I – Introdução:
O
problema do conhecimento tem movido a história da filosofia ocidental desde os
seus primórdios. Às perguntas “como sabemos?” e “como sabemos que sabemos?” têm
sido apresentadas respostas das mais variadas possíveis e, geralmente,
polarizantes. Se por um lado os racionalistas encontram no pensamento, na
razão, a fonte principal de todo conhecimento, por outro, os simpatizantes do
empirismo costumam fundamentar a base do conhecimento humano, ou o material com
o qual ele se constrói, somente na experiência obtida através dos sentidos. Há
ainda aqueles que, não conseguindo conceber sequer uma real possibilidade de o
conhecimento ser alcançado pelo homem, mergulham no ceticismo.
No período em que viveu Immanuel
Kant, o pensamento racionalista era predominante no continente, enquanto o
empirismo tinha mais força nas terras inglesas. (Cf. SILVEIRA, 2002, p. 29) [1]. Ambas
as correntes, porém, para ele, pareciam apresentar sérias limitações, não
respondendo à questão de maneira satisfatória. E, entusiasmado com as grandes
descobertas científicas dos séculos XVII e XVIII, em especial a mecânica
newtoniana, a opção pelo ceticismo também não lhe parecia uma boa saída. Dessa
maneira, Kant desenvolveu uma complexa teoria do conhecimento, onde procurou,
resguardando a legitimidade da ciência, integrar a experiência sensível ao uso
rigoroso da razão.
Este breve estudo tem por objetivo
introduzir as inovações produzidas por Kant na epistemologia, procurando
destacar, por um lado, o caráter restritivo da crítica kantiana, devido aos
limites impostos à razão humana e, por outro, as lacunas deixadas pela mesma,
que acabaram por torná-la menos profunda do que, de fato, ela pretendia ser.
Para isso, será abordado, inicialmente, o breve contexto histórico-filosófico
que antecedeu a filosofia kantiana, assim como a identificação de alguns de
seus pressupostos fundamentais. Em seguida, serão apresentados, sinteticamente,
os principais pontos que constituem o idealismo transcendental no tocante ao
pensamento teórico. E, por fim, será introduzida uma crítica baseada no
pensamento do filósofo holandês Herman Dooyeweerd.
II – O despertar do sono:
O período kantiano pré-crítico foi
marcado por uma grande influência do racionalismo dogmático de sua época. Tanto
Descartes, quanto Leibniz e Wollf tinham desenvolvido suas filosofias como
sistemas lógico-matemáticos, visto que a lógica, a matemática e, mais tarde, a
física eram, até então, consideradas as únicas ciências seguras. A filosofia,
dessa forma, acabara reduzida ao método matemático e aos princípios de
identidade e não contradição.
Entretanto, não demorou muito para
que os empiristas se levantassem e oferecessem críticas a esse sistema. A
investida do filósofo escocês David Hume
foi, certamente, a mais contundente. Num ataque central ao coração da
metafísica clássica, Hume defendeu que “seria a imaginação, não o entendimento,
a responder pelo princípio de causalidade” (FIGUEIREDO, 2005, p.20) [2].
Entendendo que, na experiência, não há uma relação de necessidade entre dois
eventos, a causalidade não seria “mais que uma expectativa que possui sua
origem em um sentimento gerado pelo hábito” (Ibidem, p.21).
Foi exatamente essa vulnerabilidade
dos limites da metafísica clássica que chamou a atenção de Kant. Apesar de não
concordar com a conclusão cética a que chegou Hume, ele considerou sua crítica
de grande valia para o desenvolvimento de sua própria filosofia. A esse
respeito, o próprio Kant chegou a afirmar o seguinte: “foi a advertência de
David Hume que primeiramente interrompeu (...) o meu sono dogmático e que deu
uma orientação completamente diferente às minhas investigações no campo da filosofia
especulativa” (KANT, 1982, p. 17) [3].
