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quinta-feira, 19 de abril de 2012

PROJETO DE PESQUISA PIBIC 2012-2013









O INDIVÍDUO CORAM DEO: ÉTICA, REPETIÇÃO E LIBERDADE NA FILOSOFIA EXISTENCIAL DE SØREN KIERKEGAARD
PROJETO DE PESQUISA PIBIC 2012-2013

Rodrigo Melo da Silva
ABRIL DE 2012











Resumo:

          O presente projeto de pesquisa tem como objetivo não apenas contribuir com a ainda tímida produção da academia brasileira a respeito do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, como também apresentá-lo como uma alternativa de pensamento no campo da Ética às tradicionais teorias de cunho humanista. Para isso, será introduzida a noção kierkegaardiana de Indivíduo singular, assim como os conceitos de Repetição e Liberdade como importantes fundamentos teóricos no sentido de construção de uma Ética menos impessoal e, consequentemente, mais humana.
Palavras-chave: Indivíduo, Ética, Repetição, Liberdade.


Introdução e justificativa:

            Apesar dos reconhecidos esforços por parte de um seleto grupo de pesquisadores e estudiosos[1], o pensamento do filósofo dinamarquês Søren Abbey Kierkegaard ainda continua bastante negligenciado pelo meio acadêmico brasileiro. Talvez pelo alto grau de complexidade de suas ideias, que muitas vezes misturam elementos da filosofia[2], da teologia e da psicologia – e tudo isso numa linguagem extremamente poética[3] –, dificultando qualquer esforço de sistematização simplista de seu pensamento, Kierkegaard tem permanecido relegado a segundo plano e despertado um interesse certamente desproporcional à importância de sua obra, especialmente nos ambientes filosóficos mais fortemente influenciados pelo dogma da autonomia da razão[4].
            Entretanto, sem medo de errar, é possível afirmar que, mesmo depois de mais de cento e cinquenta anos desde sua morte, a filosofia de Kierkegaard pode oferecer contribuições fundamentais não só para trazer luz e entendimento à análise dos tempos atuais, mas, sobretudo, para a transformação de sua realidade. Que a modernidade – com todos os seus sistemas racionalistas, incapazes de apresentar uma abordagem do ser humano que leve em consideração a multiplicidade das dimensões relacionais nas quais está inserido – tenha ruído, não parece restar tanta dúvida. Como observou Dooyeweerd: “A crise atual da civilização ocidental se manifesta como um declínio completo da personalidade humana, cujo testemunho é o surgimento do homem massificado” (DOOYEWEERD, 2010, p.242). Diante de um quadro como esse, torna-se imperativo retornar à provocação feita por Heidegger e perguntar

“‘qual a tarefa que ainda permanece reservada para o pensamento no fim da Filosofia?’ Qual é o sentido e qual é a tarefa da filosofia em um mundo massificado em que singularidade é desconstruída estrategicamente, para manter as consciências adormecidas e anestesiadas em uma homogeneidade escrota? Como ter coragem de pensar e agir filosoficamente num contexto em que a unicidade da pessoa humana tornou-se sinônimo de identificação globalizada e uniformizada? Será que a Filosofia atual tem medo de ‘mostrar o lado terrível da vida, as dores indescritíveis, as angústias da humanidade, o triunfo dos maus, o poder do acaso, que parece ridicularizar-nos, a derrota infalível do justo e do inocente?’ (SCHOPENHAUER, 2001, p. 266)” (ALMEIDA, 2011, p.80).

            Essas são perguntas que não devem e não podem ser ignoradas. A pós-modernidade, enquanto momento de transição – quando já é possível identificar os erros e as lacunas dos pensamentos precedentes, mas ainda não há clareza suficiente para trilhar um novo rumo que se mostre seguro – permanece sendo uma grande incógnita e ninguém sabe aonde chegará. Nesse contexto, a filosofia kierkegaardiana como um todo, e, em especial, sua abordagem sobre a Ética, objeto central dessa pesquisa, certamente será capaz de proporcionar insights preciosos a todos aqueles que se sentem impelidos a agir no sentido de transformar a realidade em seus mais variados aspectos.
            Além de tudo isso, se apenas a afirmação de Ricardo Gouvêa estiver correta – “Kierkegaard foi não somente um dos mais significativos pensadores do século XIX, mas de todos os tempos” (GOUVÊA, 2009, p. 213) –, qualquer esforço na direção de compreender melhor sua obra já estaria, de fato, justificado.

