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sábado, 21 de abril de 2012

Como conseguimos construir uma blindagem tão forte ao bom senso?


Por Vera Malaguti
Fragmento do texto: O Alemão é muito mais complexo

Passemos então a analisar essa colonização das almas que fez com que passássemos da crítica da truculência e da militarização da segurança pública à sua naturalização e agora ao aplauso, adesão subjetiva à barbárie. A executivização da mídia como agência do sistema penal brilhou mais uma vez no noticiário antes, durante e depois da simbólica ocupação do Alemão. Comecemos pelo tom épico da operação. No dia 26 de novembro de 2010 o jornal O Globo anunciava, além de um caderno especial, o dia D do combate ao tráfico em letras garrafais na primeira página: “população aplaude polícia e acompanha operação pela TV em clima de Tropa de Elite 3”. Essa combinação de peças publicitárias entre as UPPs e a perversa série de filmes de patrocínio comum já daria material para algumas teses. O cartunista e editor Chico Caruso não pestanejou: fantasiou o Cristo Redentor com o macabro uniforme preto do BOPE. Não ouvi um cristão reclamar, nenhuma bancada moralista protestar. Merval Pereira, nesse mesmo dia na página 4, dizia: “ontem foi dia de a realidade imitar a arte, foi dia de torcer pelo Capitão Nascimento de Tropa de Elite, que todos nós vimos em ação, ao vivo e a cores, nas reportagens das emissoras de televisão”. No dia 27 O Globo assinalava que a “ação do tráfico une população em apoio a polícia”; Eike Batista, espécie de proprietário-geral do Estado, “via na ação vontade de consertar o Rio”; no twitter, o novelista Aguinaldo Silva conclamava os moradores “a resistir”. Enquanto isso um novo blindado, superando o Caveirão, torna-se a estrela da Operação : “a reportagem do Globo embarca no veículo que caiu nas graças da PM”. A reportagem escamoteou ao máximo o mal estar produzido entre as Forças Armadas ao serem atiradas a essa aventura. Essa é uma discussão profunda e consistente que circula na inteligência militar brasileira. Eles conhecem mais que ninguém os riscos advindos dessa passagem ao ato. A Folha de São Paulo noticiou o mal estar . Neste mesmo jornal, no mesmo dia Fernando Barros e Silva falava do triunfalismo exorbitante da Tropa da Mídia.
O paradigma bélico para a Segurança Publica é um artefato, uma construção política através da qual o capitalismo contemporâneo controla os excessos reais e imaginários dos contingentes humanos que não estão no fulcro do poder do capital vídeo-finanaceiro. São esses pobres do mundo que inventam novos países para aportar, sobrevivem nas frestas do mercado com seus difíceis ganhos fáceis, enfim, à sua maneira são os mais verdadeiros empreendedores de um mundo em ruínas, como diz Marildo Menegat. No jornal O Globo : “Se a topografia das favelas cariocas remete às aldeias xiitas no Sul do Líbano, a superpopulação e a desordem urbana podem ser comparadas à Faixa de Gaza”. Peço atenção para a expressão “desordem urbana” e seus efeitos na paisagem de hoje do Rio. A cobertura do jornal já ostentava um logotipo para a cobertura, a Guerra do Rio, com um mini blindado, aquele mesmo que superou o Caveirão, lembrando-nos de Nils Christie e de sua dramática análise da indústria do controle do crime. A manchete é: O Rio é nosso, e a matéria é cheia de epítetos: liberdade, apoio, esperança. Nas entrelinhas o grande mistério, o número de mortos. Qual é oficialmente o número de mortos da pacificação do Alemão, do primeiro massacre até o dia D, combinando chacinas e massacres a conta-gotas? Na Folha apareceram matérias sobre os relatos dos moradores do Alemão, denunciando a existência de corpos na mata com a polícia impedindo o acesso ao local . No dia 1º de dezembro , a Folha também noticiou as queixas de abuso dos moradores, mas nada poderia empanar o sucesso do plano. É incrível como meses depois vem à tona o conjunto de atrocidades, roubos, extorsões cometidas contra os pacificados; escutas mostravam policiais dividindo o botim, uma verdadeira Serra Pelada, diriam eles. Como essa constatação não levou nenhum articulista a questionar o caráter em si da operação, e nem os leitores disciplinados? Como conseguimos construir uma blindagem tão forte ao bom senso? Técnicas de neutralização de que fala Zaffaroni d´après Sykes e Matza. A guerra estava tão naturalizada que os excessos eram recebidos como o que Bush chamou de dano colateral, a morte de civis iraquianos.
