Introdução:
Qualquer pessoa que já tenha
adentrado a uma sala de aula de um curso de humanas, ou mesmo participado de
discussões informais no campo da ética, certamente, já se deparou com severas
críticas ao Cristianismo – ou àquilo que, comumente, é chamado de moral
judaico-cristã. Apesar disso, o que, de maneira geral, se percebe nesses
discursos é menos um olhar atento e cuidadoso sobre o complexo quadro da
religião cristã, com suas multifacetadas nuances, do que um pathos reativo – quase sempre dogmático
– que acaba por circunscrever a discussão a limites bastante reduzidos.
A proposta dessa breve reflexão,
portanto, será abordar o Cristianismo a partir do pensamento de dois
importantes filósofos que, ao longo de suas obras, dispensaram especial atenção
ao tema: o dinamarquês Søren Kierkegaard e o alemão Friedrich Nietzsche. Para
isso, será feita, inicialmente, uma apresentação panorâmica de cada autor,
procurando-se salientar a relação de cada um com a religião cristã; em seguida,
um diálogo entre suas principais ideias, bem como análise de seus pressupostos;
e, por fim, uma conclusão crítica, onde se buscará analisar até que ponto os
autores lograram – ou não – êxito em seus projetos filosóficos.
A
mosca varejeira de Copenhagen:
“O presente autor de nenhum modo é
um filósofo” (KIERKEGAARD, 1979, p. 110) [1]. A
irônica frase de Johannes de Silentio – heterônimo de Kierkegaard em seu
belíssimo Temor e Tremor – revela
bastante do pensamento do dinamarquês e, especialmente, do contexto
histórico-filosófico no qual está inserido.
Obviamente, a filosofia a que
Johannes de Silentio se refere quando nega ser um filósofo não é qualquer filosofia,
mas um tipo específico: aquela que se constrói nos moldes da sistematização da
filosofia moderna. “Kierkegaard tinha uma aversão por todo tratamento
sistemático de temas teológicos ou filosóficos e desdenhava todas as tentativas
de formar um ‘sistema’ fechado, completo e auto-contido (GOUVÊA, 2006, p. 21) [2].
Para ele, Hegel – ícone da modernidade a quem dirige boa parte de suas críticas
– podia até interpretar a vida; o problema, no entanto, seria vivê-la (Cf. Ibidem,
p. 44). Sobre isso, ainda com a ironia que lhe é peculiar, Kierkegaard comenta
o seguinte:
“Um
pensador ergue um grande edifício, um sistema, um sistema que abrange o todo da
existência, história do mundo, etc., e se sua vida pessoal é considerada, para
nosso espanto faz-se a descoberta assustadora e burlesca de que ele mesmo não
vive pessoalmente neste grande e abobodado palácio, mas numa cabana ao lado, ou
numa casa de cachorro, ou na melhor das hipóteses, na guarita do porteiro”
(KIERKEGAARD apud GOUVÊA, Op. Cit., p. 89).
Essa forte rejeição por sistemas de
pensamento, somada à ênfase existencial da filosofia kierkegaardiana, fez com
que, não raras vezes, o nome de Kierkegaard estivesse associado ao
existencialismo, chegando mesmo a ser-lhe atribuído sua paternidade.
Entretanto, uma análise – mesmo superficial – do pensamento do dinamarquês
mostra ser esse ponto de vista um equívoco. Segundo Gouvêa,
“quando
Kierkegaard usa a palavra ‘existencial’ ou ‘verdade existencial’ ele não tem um
sistema filosófico em mente, muito menos um que foi pensado depois de sua
morte. Ele não se referia a uma compreensão fenomenista da realidade e não
buscava uma renovação da questão do ser. Ele também não se referia a um ato
sartreano de auto-apropriação em face da absoluta nulidade e falta de sentido
que permeia a realidade. Mas a que se referia Kierkegaard, então, quando
insistia no caráter existencial da verdade? Ele se referia, acima de tudo, à
síntese do temporal e do eterno que ele detectava no ser humano. Para
Kierkegaard, a existência não é redutível a antropologias materialistas ou
naturalistas nem a abstrações idealistas. Por existencial, Kierkegaard se
referia ao pensamento que não esquece jamais que aquele que pensa é um ser
humano existente, contrariamente a um idealismo abstrato e especulativo. Ele
queria dizer, com o termo ‘existencial’, viver e pensar subjetivamente contra a
mera observação objetiva da realidade (que pode ser boa para as ciências
naturais, mas não para as humanidades, a ética e a religião). Ele queria dizer
introspecção e seriedade, e existência Coram
Deo [3]”
(GOUVÊA, Op. Cit., p. 93).
