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quinta-feira, 19 de abril de 2012

Marx e a tradição




KARL MARX E A TRADIÇÃO EM HANNAH ARENDT



Introdução:   

Chegarei assim diante dos campos, dos vastos palácios da memória, onde estão os tesouros de inúmeras imagens trazidas por percepções de toda espécie. Lá também estão armazenados todos os nossos pensamentos, quer aumentando, quer diminuindo, ou até alterando de algum modo o que nossos sentidos apanharam, e tudo o que aí depositamos, se ainda não foi
sepultado ou absorvido no esquecimento.
Quando ali penetro, convoco todas as lembranças que quero. Algumas se apresentam de imediato, outras só após uma busca mais demorada, como se devessem ser extraídas de receptáculos mais recônditos. Outras irrompem em turbilhão e, quando se procura outra coisa, se interpõem como a dizer: “Não seremos nós que procuras?” Eu as afasto com a mão do espírito da
frente da memória, até que se esclareça o que quero, surgindo do esconderijo para a vista.”. (SANTO AGOSTINHO, 2006, p.218) [1].

Hannah Arendt, grande admiradora de Santo Agostinho, também ofereceu um lugar de destaque à memória em sua filosofia.  Como Tocqueville, que afirmou que “desde que o passado deixou de lançar sua luz sobre o futuro, a mente do homem vagueia nas trevas” (TOCQUEVILLE, 1945 apud ARENDT, 2009) [2], Arendt viu a necessidade da valorização da história na construção do pensamento. A memória, entretanto, fora de um quadro de referência preestabelecido, dificilmente é capaz de ordenar informações desconexas. Nesse sentido, é a tradição que é apontada pela autora como a grande responsável por conferir sentido à história, oferecendo ao homem a consciência de continuidade no tempo.
Esse post tem como objetivo apresentar, de forma breve, o pensamento de Hannah Arendt sobre as relações existentes entre a filosofia de Karl Marx, a tradição filosófica e os terríveis eventos de natureza totalitária que assolaram o século XX. A autora, partindo do pressuposto de que o pensamento emerge de incidentes da experiência viva e a eles deve permanecer ligado, já que são os únicos marcos por onde pode obter orientação[3], mostra como a ruptura entre o passado e o futuro afetou não somente a história da filosofia, de forma restrita, mas acabou por atingir toda a realidade, transformando-se em um fato de importância política[4].


Marx e a Tradição:

Para Hanna Arendt, a tradição no pensamento ocidental pode ser delimitada por marcos precisos, tendo seu início nos ensinamentos de Platão e Aristóteles e findando com as teorias de Marx. Enquanto na República de Platão, por exemplo, a esfera dos assuntos humanos é descrita em tom depreciativo e há uma exaltação do mundo das idéias, em Marx a filosofia e sua verdade não só estão localizadas, como devem ser “realizadas” no âmbito do convívio humano, ou, em outras palavras, na sociedade.
Marx, entretanto, ao inverter a tradicional hierarquia clássica entre pensamento e ação, contemplação e trabalho e Filosofia e Política, acabou por conduzir seu pensamento a uma série de contradições. Arendt observou bem que as predições de Marx, como o desaparecimento do Estado e a abolição do trabalho não são em si mesmas utópicas, já tendo, inclusive, sido vivenciadas na antiga polis grega. Porém, enquanto na polis os cidadãos eram justamente aqueles que tinham tempo livre para se dedicar à atividade política, não precisando trabalhar, na teoria de Marx a sociedade sem classes conseguiria combinar os dois elementos: a liberação do trabalho e da atividade política.
Para Hannah Arendt, esse

“ideal utópico de uma sociedade sem classes, sem Estado e sem trabalho nasceu da reunião de dois elementos inteiramente não-utópicos: a percepção de certas tendências no presente que não mais podiam ser compreendidas dentro do quadro de referência da tradição, e os conceitos e ideias tradicionais através dos quais o próprio Marx as compreendeu e integrou.” (ARENDT, 2009, p. 47)