O objetivo de Kant passou a ser, a
partir de então, a construção de um sistema filosófico onde a metafísica pudesse
se estabelecer como uma verdadeira ciência. Para ele, além de as questões
metafísicas consistirem em uma disposição natural da razão, a própria matemática
e a universalidade dos conceitos da ciência da natureza mostravam que a razão seria
capaz de realizar juízos necessários. Na verdade, há uma relação direta entre
essas duas afirmações: “não haveria ciência necessária, não fosse a exigência
que a razão faz pelo incondicionado” (FIGUEIREDO, Op. Cit., p.12). Assim, em uma posição intermediária entre o
ceticismo humeano e o dogmatismo clássico, Kant propõe uma via mediana:
“Ora,
o supra-sensível, embora não seja cognoscível, responde por uma aspiração
natural da razão, cuja legitimidade devemos reconhecer a despeito das ilusões
da filosofia dogmática. Não é exagero dizer que a Crítica vê na metafísica clássica uma ideologia da razão, que a desvirtua de sua vocação própria – uma
vocação que Kant pretende resguardar ao abrigo do ceticismo abraçado por Hume.”
(FIGUEIREDO, Op. Cit., p. 13).
Entretanto, é
importante observar que alguns elementos fundamentais da Crítica foram desenvolvidos por Kant ainda no período pré-crítico.
É dessa época, por exemplo, a afirmação da irredutibilidade do princípio de
razão ao princípio de contradição. Segundo essa teoria, o princípio de razão
passaria a ser dotado de dois sentidos: um puramente lógico, que poderia ser reduzido ao princípio de identidade e outro
real, onde a pura possibilidade não
seria suficiente para definir nem compreender uma existência.
“Dessa
distinção resulta que o possível não rege mais o real, que o juízo analítico
não pode apreender a ordem dos existentes, que a passagem do conceito
não-contraditório para a existência é ilegítima. A partir de então, a
existência não pode mais ser, como na filosofia Wolffiana, a essência com ‘algo
mais’, o complemento da possibilidade” (CRAMPE-CASNABET, 1994, p.21) [4].
Além disso, o dogma da autonomia da
razão, já presente nos antigos e deificado na modernidade, é incorporado por
Kant à Crítica, ironicamente, sem um
exame crítico. Em consonância com seus antecessores, ele admitiu como
pressuposto a razão pura como “uma unidade completamente à parte e autónoma” (CRP,
BXXIII) [5],
livre de quaisquer orientações exteriores.
III – A Revolução Copernicana e os
limites da razão:
Em toda a metafísica tradicional até
Kant, a noção de experiência havia produzido como resultado um conhecimento
regulado pelo objeto. A proposta kantiana, entretanto, introduziu uma nova
perspectiva para o conhecimento: o deslocamento de foco do objeto para o
sujeito. Kant entendeu ser necessária a inversão porque, segundo ele, “a
própria experiência é uma forma de conhecimento que exige concurso do entendimento” (CRP, BXVII). Para que o
objeto dado fosse conhecido seria imprescindível que houvesse no sujeito
cognoscente conceitos a priori que
viabilizassem esse conhecimento. Em outras palavras, Kant afirmou que:
“Se,
porém, todo o conhecimento se inicia com
a experiência, isso não prova que ele derive da experiência. Pois poderia o nosso próprio conhecimento por
experiência ser um composto do que recebemos através das impressões sensíveis e
daquilo que a nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em acção por
impressões sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse que não distinguimos
dessa matéria-prima, enquanto a nossa atenção não despertar por um longo
exercício que nos torne aptos a superá-los” (CRP, B1, B2).
Antes
de prosseguir, é necessário esclarecer as noções de juízos analíticos e sintéticos,
peças de fundamental importância na teoria do conhecimento kantiana. Se, por um
lado, nos juízos analíticos ou elucidativos, o predicado se encontra contido no
sujeito, tendo sua veracidade baseada no próprio significado dos seus termos,
sendo, portanto, juízos a priori, por outro, nos juízos sintéticos,
o sujeito não contém o predicado, e este, por sua vez, amplia o conhecimento
sobre o sujeito, constituindo-se em juízos a
posteriori, de natureza empírica.
Entretanto,
para Kant, essa mera distinção entre analítico a priori e sintético a posteriori
não pareceu satisfatória para a explicação da possibilidade da ciência. Segundo
ele, haveria ainda outra possibilidade não abordada até então: o juízo
sintético a priori. Além de ampliar o
conhecimento, este teria também caráter universal e necessário.
“Este
último tipo de juízo é caracterizado por Kant como independente da experiência,
porém relacionado a ela, já que diz respeito às suas condições de
possibilidade. Os princípios mais gerais da ciência, os fundamentos da física e
da matemática e os juízos filosóficos da teoria do conhecimento que Kant
pretende estabelecer, pertenceriam a esta nova classe de juízo.” (MARCONDES,
2010, p. 214) [6].
