destilados apenas na atitude teórica. É importante compreender que esses ‘modos’ não existem da mesma forma que entidades; isto é, na terminologia de Husserl, eles são irreais, distinguidos explicitamente apenas na consciência teórica. Por exemplo, essa mesa é uma totalidade concreta; mas quando a considero na atitude teórica, reconheço que ela tem um aspecto estético (seu design), um aspecto econômico (seu preço e lugar em um mercado de bens), etc. A discussão mais extensiva da ‘teoria modal’ de Dooyeweerd é encontrada na obra A New Critique of Theoretical Thought, volume II:The General Theory of Modal Spheres.” (Ibidem, p.54)
[11] Dooyeweerd enumera os seguintes aspectos modais: numérico, espacial, de movimento extensivo, de energia (relações físico-químicas), biótico, dos sentimentos e emoções, lógico, histórico, lingüístico, social, econômico, estético, jurídico, moral e da fé.
[12] Kant, Crítica da Razão Pura, A107/B132

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