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quarta-feira, 18 de abril de 2012

Ciência e fé cristã

Apesar de ter assumido uma nova configuração nos últimos séculos, devido ao alto grau de secularização pelo qual passou o pensamento moderno, o debate entre ciência e religião não é, de forma alguma, uma novidade. Fé e ciência, na medida em que compartilham do mesmo objetivo da busca pela verdade a partir de uma crença fundamentada, sempre tiveram muito que contribuir uma com a outra.
Essa breve reflexão tem por objetivo abordar a estreita relação entre fé cristã e ciência, demonstrando ser impossível a construção de qualquer conhecimento científico destituído de um conteúdo religioso. Para isso, inicialmente será introduzida a diferença entre alguns tipos de conhecimento possíveis, mostrando ser o conhecimento científico apenas um deles. Em um segundo momento, será apresentado um brevíssimo panorama histórico, mostrando a relação entre o cristianismo e o desenvolvimento da ciência moderna. Por fim, será oferecida uma conclusão crítica, buscando-se defender a não contradição entre a Revelação Natural e a Revelação Especial das Escrituras.


O problema do conhecimento:

            O primeiro aspecto que precisa ser compreendido quando se trata do discurso científico é que a ciência começa sempre por um ato de fé. Toda pesquisa científica, a partir do momento que parte de uma hipótese, tem em sua origem um conjunto de pressupostos que a direciona. O olhar, ou a percepção, que se tem sobre o mundo empírico já é, desde o princípio, pré-condicionado por uma série de conceitos, quer sejam eles religiosos, filosóficos ou culturais.
            A fé, dessa forma, não pode ser identificada com a ciência em si mesma, mas é ela responsável por alterar a percepção da realidade. E, segundo Da Costa:

“Na dinâmica do conhecimento, há sempre o perigo circundante de nos tornarmos cativos de nossa perspectiva e, portanto, da nossa percepção. Como obviamente não conseguimos ter ‘todas as visões’, permanecemos, de certo modo, cativos de nossa maneira de ver, em outros termos: prisioneiros de nossa percepção. Nem sempre é fácil submeter os nossos valores ao rigor daquilo em que cremos. É extremamente difícil submeter a nossa teoria à nossa teoria. Esta parece extremamente adequada aos outros; não a ela mesma. Como o cientista tem dificuldade em revisitar os seus paradigmas, nós também temos dificuldade em rever a nossa cosmovisão. É muito difícil – talvez por ser doloroso demais – aplicar e avaliar em nosso próprio sistema as implicações do que sustentamos. Podemos, sem nos darmos conta, nos ferir com as nossas próprias armas, que julgávamos ser bisturis. Aliás, o mau uso do bisturi pode ser letal, assim como o ‘fogo amigo’ nas guerras. O antidogmatismo pode se constituir num dogma.” (DA COSTA, 2010, p. 64) [1].

            Talvez a maior dificuldade da ciência, nesse sentido, seja o reconhecimento de seus limites. É preciso entender que existem diferentes graus de conhecimento e que o conhecimento científico representa apenas um deles. O filósofo holandês Herman Dooyeweerd, por exemplo, entendeu que o conhecimento de dava de três formas fundamentais: um conhecimento pré-teórico, onde a realidade é apreendida pelo sujeito em sua totalidade, numa harmonia indissociável. Seria uma espécie de conhecimento geral, ou do senso comum; um conhecimento teórico, que seria aquele onde os aspectos não-lógicos da realidade se confrontam com os aspectos lógicos da razão humana, isolando-se áreas específicos da realidade para fim de estudo e compreensão mais profunda das mesmas; e um conhecimento supra-teórico, responsável, justamente, por dar o direcionamento do eu pensante, sendo anterior  à própria razão, o que ele chamou de motivo-base religioso [2].
            Dessa forma, pode-se afirmar que uma concepção saudável de ciência seria aquela que tem uma boa consciência de si mesma e de suas limitações. Ironicamente, apesar de a ciência se propor a tratar de todas as áreas do saber, “a questão ‘o que é a ciência’ é a única que ainda não tem nenhuma resposta científica” (MORIN, 2003, p.21 apud DA COSTA, Op. Cit., p. 68). Uma abordagem honesta sobre esse questionamento, entretanto, certamente contribuiria para uma maior amplitude do olhar científico sobre a realidade nos seus mais variados aspectos.