Esse
passo, certamente, constitui um momento chave da teoria kantiana. É através da prova
da possibilidade de existência de juízos sintéticos a priori que Kant opera na metafísica aquilo que ele próprio
comparou à revolução feita por Copérnico no campo da Astronomia: a inversão de
perspectiva entre o sujeito e o objeto.
Com
a mudança de referencial, o objeto só seria acessível ao sujeito condicionado
às suas estruturas subjetivas. Portanto, diferentemente da metafísica dogmática
tradicional, não haveria a possibilidade de conhecimento da totalidade do
objeto, da “coisa em si” (númeno), mas
apenas de sua aparência, de sua realidade que é apreendida pela experiência (fenômeno). Não se pode deixar de notar,
entretanto, que
“essa
redefinição, por mais severa que seja em relação às pretensões especulativas da
razão dogmática, é pautada pela premissa de que pensar é mais do que simplesmente perceber e ligar percepções – de que, portanto, toda percepção só
se torna inteligível na medida em que se subordina a regras prévias que
projetam o que é determinado como
experiência em uma totalidade sistemática posta pela razão” (FIGUEIREDO, Op. Cit., p, 23).
Assim,
esquematicamente, na concepção kantiana, o conhecimento do objeto se dá mediante
o exercício de duas faculdades da mente humana, a saber: a sensibilidade e o entendimento.
E, visto que, para Kant, não há possibilidade de experiência sem razão,
“qualquer determinação objetiva é marcada, em sua origem, pelo modo como algo
nos afeta (Estética transcendental) e
pela maneira como o que é dado pelos sentidos é pensado pelo entendimento (Lógica transcendental)” (Ibidem, p. 23).
O
ato cognoscitivo consiste, portanto, na união dos dados sensíveis, cuja
receptividade é intuitiva, aos conceitos gerais formulados pelo entendimento. Enquanto
pela sensibilidade os objetos são apreendidos sob as duas formas de intuição
inerentes à própria estrutura do sujeito – o espaço e o tempo –, pelo entendimento
os dados sensíveis ganham unidade conceitual, possibilitando o pensamento.
Há ainda,
entretanto, na filosofia de Kant, e talvez esse possa ser considerado o ponto
alto de sua revolução copernicana, a possibilidade de um uso puro da razão,
totalmente especulativo, independente da experiência e que não produz
conhecimento. Para isso, há de se fazer a importante distinção entre os
conceitos puros do entendimento e as Ideias
da razão.
Segundo Kant:
“Se
o entendimento pode ser definido como a faculdade de unificar os fenômenos
mediante regras, a razão é a faculdade de unificar as regras do entendimento
mediante princípios. Nunca se dirige, portanto, imediatamente à experiência,
nem a nenhum objeto, mas tão-só ao entendimento, para conferir ao diverso dos
conhecimentos desta faculdade uma unidade a priori, graças a conceitos; unidade que pode chamar-se unidade
de razão e é de espécie totalmente diferente da que pode ser realizada pelo
entendimento” (CRP, A 359).
Assim, na medida em que colabora
para o conhecimento, através da unificação dos resultados obtidos pelo
entendimento, a razão possui conceitos racionais ou Ideias. Enquanto a razão,
em seu uso lógico, relaciona as proposições do entendimento, formulando apenas
silogismos provenientes da relação, a Ideia, por sua vez, contrariamente ao
conceito do entendimento, é sempre derivada, nunca primitiva.
“A razão, pela Idéia transcendental,
persegue um fim totalmente diferente do entendimento, que não cessa de
percorrer as séries de condições sem nunca chegar a uma condição primeira ou
última; a razão procura a integralidade de todas as condições que ela tenta
incluir numa totalidade. A razão se define pela procura do incondicionado. O
incondicionado é o absoluto, o que é válido sem restrição alguma. O absoluto é
a totalidade, ou o que é o mesmo, o sistema” (CRAMPE-CASNABET, Op. Cit., p. 62).
A Idéia seria uma espécie de focus imaginarius, ou seja, um ponto de
fuga, localizado fora de toda experiência possível, que confere unidade e
extensão máximas aos conceitos do entendimento. Segundo Kant, se a natureza
fosse destituída de um princípio interno de ordenação, seria impossível ao
entendimento, por si mesmo, afastar a hipótese de desordem empírica, visto que sua
competência é exatamente a determinação de fenômenos enquanto objetos da
experiência.