Essa cobertura espetaculosa foi sintetizada por José Simão: “E sabe o que a Globo falou pro Bope: PODE INVADIR QUE A GENTE DÁ COBERTURA” e "Policial do BOPE que mata 3 traficantes pode pedir música no Fantástico. E a Globo fez o Ibope do Bope: 88% apóiam ações no Rio...E os corpos dos outros 12% não foram encontrados para opinar. Rarara! Eu já falei que o Bope fechou contrato com a Globo!” A verdade é que a ocupação publicitária juntou os dois eventos: o lançamento de Tropa de Elite e a pacificação são negócios conexos, não é à toa que o inspirador do Capitão Nascimento, o matador limpo e puro, virou âncora, agora alçado à rede nacional, concordando sempre com tudo o que acontece no Rio. A glorificação da polícia de preto e suas caveiras e canções foi sendo construída ao longo do tempo. Em novembro, mesmo mês da Operação, O Globo faz uma série de matérias sobre o lançamento do filme: “Operação de guerra para proteger tropa 2” . No Gente Boa : “Wagner Moura falou sobre a cena em que espanca um político corrupto, que vem sendo aplaudida nos cinemas: também tive prazer quando bati”.
Na Revista de Domingo do mesmo jornal : “Fé no Bope é o nome da matéria sobre o show da banda gospel Tropa de Louvor, formada por policiais evangélicos do Bope”. Na entrevista a Mauro Ventura na revista de domingo do Globo de 10 de outubro de 2010 um ex-capitão do Bope ressalta a importância do filme: “Por causa do filme Tropa de Elite o Bope ficou em evidência. As pessoas queriam ajudar e não sabiam como. Por isso inauguramos um escritório de projetos”. Ao falar do personagem que inspirou no filme, o Matias: “Quando me apresentaram o Ramiro, pensei: é parecido comigo. E do nada dei um tapão na cara dele. Era um teste”. O estrategista que organizou o lançamento afirmou que “soubemos criar expectativa” . No mesmo Gente Boa : “Capitão Nascimento ajuda a ciência”. A farda do filme foi leiloada para construir laboratório em leilão com participação de atores globais. Mauro Ventura entrevista o comandante-geral da PM: “Esse troço de UPP é sensacional. Apontou uns garotos: Era tudo do tráfico, mas nenhum fichado. Usavam cordão de ouro, cabelo amarelinho. Agora, pararam de pintar, tiraram cordão e até o andar mudou. Estão empurrando carrinho de mercado, todos trabalham”. Enfim, a pacificação e a ocupação abriram o caminho para as UPPs que se constituem em ocupações permanentes dessas áreas faveladas, instituindo uma cultura do Estado de polícia que foi arquitetada numa operação militar e publicitária que alavancou o projeto e também o filme que é distribuído pela Globo filmes. Como vimos, no Rio há uma vasta hegemonia de um grande grupo econômico na gestão do Estado. Na Segurança Pública isto é posto em evidência de uma forma explícita. Fechemos com Merval Pereira : “Ainda Tropa de Elite: ...A política de ocupação das comunidades carentes foi um marco no atual governo, diz ele (Mauricio Renault, leitor). E, seguindo uma tendência generalizada, compara o secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame ao Capitão Nascimento, que “não retrocederá frente aos inimigos e coloca uma máquina de guerra contra os traficantes”.
A adesão subjetiva ao Estado de polícia contou com adeptos à direita e à esquerda: uma chance única, disse o Senador ex-cara pintada. O ministro da Educação emocionou-se ao “ver a polícia do Rio de Janeiro colocar sua própria vida para preservar a ordem publica”. Do Haiti, onde sua lucrativa ONG prospera, Rubem Cesar aprovou a criação da Força de Paz, o uso das Forças Armadas em conflitos urbanos desde – claro! – que monitorada por “controle externo”. Enquanto isso os moradores do Alemão contavam ou tentavam contar seus mortos. A OAB-RJ, que já havia se associado à Chacina do Pan (aquela saudada pela Revista Época como inovação no combate ao crime), lançou nota oficial em 24 de novembro de 2010 na qual apresenta “solidariedade e o voto de confiança da OAB-RJ neste momento difícil”. A solidariedade não era com os moradores mas com “os dirigentes da área de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro”. Não se manifestou sobre a prisão de advogados, nem estava a postos para ajudar a conter excessos, nem contra o conjunto de ilegalidades das operações de busca e apreensão coletivas postas em prática por essa guerra contra as favelas do Rio de Janeiro. Enquanto o dublê de âncora e capitão Nascimento, Rodrigo Pimentel, saudava no Globo a “mão forte do Estado”, os moradores tentavam se organizar para resistir. Quando Lula vai ao Alemão, no dia 21 de novembro, Jussara Raimunda, moradora e ativista comunitária, afirma: “É como se fosse um toque de recolher. Com isso fica a dúvida: é realmente paz ou apenas saímos de um sistema para cair em outro?” . No Globo online, reproduzindo o WikiLeaks , o Cônsul dos EUA, em telegramas sigilosos, declara que as UPPs se inspiram nas táticas de contrainsurgência aplicadas pelos americanos nas guerras do Iraque e do Afeganistão. Para Hearne, “a abordagem do programa de pacificação é uma reminiscência do limpar, manter e construir, a doutrina americana de contrainsurgência”. Na Folha de São Paulo , em entrevista, morador que não quis se identificar: “só o tempo vai dizer se foi bom ou não. Para nós mudou do civil para a farda, mas o fuzil é o mesmo”.

Fonte: ANF

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