Cristianismo e ciência moderna:

            A compreensão cristã, muito bem expressa por Agostinho de Hipona, de que toda verdade é verdade de Deus, foi fundamental para a estreita relação entre o cristianismo e o surgimento da ciência moderna. A ideia cristã de um Deus infinito e pessoal, criador de toda a realidade, e que se revela, viabilizando, portanto, a compreensão do mundo, foi um importante pressuposto para a busca da compreensão dos fenômenos naturais.
            Assim, logo no início do desenvolvimento científico,

“Francis Bacon (1973, p. 21), ao combater o método dedutivo de Aristóteles − a quem considerava uma espécie de anticristo − e o pensamento escolástico − que contribuiu no processo de distanciamento do homem em relação a Deus e às Escrituras (ROSSI, 1992, p. 66, 69) −, sustentou que a única esperança da ciência estava na indução. No frontispício da primeira edição do Novum Organum, Bacon (1973) colocou as palavras do texto bíblico de Daniel (12:4): ‘Muitos o esquadrinharão, e o saber se multiplicará’” (DA COSTA, Op. Cit., p. 74) [3].

               Na visão de Bacon, a fé deveria ter a supremacia sobre a razão. Entendendo que a filosofia nada poderia fazer contra as Escrituras, seu papel seria o de servi-la. Em suas próprias palavras,

“bem consideradas as coisas, a filosofia natural, depois da palavra de Deus, é a melhor medicina contra a superstição, e o alimento mais substancioso da fé. Por isso, a filosofia natural é justamente reputada como a mais fiel serva da religião, uma vez que uma (as Escrituras) torna manifesta a vontade de Deus, outra (a filosofia natural) o seu poder” (BACON, 1973, p. 64-65 apud DA COSTA, Op. Cit., p. 75).

            O astrônomo luterano Johannes Keper (1571–1630), ao descrever sua descoberta das leis dos movimentos dos planetas, disse sentir-se como se estivesse “‘pensando os pensamentos de Deus após Ele’; sentia-se como sendo ‘um sumo sacerdote no livro da natureza, religiosamente obrigado a não alterar nenhum jota ou til daquilo que havia agradado a Deus escrever nele’” (apud GREEN, s. d., p. 37 apud DA COSTA, Op. Cit., p. 76). De forma semelhante, Nicolau Copérnico “entendia que os astrônomos, como sacerdotes de Deus, no exame do livro da natureza deveriam glorificar a Deus (HOOYKAAS, 1988, p. 137 apud DA COSTA, Op. Cit., p. 76).
            Isaac Newton (1642–1727), o grande formulador da mecânica clássica, em sua magnum opus Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, também reconhece a soberania de Deus:

Esse Ser governa todas as coisas, não como a alma do mundo, mas como Senhor de tudo; e por causa de seu domínio costuma- se chamá-lo Senhor Deus [...]. O Deus Supremo é um Ser eterno, infinito, absolutamente perfeito [...]. Ele é eterno e infinito, onipotente e onisciente; isto é, sua duração se estende da eternidade à eternidade; sua presença do infinito ao infinito; ele governa todas as coisas que são ou podem ser feitas. Ele não é eternidade e infinitude, mas eterno e infinito; ele não é duração ou espaço, mas ele dura e está presente. [...] Deus é o mesmo Deus, sempre e em todos os lugares. Ele é onipresente não somente virtualmente, mas também substancialmente; pois a virtude não pode subsistir sem substância. Nele, são todas as coisas contidas e movidas; todavia nenhum afeta o outro. [...] Assim como um homem cego não tem idéia das cores, nós também não temos idéia da maneira pela qual o todo-sábio Deus percebe e entende todas as coisas. Ele é completamente destituído de todo corpo e figura corporal, e não pode portanto nem ser visto, nem ouvido, nem tocado; nem deve ser ele adorado sob a representação de qualquer coisa corporal. Temos idéias de seus atributos, mas o que a substância real de qualquer coisa é nós não sabemos” (NEWTON, 1687 apud DA COSTA, Op. Cit., p. 77).


            A análise desses poucos exemplos obviamente não é suficiente para esgotar o tema, mas, certamente, é reveladora do espírito que permeava a ciência moderna em sua gênese. Como bem percebeu Schaeffer:

“A Ciência moderna nos seus primórdios era uma ciência natural porque tratava de coisas naturais, mas longe estava de ser naturalista, pois, embora sustentasse a uniformidade das causas naturais, não concebia a Deus e ao homem como presos dentro do mecanicismo. Tais cientistas nutriam a convicção, primeiro, de que Deus propiciou conhecimento ao homem – conhecimento de Si próprio e também do universo e da história; e, segundo, de que Deus e o homem eram partes do mecanismo e poderiam afetar a operação do processo de causa e efeito [...]. Assim se desenvolveu a ciência, uma ciência que tratava do mundo natural e real que, porém, ainda não se havia tornado naturalista” (SCHAEFFER, 1974, p. 31) [4].