A dialética transcendental ensina, dessa forma, através da afirmação
da razão e suas idéias, que, apesar da natureza não se constituir como um
sistema em si mesmo, a experiência pode ser pensada como um sistema de leis
empíricas. A harmonia e a finalidade da natureza, ao invés de derivarem da
experiência, devem ser questionadas pelo homem a partir da vocação sistemática
da razão, de maneira a se considerar o conhecimento empírico defeituoso e
inadequado enquanto este não for conforme à idéia de sistema (Cf. FIGUEIREDO, Op. Cit., p.52).
Com essa argumentação, Kant
acreditou estar se livrando daquilo que ele mesmo denominou ilusão metafísica, uma espécie de
inclinação que desvia o homem da verdade. Seu objetivo era pôr freio “à pretensão da
razão pura de ultrapassar o campo da fenomenalidade, de ir além dos limites
marcados para a possibilidade de conhecimento humano, de operar a passagem
mortal do conceito para a existência” (CRAMPE-CASNABET, Op. Cit., p. 60).
Apesar disso, é importante notar que,
a despeito do caráter restritivo quanto ao uso especulativo da razão, a Crítica
também apresenta uma utilidade positiva, o que possibilitou Kant chegar ao uso
prático da razão, seu objetivo maior. Nas palavras do próprio Kant,
“se nos compenetrarmos de que os
princípios, em que a razão especulativa se apóia para se arriscar além dos seus
limites, têm por conseqüência inevitável não uma extensão mas, se considerarmos mais de perto, uma restrição do uso da nossa razão, na
medida em que, na realidade, esses princípios ameaçam estender a tudo os
limites da sensibilidade a que propriamente pertencem, e reduzir assim a nada o
uso puro (prático) da razão. Eis porque uma crítica que limita a razão
especulativa é, como tal, negativa, mas na medida em que anula um obstáculo que
restringe ou mesmo ameaça aniquilar o uso prático da razão, é de facto de uma
utilidade positiva e altamente
importante, logo que nos persuadirmos de que há um uso prático absolutamente
necessário da razão pura (o uso moral), no qual inevitavelmente se estende para
além dos limites da sensibilidade, não carecendo para tal, aliás, de qualquer
ajuda da razão especulativa, mas tendo de assegurar-se contra a reacção desta,
para não entrar em contradição consigo mesma” (CRP, BXIV,XV).
IV – Os não-limites da razão e a
necessidade de radicalização da crítica:
Aparentemente
procurando resguardar sua teoria da crítica dos metafísicos tradicionais, Kant
estabeleceu uma importante distinção entre o procedimento dogmático da razão e o dogmatismo. Enquanto o primeiro seria, para ele, justificável,
visto que a ciência, estritamente demonstrativa, baseia-se em princípios a priori, o segundo deveria ser
combatido devido a sua postura acrítica em relação à capacidade de conhecimento
da razão.
Entretanto, a não-radicalidade da
crítica kantiana da razão teórica permitiu com que seu ponto de partida real
permanecesse oculto (Cf. DOOYEWEERD, 2010, p. 74) [7], conservando
um caráter dogmático, se não idêntico, pelo menos semelhante ao combatido por
ele. Dessa forma, a autonomia do pensamento teórico, “mesmo sem ser justificada
por um exame crítico sobre a estrutura interna da própria atitude teórica do
pensamento” (DOOYEWEERD, Op. Cit.,
p.74) continuou gozando do status de
condição intrínseca da verdadeira filosofia.
Desde
os gregos, passando pelo escolasticismo tomista, até a filosofia secular
moderna, a autonomia da razão sempre constituiu a base comum que unia essas
diferentes correntes de pensamento. Contudo, a variedade de sentidos atribuídos
a essa mesma autonomia no interior das diferentes escolas filosóficas é, de
fato, um aspecto revelador de pressuposições mais profundas que ultrapassam os
limites do pensamento teórico.
“Em última análise, essas mesmas
pressuposições determinam o sentido atribuído à autonomia. Isso, por sua vez,
não está de acordo com a visão dogmática tradicional do pensamento filosófico.
Pois essa visão implica que o ponto de partida último da filosofia deveria ser
encontrado no próprio pensamento. Todavia, devido à falta de um sentido
unívoco, a pretensa autonomia não pode garantir uma base comum para as diversas
correntes filosóficas. Ao contrário, esse dogma parece ter continuamente
impedido um contato real entre as escolas e correntes filosóficas, o que
comprova uma divergência de suas pressuposições mais profundas, as
suprateóricas[8]”
(Ibidem, p. 50).