Objetivos gerais:

            A partir do período renascentista, o humanismo se desenvolve e ganha força “a noção de que o homem encontrará sua realização plena por meio de uma libertação plena de toda opressão” (CARVALHO, 2006, p.129). Entretanto, somado aos novos ideais de valorização do homem e da liberdade humana (ou talvez como própria consequência decorrente da interpretação equivocada do que viria a ser essa liberdade), os humanistas passaram a defender o controle racional da realidade. Com isso, a crítica racional, a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico passaram a ser vistos como instrumentos capazes não só de derrotar as forças opressoras, como também controlar toda a criação a fim de satisfazer as necessidades humanas. Em um contexto como esse, não demorou muito para que a natureza se transformasse em um obstáculo a ser superado e o mundo passasse a ser visto sob uma perspectiva mecanicista. Esse dualismo natureza/liberdade é identificado por Dooyeweerd como o motivo-base religioso[5] central que governa praticamente todo o pensamento moderno.
            O grande problema, contudo, é que, construído sobre esses pressupostos, o pensamento humanista acabou por se revelar totalmente autodestrutivo, jogando por terra qualquer possibilidade concreta de realização de seu ideal de liberdade. Como observou Carvalho:

“Para afirmar sua liberdade absoluta, o homem moderno excluiu Deus. Para controlar a natureza em seu benefício, explicou a natureza como um mecanismo impessoal. Entretanto, o próprio homem é parte da natureza! Assim, o homem também passa a ser explicado a partir das leis naturais, como um produto do mecanismo evolucionário, negando-se, com isso a sua liberdade e dignidade. E o ideal de ciência, nascido do ideal de personalidade, torna-se sua principal ameaça.
Ou seja: na busca desenfreada por liberdade, o homem moderno construiu uma ciência naturalista que renega sistematicamente a personalidade humana. Assim, no evolucionismo, o homem é meramente o produto da evolução biológica, no socialismo marxista o homem é meramente produto do sistema econômico; em várias teorias sociológicas, o homem é produto da sociedade; para muitos psicólogos, o homem é produto de pulsões irracionais subconscientes, ligadas à sua sexualidade e agressividade natural, e a personalidade não passa de uma ‘ilusão’” (Ibidem, p. 130-131).

            Dessa forma, o presente projeto de pesquisa tem como objetivo geral discutir a relação entre Ética e liberdade, procurando oferecer uma alternativa à abordagem humanista, entendida como insatisfatória. Para isso, será apresentada a filosofia existencial de Søren Kierkegaard, onde buscar-se-á enfatizar não só o caráter integral da existência humana, como também a preocupação do autor em construir uma filosofia que, ainda que reconheça seus limites, não abra mão do contato com a realidade.

Objetivos específicos:

          À provocativa pergunta kantiana “o que eu devo fazer eticamente”, Kierkegaard responde: a subjetividade é ética. O objetivo específico desse projeto de pesquisa é procurar entender de que forma a categoria do Indivíduo[6] se relaciona com concepções éticas universalistas e apresentar como proposta uma alternativa que contemple o ser humano como pessoa singular e não apenas como um conceito ou um número. Afinal, para o pensador existencial, “a existência não pode ser analisada nos moldes científicos. Ela não é uma ciência, é uma história, que envolve personalidades, relações e contradições paradoxais, que não se esgota em definições e demonstrações lógicas” (ALMEIDA, 2007, p.5).
            Para isso, será apresentado o Indivíduo enquanto Indivíduo coram Deo, ou, em outras palavras, o Indivíduo perante Deus, como categoria fundamental para a construção de uma ética que, apesar de valorizar bastante a ideia de liberdade, entende que essa liberdade deve ter seu fundamento em uma lei. “Sem a lei, liberdade pura e simplesmente não existe, e é a lei que dá a liberdade” (KIERKEGAARD, 2005, p. 56, apud MARTINS E VALLS, 2010, p. 12). Dessa forma, a ética do cavaleiro da fé não é, de forma alguma, autônoma, mas proveniente de sua relação com Deus. Entretanto, também não há espaço para heteronomia. Segundo Gouvêa,
           
“como a ética cristã é baseada no nomos do Criador, a ética bíblica não é heteronomia pois não é heteroios em relação a alguém que vive coram Deo. Ética bíblica é a exposição e elucidação dos nomiomata revelacionais, isto é, o nomos ético-cósmico em contraste com a anomia pecado, rebelião e idolatria. Estes nomiomata da ética bíblica são a base para o que Kierkegaard afirma sobre o homem que conheceu o Deus vivo: que ‘ele determina sua relação com o universal por sua relação com o absoluto, não sua relação com o absoluto por sua relação com o universal’” (GOUVÊA, Op. Cit, p. 234).