Assim, ainda que se tente explicar a
diferenciação entre o pensamento de Kierkegaard e o dos existencialistas,
considerando este último como uma espécie de secularização do primeiro, o que
se alcança é, no máximo, um eufemismo. “Na verdade, Heidegger e Sartre
ignoraram o único e singular propósito de toda a obra de Kierkegaard:
esclarecer conceitos cristãos e mostrar como alguém realmente pode tornar-se
cristão” (Ibidem, p. 91).
Portanto, sabendo-se também que, ao
longo de toda sua vida e de sua obra, Kierkegaard travou um forte embate contra
a cristandade, cabe aqui esclarecer essa aparente contradição. Para isso, será
necessário compreender o que ele – precisamente – entende por cristianismo e
cristandade.
Quando, no interior da polêmica do
panfleto O Momento – que ficou
conhecida como Kirkekamp –,
Kierkegaard chega a afirmar – de maneira hiperbólica – que o cristianismo não
existe mais, ele está se referindo expressamente ao cristianismo do Novo
Testamento. “Para Kierkegaard, a religião que a Igreja Estatal da Dinamarca de
seu tempo sustentava e pregava não era o cristianismo do Novo Testamento, e as
pessoas em geral não pareciam percebê-lo e continuavam a considerar-se cristãs”
(Ibidem, p. 122). É nesse sentido,
portanto, que ele irá afirmar que a cristandade é “uma fantástica miragem, uma
máscara, uma palhaçada, abrigo de todas as alucinações” (KIERKEGAARD apud ALMEIDA, 2007, p 11) [4].
Dessa forma, fica claro que a
intenção de Kierkegaard nunca foi rejeitar os dogmas essenciais da religião
cristã recebidos tanto pelos primeiros pais da Igreja, quanto, posteriormente, pelos
reformadores. No seu entendimento, não eram os dogmas o problema da igreja, mas
os cristãos. “A doutrina da Igreja estabelecida e sua organização são muito
boas. Mas as vidas, nossas vidas – acredite-me estas é que são medíocres”
(KIERKEGAARD apud GOUVÊA, Op. Cit., p. 124), afirmou o
dinamarquês.
A morte de Deus:
“De fato, nós filósofos e ‘espíritos livres’
sentimo-nos, à notícia de que ‘o velho Deus está morto’, como que iluminados
pelos raios de uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, assombro,
pressentimento, expectativa – eis que enfim o horizonte nos aparece livre outra
vez, posto mesmo que não esteja claro, enfim podemos lançar outra vez ao largo
nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecedor é outra vez
permitida, o mar, o nosso mar, está outra vez aberto, talvez nunca dantes houve
tanto ‘mar aberto’” (NIETZSCHE,2001, p. 233-234) [5].
Dentre as diversas polêmicas geradas
a partir do pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, sua afirmação da
morte de Deus, certamente, figura entre as maiores. Essa forte declaração,
entretanto, para ser mais adequadamente compreendida deve ser analisada à luz
de seu contexto.
Que o corpus nietzscheano apresenta um caráter eminentemente anticristão
não resta muita dúvida. Partindo do pressuposto de que o mundo só se justifica
como fenômeno estético, Nietzsche compreende-o como resultado de uma tensão
constante entre o apolíneo e o dionisíaco – impulsos artísticos da natureza –,
que não só configura o real, como confere a ele seu elemento de criatividade. Com
isso, o que o mundo é passa a ser sempre resultado de um eterno processo
criativo de formas. Nesse sentido, o que Nietzsche percebeu foi que “à medida
que o cristianismo alija de si a experiência do devir em nome de um plano
metaempírico e ahistórico, seu pensamento contradiz estruturalmente o
cristianismo, o que lhe fez reconhecer o conceito de dionisíaco como
essencialmente anticristão (Cf.
CABRAL, 2010, p. 2) [6].
Para o filósofo alemão, o
fortalecimento da metafísica nas mais variadas matizes da cultura ocidental se
deu através do cristianismo. Se com Sócrates e Platão teria nascido “aquela
inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os
abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de
conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo” (NIETZSCHE apud CABRAL, Op. Cit, p.