É verdade que a simples
possibilidade da existência de pressuposições suprarracionais não prova a
impossibilidade de uma teoria filosoficamente autônoma. Mas, por outro lado, é
suficiente para demonstrar que é necessário fazer das afirmações dogmáticas
referentes à autonomia da razão teórica um problema crítico. Assim, em última
instância, a preocupação não deve ser se a filosofia tem demonstrado um caráter
autônomo, independente de crenças ou religião. “Antes, a questão em pauta é se
essa autonomia é requerida pela natureza interna do próprio pensamento,
estando, então, implicada nessa natureza como possibilidade intrínseca” (Ibidem, p. 51). E a resposta dessa
questão só pode advir de uma “inquirição crítica radical[9],
direcionada às condições universalmente válidas que, sozinhas, tornam o
pensamento teórico possível e que são requeridas pela própria natureza e
estrutura interna do pensamento” (Ibidem,
p.52).
Como
poderia, portanto, ser caracterizada a atitude teórica do pensamento? Para Herman Dooyeweerd, essa atitude teórica
apresenta uma estrutura antitética,
onde os aspectos lógicos do pensamento são opostos aos aspectos não lógicos da realidade temporal. Como primeiro passo para a compreensão dessa relação,
deve-se perceber que o pensamento teórico é limitado ao horizonte temporal da
experiência humana e somente nele se move. A experiência temporal, por sua vez,
apresenta uma grande diversidade de aspectos
modais[10],
que são, primariamente, aspectos do próprio tempo, não referindo-se, como tais,
“a um concreto que, i.e., a coisas ou
eventos concretos, mas apenas a um como,
i.e., o modo particular e fundamental, ou a maneira pela qual os
experimentamos” (Ibidem, p.54). Dessa
forma, esses aspectos são apenas modos fundamentais da experiência, não devendo
ser identificados com os fenômenos concretos da realidade empírica, que
funcionam, em princípio, em todos os aspectos [11].
Assim,
“essa dissociação analítica dos aspectos
pressupõe que eles foram teoreticamente abstraídos do elo contínuo de sua
coerência na ordem do tempo. Isso significa que não podemos capturá-los em
conceitos lógicos sem separá-los de todos os outros aspectos em uma
descontinuidade lógica abstrata. Mas isso não significa uma eliminação do real de seu elo de coerência que, ao
contrário, permanece sendo a condição e a pressuposição necessária de sua
dissociação e oposição teórica. Isso apenas prova a impossibilidade de conceber
essa coerência de uma forma analítica pelo pensamento teórico” (Ibidem, p.61).
Dessa forma, a pergunta por esse elo
contínuo de coerência entre os aspectos lógico e não lógico da experiência
humana, de onde os aspectos são abstraídos, revela primeiramente, em
concordância com Kant, a falsidade da idéia dogmática “de que o pensamento
teórico seria capaz de penetrar a realidade empírica como essa realmente é, ou
mesmo um campo metafísico do ser, que seria independente de possíveis
experiências humanas” (Ibidem, p.
61). Após isso, o questionamento que surge é o seguinte: qual seria, então, o
ponto de referência central na consciência humana a partir do qual essa síntese
teórica pode se iniciar?
A resposta a essa questão,
obviamente, não poderá ser encontrada no interior da própria síntese. Além da
relação antitética não oferecer em si mesma uma ligação entre o aspecto lógico
e a experiência integrada, não há na ordem temporal, que garante a
inquebrantável coerência dos aspectos, um ponto central de referência que
transcenda a variedade das esferas modais. Assim, o verdadeiro ponto de partida
de uma união teórica entre os modos experienciais lógicos e os não lógicos
“deve necessariamente transcender a antítese teórica e relacionar os aspectos
que foram dissociados e opostos um ao outro em uma unidade central” (Ibidem, p.68) da consciência humana.
“Isso significa que o dogma relacionado
à autonomia do pensamento teórico necessita forçosamente conduzir seus
aderentes a um impasse aparentemente
inescapável. Para manter essa autonomia, eles são obrigados a buscar o seu
ponto de partida no próprio pensamento teórico. Todavia, em virtude de sua
estrutura antitética, esse pensamento está limitado à síntese teórica
intermodal entre o aspecto lógico e o não lógico. Mesmo uma assim chamada
‘lógica formal’ não pode ser realizada sem uma síntese entre o aspecto lógico e
aquele de significação simbólica, os quais não são de forma alguma idênticos” (Ibidem, p. 69).