            Ainda nas palavras de Gouvêa,

“o tipo de ética que encontramos na tradição platônico-aristotélica não é apenas racionalista (pois apenas o que é humanamente imaginável e justificável pode ser a base e o conteúdo da ética), mas, do ponto de vista religioso, é idólatra, pois até Deus está sujeito a algo superior. Por outro lado, não se pode dizer que seja real, pois não considera a existência. É uma ética domada, muito cultural, muito aceitável, que não tem nada de importante a dizer além de obrigar a um certo padrão comportamental que é adequado e proveitoso para os dirigentes de uma sociedade. Isto não pode ser jamais o retrato de uma ética existencial, nem muito menos de uma ética cristã, pois o padrão da ética cristã deve ser o ensinamento de Jesus que está longe de ser um ensinamento domado, socialmente aceitável, culturalmente conservador, controlador de pessoas, mas sim um ensinamento devastadoramente contra-cultural, libertador, revolucionário e que ‘vira a mesa’” (Ibidem, p.244).

            Além disso, será apresentado o conceito de Repetição como importante ferramenta teórica no sentido de esclarecer a importante distinção entre a ética primeira[7], marcada pela mediação do universal, característica do estádio ético, e a ética segunda, fundamentada no relacionamento com Deus e que tem o amor como seu imperativo maior. Gouvêa entendeu que a Repetição, se não for o conceito mais importante trabalhado por Kierkegaard, certamente está entre os mais importantes. Ele vai ainda mais longe e afirma ser este “um conceito cujo alcance e cujas implicações ainda estão longe de serem descobertas, e que por isso mesmo deverá ser um dos conceitos filosóficos mais explorados do século XXI” (Ibidem, p.213).
            Assim, a partir do conceito kierkegaardiano de Indivíduo, buscar-se-á apresentar o pensamento ético do autor, que tem no conceito de Repetição seu ponto mais importante, visto ser através dele que o homem encontra a possibilidade real de concretização existencial de sua liberdade.
             
Metodologia:

            O método utilizado na elaboração da pesquisa será, como é próprio da filosofia, o método especulativo. Inicialmente será feito um levantamento bibliográfico, contando não somente com as obras do filósofo dinamarquês, como também com as de alguns de seus principais comentadores. Após isso, seguir-se-á a leitura e posteriormente a redação do trabalho final.

Cronograma:

Atividade/Bimestre
1
2
3
4
5
6
Levantamento bibliográfico
X
X




Leitura
X
X
X
X


Trabalho Final




X
X
                                                                                                                     

Referências Bibliográficas:

- ALMEIDA, Jorge Miranda de. Kierkegaard: pensador da existência. In: “Existência e arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007.
- _________________________. Subjetividade e Ética em Kierkegaard. In: Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, DF. Edição Especial - Dossiê Søren Aabye Kierkegaard, vol. 6, 2011, p. 79-91.
-ALMEIDA E VALLS, Jorge Miranda de e Álvaro L. M.. Kierkegaard. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Coleção passo-a-passo).
- CARVALHO, Guilherme V. R.. O Dualismo Natureza/Graça e a Influência do Humanismo Secular no Pensamento Social Cristão. In: CARVALHO, G. V. R. (Org.); LEITE, Cláudio A. C. (Org.); CUNHA, M. J. S. (Org.). Cosmovisão Cristã e Transformação: Espiritualidade, Razão e Ordem Social. Viçosa: Ultimato, 2006.
- DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental.  [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.
- GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Palavra e o Silêncio. São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2009.
- KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. [Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls] – Petrópolis, RJ: Vozes; São Paulo, SP: Editora Universitária São Francisco, 2010. – (Coleção pensamento humano).
- ____________________. O desespero humano. In: Os pensadores. [Tradução: Adolfo Casais Monteiro] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
- ____________________. Temor e Tremor. In: Os pensadores. [Tradução: Maria José Marinho] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
- MARTINS E VALLS, Jasson da Silva e Álvaro L. M.. Alteridade como fundamento da Ética em Kierkegaard. In: Revista Litterarius. v. 9, n. 2 (jul./dez. 2010).