            Assim, numa atitude de rebelião consciente contra a tradição, Marx passou a afirmar algumas premissas fundamentais que direcionaram seu pensamento até o final. No lugar da tradicional ideia do homem como criação divina, Marx entendeu ser o trabalho que cria o homem. Como resultado dessa posição, Deus foi colocado de lado e o homem passou a ser visto como o responsável por sua própria humanidade, realizando a si mesmo à medida que trabalha. Além disso, o trabalho tomou o lugar da própria razão como especificidade e atributo máximo humano. O homem deixando de ser um animal rationale tornou-se um animal laborans.
            A violência também, até então considerada pela tradição o último recurso nas relações entre nações e nas ações domésticas, normalmente associada à tirania, ganhou em Marx uma conotação positiva, passando a ser considerada a parteira da História. Hannah Arendt observou que:

“A glorificação da violência por Marx continha [...] a mais específica negação do logos, do discurso, a forma de relacionamento que lhe é diametralmente oposta e, tradicionalmente, a mais humana. A teoria das superestruturas ideológicas, de Marx, assenta-se em última instância, em sua hostilidade antitradicional ao discurso e na concomitante glorificação da violência” (Ibidem, p. 50).

            Por último, sobrepondo a ação ao pensamento, Marx de forma explícita afirmou que mais importante do que interpretar o mundo, como fazem os filósofos, é transformá-lo. A simples afirmação dessa ideia, todavia, não fazia o mínimo sentido dentro do quadro de referência em que a tradição filosófica se movia até então. De Platão a Hegel a Filosofia tinha sido entendida como “não sendo deste mundo”.
            O grande problema dessas afirmações de Marx foi que em seu interior existiam contradições insolúveis em seus próprios termos. Se é o trabalho que realiza a humanidade do homem, que cria o homem, o que acontecerá quando, depois da revolução, a sociedade sem classes abolir o trabalho? Sendo a violência a parteira da história e, portanto, a mais honrada das ações humanas, o que acontecerá quando o objetivo final da revolução tiver sido alcançado? E por fim, quando a Filosofia tiver sido totalmente realizada, que espécie de pensamento restará?

Conclusão:

Apesar de todo esse esforço despendido por Marx contra a tradição política, assim como os esforços de Kierkegaard e Nietzche em subverter, respectivamente, a tradição religiosa e a metafísica tradicional, Hannah Arendt entendeu que responsabilizá-los pela situação caótica em que mergulhou o século XX seria não somente injusto, mas perigoso. Para ela, o peso da tradição no pensamento humano independe completamente da consciência que se tem dela. Assim, esses filósofos, ao ousarem pensar sem a orientação de nenhuma autoridade, não foram capazes de perceber que permaneciam influenciados pelo quadro de referência categórico da grande tradição[5].
            Dessa maneira, não admitindo que a grande quebra da história, que produziu um fosso intransponível entre o passado e o futuro, possa ser atribuída a esses homens ou a qualquer espécie de pensamento, Hannah Arendt afirmou que na origem dos catastróficos acontecimentos que marcaram o século XX está o

“caos de perplexidades de massa no palco político e de opiniões de massa na esfera espiritual que os movimentos totalitários, através do terror e da ideologia, cristalizaram em uma nova forma de governo e dominação. A dominação totalitária como um fato estabelecido, que, em seu ineditismo, não pode ser compreendida mediante as categorias usuais do pensamento político, e cujos ‘crimes’ não podem ser julgados por padrões morais tradicionais ou punidos dentro do quadro de referência legal de nossa civilização, quebrou a continuidade da História Ocidental. A ruptura em nossa tradição é agora um fato acabado. Não é o resultado da escolha deliberada de ninguém, nem sujeita a decisão ulterior.” (Ibidem, p.54).

            Referências bibliograficas:

ARENDT, Hannah. A Tradição e a Época Moderna. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Martin Claret, 2006.












[1] SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Martin Claret, 2006.
[2] ARENDT, Hannah. A Tradição e a Época Moderna. In:Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.
[3] Cf. ARENDT, 2009, Op. Cit. P. 41.
[4] Cf. Ibidem, p.40.
[5] Cf. ARENDT, Op. Cit, p. 56

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