Dessa maneira, toda vez que o pensamento filosófico busca
seu ponto de partida nos pontos de vista teóricos especiais, acaba por cair na absolutização de um aspecto modal
especial sinteticamente concebido. Esse processo é o responsável pela
construção de todos os ismos na visão
teórica da experiência humana e nasce da tentativa de redução de todas as
modalidades da experiência temporal à simples modalidade do aspecto
absolutizado. Surgem então o historicismo, o psicologismo, o biologismo e assim
por diante.
O grande problema, todavia, é que nenhuma dessas absolutizações
é capaz de se justificar de um ponto de partida puramente teórico. “Ao contrário,
o pensamento teórico, em virtude de seu caráter antitético e sintético, está
limitado à irredutível diversidade dos modos fundamentais da experiência e suas
inter-relações” (Ibidem, p.70). Não
há, dessa forma, na esfera do pensamento teórico, espaço para a absolutidade de
um aspecto, evidenciando, de forma ainda mais clara, a influência de motivos
suprateóricos mascarados pela ideia de um pensamento filosófico autônomo.
É verdade que esse argumento ainda não demonstra a
impossibilidade de o pensamento filosófico encontrar seu ponto de partida em si
mesmo. Analisando a possibilidade de demonstração da autonomia da razão por
Kant em seu método crítico-transcendental, Dooyeweerd afirma o seguinte:
“Para descobrir o ponto de partida
imanente do pensamento teórico como ponto de referência central de toda síntese
teórica, Kant aponta para a necessidade de uma autorreflexão em nossos atos
teóricos de pensamento, direcionando nossa reflexão ao eu pensante. Essa asserção contém, de fato, uma grande promessa.
Pois está além de toda dúvida que na medida em que o pensamento teórico em sua
função lógica continuar a ser direcionado meramente aos aspectos modais opostos
de nosso horizonte de experiência, ele permanecerá disperso na diversidade
teórica desses aspectos. Apenas quando o pensamento teórico é direcionado ao ego pensante, torna-se capaz de adquirir
a direção concêntrica para a unidade última de nossa consciência, à qual toda a
diversidade modal do horizonte da nossa experiência está relacionada. Se
perguntarmos a todas as ciências especiais engajadas em pesquisas antropológicas:
o que é o homem? receberemos uma grande diversidade de informações referentes
aos diferentes aspectos da existência humana temporal. Essas respostas são, sem
dúvida, importantes. Mas mesmo combinando esses diferentes pontos de vista
particulares por meio dos quais as respostas são dadas, não se poderá encontrar
uma resposta à pergunta central: o que é o homem na unidade central do seu eu? O caminho da autorreflexão crítica é,
consequentemente, o único que pode conduzir à descoberta do verdadeiro ponto de
partida do pensamento filosófico” (Ibidem,
p. 71-72).
E aqui, surge mais uma questão: como
é possível essa direção concêntrica do pensamento em direção ao ego e qual é a
sua fonte? Kant, ao assumir o dogma da autonomia da razão, não foi capaz de
perceber esse problema. “Portanto, ele foi obrigado a buscar o ponto de
referência central da síntese teórica no aspecto lógico do pensamento, que ele
denomina entendimento” (Ibidem, p. 72). Sua noção de “eu penso”
precisaria, necessariamente, acompanhar todas as representações, constituindo-se
naquele polo lógico subjetivo do pensamento que não pode ser objeto do
pensamento, já que ele mesmo é responsável por originar o pensamento.
Esse suposto centro lógico do
pensamento teórico foi o que Kant denominou “unidade transcendental da
apercepção”[12],
sujeito lógico-transcendental, ou “ego”. Este seria uma unidade lógica
subjetiva de caráter absolutamente simples, não admitindo nenhuma multiplicidade
ou diversidade de componentes. Além disso, esse eu lógico não poderia ser confundido com o ego empírico, a pessoa
humana que se percebe no tempo e no espaço; deveria, por outro lado, ser
entendido como uma condição geral de qualquer ato de pensamento, não possuindo
qualquer tipo de individualidade. Enfim, seria esse “o sujeito lógico-teórico
ao qual toda a realidade poderia ser oposta como seu contrapolo objetivo, seu
objeto de conhecimento e experiência” (Ibidem,
p. 73).