[1] “O que se lia antigamente sobre Kierkegaard no Brasil apenas traduzia opiniões sem fundamento ou meros preconceitos. Ernani Reichmann foi a grande exceção, e continua lembrado como a estrela maior desse firmamento. Hoje já contamos com alguns doutores que leram Kierkegaard com atenção. Nomes como Ricardo Gouvêa, Sílvia Sampaio, Márcio de Paula, Deyve Santos, Guiomar de Grammont, Cleide Scarlatelli e outros mostram muito estudo dedicado ao dinamarquês” (ALMEIDA E VALLS, 2007, p. 75).
[2] Johannes de Silentio, pseudônimo utilizado por Kierkegaard em sua obra Temor e Tremor, chega a afirmar: “O presente autor de nenhum modo é um filósofo” (KIERKEGAARD, 1979, p. 110). A afirmação, entretanto, deve ser entendida levando-se em consideração não só o recurso da comunicação indireta, utilizado amplamente pelo autor, como, especialmente, a ironia, ferramenta também bastante explorada ao longo de toda sua obra.
[3] “Kierkegaard executa a elevação da poética ao status de reflexão teórica profunda e veículo de interiorização e aprofundamento da compreensão humana da vida e do mundo” (GOUVÊA, 2009, p. 53).
[4] Segundo o filósofo holandês Herman Dooyeweerd, esse seria, inclusive o grande problema do pensamento ocidental: “uma completa confusão a respeito da relação entre racionalidade e natureza humana” (DOOYEWEERD, 2010, p. 29). Um dos pontos centrais de sua tese é a afirmação de que “a razão teórica depende da orientação religiosa fundamental do ser humano, em direção ao que ele crê ser a fonte divina de todas as coisas” (Ibidem, p.28). Dessa forma, ele procura demonstrar que “o pensamento teórico reflete uma função ou aspecto particular da vida humana, o qual perde todo o sentido se deixa de ser compreendido em seu contexto humano integral” (Ibidem, p.29).
[5] Para Dooyerweerd, “o princípio motivador e controlador de uma cultura não é, primariamente, a política, a economia, ou as idéias, mas a religião. Cada comunidade espiritual é unida por um espírito comum, [...] que controla ativamente a vida dessa comunidade. Dooyeweerd chamou esse poder de motivo–base religioso (religious ground-motive) da cultura. Os motivos-bases são as forças motivadoras que dominaram o desenvolvimento da cultura, da ciência e da filosofia ocidental. Cada um deles estabeleceu uma comunidade espiritual entre aqueles que o iniciaram, e permaneceu oculto como o princípio espiritual subjacente de toda a produção cultural. Nesse sentido, os pensadores ocidentais muitas vezes foram dominados por um determinado motivo-base sem nem mesmo terem consciência disso; na verdade, o sentido religioso dos motivos-bases está além do alcance desses pensadores justamente porque toda explicação histórica, em si mesma, pressupõe um ponto de partida central e suprateórico que é dado por um motivo-base religioso” (CARVALHO, 2006, p.125).
[6] É interessante notar que na própria noção de Indivíduo proposta por Kierkegaard, já se encontra a noção de liberdade. Segundo ele: “O eu é formado de finito e de infinito. Mas a sua síntese é uma relação que, apesar de derivada, se relaciona consigo própria, o que é a liberdade. O eu é liberdade. Mas a liberdade é a dialética das duas categorias do possível e do necessário” (KIERKEGAARD, 1979, p.207)
[7] “A Ética mostra a idealidade como tarefa, e pressupõe que o homem esteja de posse das condições. Com isso, a Ética desenvolve uma contradição, justamente ao tornar nítidas as dificuldades. Vale para a Ética o que se diz da Lei, que é uma disciplinadora que, ao exigir, com sua exigência apenas julga, nada cria” (KIERKEGAARD, 2010, p. 19).

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