2), é no cristianismo que essa estratégia metafísica de anulação ontológica
inerente ao princípio estruturador do mundo se fortalece e se dissemina.
Entretanto, há de se perceber que
também em Nietzsche há uma distinção entre a pessoa de Jesus e o cristianismo
histórico que não pode ser negligenciada. Fica claro em O Anticristo, por exemplo, que, apesar de tanto Jesus quanto o
cristianismo serem classificados como décadent,
a figura de Jesus não se coaduna com o cristo dos cristãos (Cf. CABRAL, Op. Cit, p. 3).
Ao contrário do que tentou propor
Ernest Renan, Nietzsche não vê Jesus como gênio ou herói, mas como idiota.
“No
lugar do herói e do gênio, Nietzsche põe a modalidade da idiotia para
caracterizar fisiologicamente Jesus. Termo retirado da obra O Idiota de Dostoiévski, a idiotia não
deve ser compreendida como adjetivo detrator de Jesus. O que Nietzsche entende
por idiotia relaciona-se intimamente com o termo grego idiotés, cujo significado foi assumido no alemão erudito do século XVIII,
a saber, “o leigo, desprovido de refinamento científico ou artístico, mas
também o indivíduo 'original', alheio à realidade prosaica dos negócios e
afazeres” (GIACÓIA JUNIOR, O. Labirintos da alma, p.73). Se Nietzsche assume a
ideia de que Jesus possui originalidade por estar alheio a ‘todo conceito de
tempo e lugar, ao que é sólido, instituição, Igreja’, isto não significa que
Jesus seja um paradigma superior de vitalidade. A estruturação fisiológica de Jesus
diz o contrário. É comparada à ‘doentia excitabilidade do tato’, que recua ante
um objeto sólido. A consequência é a fuga de toda solidez do real, produto de
um “ódio instintivo à realidade”. A presença do ódio no tipo do Redentor não
engendra práticas bélicas de aniquilação da realidade instituída, pois Jesus é
“alérgico” às ações combativas que reproduzam o caráter agonístico do real. O
ódio à realidade engendra o subterfúgio do mundo ‘interior’. A interioridade
surge como sintoma da ‘extrema capacidade de sofrimento e excitação’ (AC/AC,
§30)”. (Ibidem, p. 11).
E aqui, sofrimento não tem seu
significado ligado ao uso corriqueiro da palavra, como, por exemplo, quando se
experimenta uma dor causada por uma doença ou, então, a perda de um ente
querido. De outro modo, deve ser compreendido ontologicamente. Partindo do
conceito de vontade de poder, a dor é
entendida como fator inerente à realidade, “gerada pela necessidade de
rearticulação da malha vital que caracteriza um singular, a partir da assunção
do devir” (Ibidem, p. 11). Assim, a
própria dinâmica da existência – caracterizada por Nietzsche como agonística –
produz esse sofrer que se expressa nesses processos de dissolução e
rearticulação das forças envolvidas na constituição da vontade de poder.
Nesse
sentido, a atitude de Jesus diante da vida, em direção ao mundo interior, é
compreendida por Nietzsche como uma fuga que busca o abrandamento do desprazer
e a conservação de um tipo incapaz de assumir a dinâmica aflitiva da vontade de
poder. Em outra palavras, afirma Cabral: “Incapaz de assumir a conflitividade
inerente à vontade de poder, o tipo do Redentor encontra prazer em uma vida
refugiada em uma interioridade alheia à solidez do real” (Ibidem, p. 12).
Já o cristianismo, por sua vez,
segundo Nietzsche, nasce não de Jesus, mas a partir da atribuição, pelos
cristãos, de traços alheios a ele. Se a mensagem de Jesus se concentrava no
Reino de Deus como um estado do coração onde já não há mais oposições, o Cristo
produzido pelo cristianismo será “o anunciador de uma redenção futura, de um
julgamento futuro, de uma promessa de eternidade futura e de uma vingança
também futura” (Ibidem, p.13). Dessa
forma, tudo o que Jesus teria negado como forma de evitar conflitos, a
cristandade assume como cerne da mensagem cristã.