Assim, enquanto pólo lógico-subjetivo
da antítese pela qual o conhecimento teórico se dá, o sujeito lógico
transcendental de Kant nunca poderá ser o ponto de referência central da
experiência humana na ordem temporal, com toda sua diversidade de esferas
modais. Nas palavras de Dooyeweerd:
“O ‘cogito’ no qual Kant tem seu ponto
de partida não pode ser meramente uma unidade lógica. Pois ele implica a
relação fundamental entre o ego e seus atos de pensamento, os quais de forma
alguma são idênticos. Uma unidade lógica, por outro lado, jamais poderá ser uma
unidade absoluta sem multiplicidade. Isso contradiria a natureza modal do
aspecto lógico. Assim, a visão de Kant do ego transcendental se baseia em pura
mitologia. Ela implica uma identificação contraditória do eu central com suas funções lógicas subjetivas” (Ibidem, p. 74).
V – Conclusão:
Não restam dúvidas sobre a
importância da contribuição da filosofia kantiana para o pensamento ocidental.
Verdadeiramente, sua obra não só influenciou e ainda influencia muitos
pensadores hodiernos, como também, conforme foi visto, representou uma
revolução na maneira do pensar filosoficamente. Especialmente sua Crítica da Razão Pura, obra que trata dos problemas concernentes ao objeto desse
estudo, teve fundamental importância para a consolidação do ideário iluminista
de uma nova era onde a razão teria atingido sua maioridade.
Entretanto, apesar do enorme impacto
de seu pensamento na história da filosofia, não se pode afirmar que Kant tenha
tido sucesso na elaboração de um pensamento que correspondesse às suas reais
intenções. Na tentativa de estabelecer os limites da razão humana para não cair
no dogmatismo tradicional, Kant não foi capaz de perceber as raízes mais
profundas que orientam o homem no ato cognoscitivo. A autonomia do pensamento
teórico foi mantida e, conseqüentemente, seu verdadeiro ponto de partida
manteve-se encoberto.
Assim, uma crítica do conhecimento
que pretenda ser realmente radical não obterá êxito a menos que se debruce
atentamente à natureza interna do eu,
ou seja, sem o autoconhecimento já defendido por Sócrates. É preciso entender
que “o mistério do ego humano central é o fato de que ele não é nada em si
mesmo, i.e., olhado à parte das relações nas quais se apresenta” (Ibidem, p. 78).
A primeira dessas relações, a do ego
com o horizonte temporal da experiência, não é capaz de determinar o caráter
interno do ego, a não ser de forma negativa. Não existe um eu lógico, histórico
ou moral, visto que sua unidade central não pode ser encontrada na diversidade
modal da ordem temporal. Além dessa, é possível falar da relação do eu com os outros, uma “relação comunal central entre o centro individual da experiência
encontrado também na fundação de qualquer relação comunal no pensamento
teórico” (Ibidem, p. 79). Mas,
poderia essa relação eu-tu fornecer
um conteúdo positivo à autoconsciência humana? Analisada apenas em si mesma,
obviamente não, visto que o ego do outro
se confronta com o mesmo mistério do eu.
Mas existe ainda outra relação
central que transcende o ego humano e aponta para sua origem divina: a relação
religiosa homem-Deus. “Pode-se objetar que essa relação excede os limites do
pensamento filosófico. Isso é certamente verdadeiro, uma vez que o pensamento
filosófico está limitado ao horizonte temporal da experiência com sua
diversidade de aspectos modais” (Ibidem,
p. 81). Contudo, é somente a partir dessa relação que a filosofia, em sua
atitude teórica, pode adquirir a direção concêntrica sobre o eu.
Nas palavras de Dooyeweerd,
“se nosso pensamento não está
direcionado para essa relação religiosa central que aponta acima do ego
pensante, em direção à sua origem absoluta, toda autorreflexão crítica estará
condenada a resultar na conclusão de que o ego não é nada. Essa conclusão, entretanto,
é sem sentido, uma vez que implica a negação do próprio pensamento teórico;
pois o último não é nada sem o ego. Assim, uma reflexão filosófica que não se
direciona para a relação religiosa central será obrigada a buscar o ego no
horizonte temporal de nossa experiência a fim de evitar um resultado niilista.
Consequentemente, tal reflexão abandonará a atitude crítica e fará do ego
central um ídolo, absolutizando um dos aspectos modais de nossa consciência
temporal” (Ibidem, p.81).