              
Entretanto, o sucesso das descobertas científicas, e, em especial a revolução copernicana operada na astronomia, teve um efeito também na percepção do homem em relação ao mundo. Somando-se a isso o materialismo desenvolvido no interior do pensamento científico em decorrência da Revolução Industrial, não demorou muito para começar a haver um distanciamento da concepção de Deus, que começou a ser visto como um entrave ao verdadeiro pensar.
Sobre esses novos rumos, Immanuel Kant (1724–1804), filósofo alemão criado em ambiente pietista de separação entre fé e razão, afirma o seguinte:

“O Iluminismo é a emancipação de uma menoridade que só aos homens se devia. Menoridade é a incapacidade de se servir do seu próprio intelecto sem a orientação de um outro. Só a eles próprios se deve tal menoridade se a causa dela não for um defeito do intelecto mas a falta de decisão e de coragem de se servir dele sem guia. ‘Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio intelecto!’ é o lema do Iluminismo” (KANT, 1987, p. 25 apud DA COSTA, Op. Cit., p. 85).


            O ápice dessa nova mentalidade foi expresso por Nietzsche (1844–1900) em sua afirmação da morte de Deus. A partir de então tudo passou por uma reavaliação e a terra e o próprio homem passaram a ocupar o lugar de Deus. O homem passou a falar do homem para o próprio homem, percebendo-se completamente livre em suas possibilidades.
            A ciência, dessa forma, dentro desse espírito de autossuficiência, ganhou outro patamar, passando a ser considerada uma forma superior de elaboração do mundo. Deus, que antes era visto como o sustentador de todo conhecimento científico, passou a ser visto como uma “hipótese desnecessária” e, até mesmo, incômoda. E o homem, em consequência disso, “tornou-se escravo do seu próprio saber, tendo uma perspectiva equivocada da realidade, ficando encarcerado pelos próprios valores deste século, que ele consciente ou inconscientemente – mas não impunemente – ajudou a formular (DA COSTA, Op. Cit., p.86).

Conclusão:

            Se por um lado, como foi afirmado, a razão humana é limitada, dependendo de um trabalhoso processo de pensamento dialético para chegar ao conhecimento científico, por outro, o conhecimento de Deus é completo e imediato. Ele, enquanto criador de todas as coisas, conhece toda a realidade em suas relações e em sua essência. Ele é, portanto, a fonte de todo conhecimento.
            Partindo desse pressuposto, a oposição entre fé e razão não se mostra como uma opção razoável, visto que o doador da fé é, também, o criador das verdades científicas. “Todo e qualquer conhecimento científico que o homem tenha é parte do conhecimento
de Deus expresso na Sua Criação, nas Escrituras e definitivamente em Jesus Cristo, o Verbo de Deus” (Ibidem, p. 88). Não existe, dessa forma, conhecimento verdadeiro fora de Deus.
            Quando ciência e revelação, ou, em outras palavras, quando a revelação natural e a revelação especial parecem contraditórias, ou está havendo uma compreensão equivocada do conteúdo das Escrituras, necessitando-se de uma revisão interpretativa, ou a ciência não é, de fato, uma ciência, tendo caído no equívoco. Daí a perspectiva defendida pelo reformador João Calvino de que a ciência, dirigida pela fé, aproxima o homem de Deus, possibilitando uma compreensão mais adequada Dele. Como afirmou o ex-primeiro  ministro holandês Abraham Kuyper:

“Somente quando há fé na conexão orgânica do Universo, haverá também a possibilidade para a ciência subir da investigação empírica dos fenômenos especiais para o geral, e do geral para a lei que governa acima dele, e desta lei para o princípio que domina sobre tudo” (KUYPER, 2002, p. 123) [5].


Referências bibliográficas:

- DA COSTA, Hermisten M. Pereira. A ciência e a sua “autonomia”: ciência ou fé?: rompendo em fé com a fé. In: Ciências da Religião – História e Sociedade. Volume 8, N. 1, 2010.

- DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental.  [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.
- KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Editora Cultura Cristã,
2002.
- SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. [tradução Gabrielle Gregersen] – São Paulo: Cultura Cristã, 2002.













[1] DA COSTA, Hermisten M. Pereira. A ciência e a sua “autonomia”: ciência ou fé?: rompendo em fé com a fé. In: Ciências da Religião – História e Sociedade. Volume 8, N. 1, 2010.
[2] Cf. DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental.  [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.

[3] “Cf. nota nº 71, feita por José Aluysio Reis de Andrade, à referida edição da obra de Bacon (1973,
p. 68). Bacon, ainda que não fosse puritano, foi educado dentro desse espírito (HOOYKAAS,
1988, p. 180).” (DA COSTA, Op. Cit., p. 74)
[4] SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. São Paulo: São Paulo: ABU/FIEL, 1974.
[5] KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002.

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