VI – Bibliografia:
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impossibilidade da ontologia enquanto ciência. In: Kalagatos – Revista de
Filosofia do Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE. Fortaleza, V. 3, N. 5,
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- CRAMPE-CASNABET, Michèle. Kant:
Uma Revolução Filosófica. [Tradução: Lucy Magalhães] – Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1994.
- DOOYEWEERD, Herman.
No crepúsculo do pensamento ocidental. [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de
Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.
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FIGUEIREDO, Vinícius de. Kant & a Crítica da razão pura. Rio
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Alexandre Fradique Morujão] – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
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_______________. Prolegômenos. [Tradução: Artur Morão] - Lisboa: Edições
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MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: Dos
pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.
-
SILVEIRA, Fernando Lang da. A teoria do conhecimento de Kant: o idealismo
transcendental. In: Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis,
V. 19, número especial: p. 28-51, jun 2002. Disponível em < http://www.if.ufrgs.br/~lang/Textos/KANT.pdf
> Acesso em 27 Agosto 2011.
[1]
SILVEIRA, Fernando Lang da. A teoria do conhecimento de Kant: o
idealismo transcendental. In: Caderno Brasileiro de Ensino de Física,
Florianópolis, V. 19, número especial: p. 28-51, jun 2002. Disponível em < http://www.if.ufrgs.br/~lang/Textos/KANT.pdf
> Acesso em 27 Agosto 2011.
[2] FIGUEIREDO, Vinícius de. Kant
& a Crítica da razão pura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
[3]
KANT, Immanuel. Prolegômenos.
[Tradução: Artur Morão] - Lisboa: Edições 70, 1982.
[4] CRAMPE-CASNABET, Michèle. Kant: Uma Revolução Filosófica.
[Tradução: Lucy Magalhães] – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
[5] KANT, Immanuel. Crítica da
razão pura. [Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão] – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
[6] MARCONDES, Danilo. Iniciação
à história da filosofia: Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2010.
[7]
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de
Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.
[8] “Dooyeweerd distingue três
diferentes ‘atitudes’ ou modos de pensamento: (1) Uma atitude pré-teórica que
também é descrita como ordinária ou (segundo Husserl), a atitude natural. Esse
é o modo do ‘estar no mundo’ do dia a dia, experimentando objetos e pessoas
como totalidades concretas. (2) Na atitude teórica abstrai-se de a experiência
pré-teórica, e reflete-se sobre ela, refratando-a em uma multiplicidade de
‘modos’ ou ‘aspectos’ (o que será discutido abaixo). Em razão de requerer uma
abstração da experiência ordinária, o pensamento teórico é também, em certo
sentido, ‘não natural’. (3) Dooyeweerd aqui discute o nível suprateórico, o
qual excede os limites do pensamento teórico e é o campo dos compromissos de
fé”. (Ibidem, p. 50).
[9] “‘Radical’ é usado aqui com um
sentido preciso: derivado do Latim radix,
esta se refere à crítica que penetra nas ‘raízes’, nas pressuposições
fundacionais que estão na base do pensamento teórico. Isso requer uma ‘leitura
radical’, uma leitura profunda, sob a superfície” (Ibidem, p. 51).
[10]
“O que Dooyeweerd descreve como ‘aspectos’, ‘modos’, ‘modalidades’ ou
‘esferas modais’ são simplesmente aspectos de uma ‘coisa concreta’ que são
destilados apenas na atitude teórica. É importante compreender que esses
‘modos’ não existem da mesma forma que entidades; isto é, na terminologia de
Husserl, eles são irreais, distinguidos explicitamente apenas na consciência
teórica. Por exemplo, essa mesa é uma totalidade concreta; mas quando a
considero na atitude teórica, reconheço que ela tem um aspecto estético (seu design), um aspecto econômico (seu preço
e lugar em um mercado de bens), etc. A discussão mais extensiva da ‘teoria
modal’ de Dooyeweerd é encontrada na obra A
New Critique of Theoretical Thought, volume II:The General Theory of Modal
Spheres.” (Ibidem, p.54)
[11] Dooyeweerd enumera os seguintes
aspectos modais: numérico, espacial, de movimento extensivo, de energia
(relações físico-químicas), biótico, dos sentimentos e emoções, lógico,
histórico, lingüístico, social, econômico, estético, jurídico, moral e da fé.
[12] Kant, Crítica da Razão Pura,
A107/B132
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