“Jesus
não podia querer outra coisa, com a sua morte, senão dar publicamente a mais
forte demonstração, a prova de sua doutrina... mas seus discípulos estavam
longe de perdoar essa morte – o que teria sido evangélico no mais alto sentido;
ou mesmo de oferecer-se para uma morte igual, com meiga e suave tranquilidade
no coração... Precisamente o sentimento mais ‘inevangélico’, a vingança, tornou
a prevalecer. A questão não podia findar com essa morte: necessitava-se de ‘reparação’,
‘julgamento’ (– e o que pode ser menos evangélico do que ‘reparação’, ‘levar a
julgamento’!). Mais uma vez a expectativa popular de um Messias aparece em
primeiro plano; enxergou-se um momento histórico: o ‘reino de Deus’ vai julgar
seus inimigos... Mas com isso está tudo mal compreendido: o ‘reino de Deus’
como ato final, como promessa! Mas o evangelho fora justamente a presença, a
realização, a realidade desse ‘reino de Deus’...” (AC/AC,§40 apud CABRAL, Op. Cit., p. 13).
Aproximações e diferenças:
Como
bem nota Karl Jaspers em seu Razão e
Existência, a semelhança dos pensamentos de Kierkegaard e Nietzsche é tanto
mais característica quando se está na presença de uma aparente diferença
essencial entre a fé cristã de um e o acentuado ateísmo de outro. Segundo o
filósofo alemão que se debruçou sobre as filosofias de ambos os autores, em uma
época em que a reflexão vive de aparência, como se o passado seguisse
subsistindo, o desejar e o rejeitar a fé se pertencem mutuamente. Dessa forma,
não é de se estranhar que o crente se pareça com o ateu e o incrédulo se
assemelhe ao crente: ambos estão situados na mesma dialética (Cf. JASPERS, 1959, p. 28) [7].
Também
Gilles Deleuze, da mesma forma, consegue enxergar pontos de contato entre os
pensamentos de Kierkegaard e Nietzsche que, a despeito das evidentes
disparidades entre um e outro, acabam por aproximá-los mais do que um primeiro
olhar superficial poderia sugerir. Para o francês, “uma afirmação de Nietzsche
vale também para Kierkegaard: não sou homem, sou dinamite. Eles explodem com a
mediação hegeliana e, a propósito deles, fala-se de bom grado em
ultrapassamento da filosofia” (DELEUZE apud
ALMEIDA, Op. Cit., p. 62).
De
fato, ambos os autores dialogam intensamente com a tradição e nela encontram a
mola propulsora de suas filosofias. Enquanto Kierkegaard responde ao abstrato
idealismo racionalista da modernidade com seu total desprezo pela metafísica ou
por questões epistemológicas, deslocando o centro de seu pensamento para a
existência, onde a missão primordial do homem é tornar-se cristão, Nietzsche
vai ainda mais longe e, abolindo a própria ideia de transcendência – tão cara
em Kierkegaard – mergulha no niilismo proveniente de um mundo entendido como
resultante da vontade de poder.
A
forte ênfase na figura do indivíduo também deve ser destacada como ponto de
convergência nas obras dos dois autores.
“Kierkegaard
era enfático em que o evangelho não era apenas a comunicação de um dogma, mas
primeiro e principalmente uma comunicação de vida. Isto é, a transmissão de uma
Wetanschauung e um estilo de vida, a
condução de uma nova existência. Verdade cristã não é meramente uma série de
doutrinas mas antes e principalmente apoia-se numa correta relação de fé. Mera
aceitação intelectual do dogma cristão não é fé mas um tipo de superstição. Nem
a fé salvadora é apenas o despertar da alma para a presença penetrante de Deus.
Ser um cristão no sentido do Novo Testamento significa que o ser, como
indivíduo isolado, relaciona-se pessoalmente com Cristo por meio de uma decisão
apaixonada e de coração que é estimulada pelo desespero em face de nossa culpa
perante Deus. Se a fé é feita dependente de nossa compreensão da doutrina,
então a habilidade de tornar-se cristão depende da diferente capacidade
intelectual dos indivíduos, o que é ridículo. O cristianismo se sustenta ou cai
pela possibilidade igual de cada um tornar-se cristão pela relação de fé em
Jesus Cristo. Assim, uma pessoa não pode simplesmente ter a verdade, mas deve estar
na verdade, viver na verdade” (GOUVÊA, Op.
Cit., p. 156).
De
modo semelhante, ainda que não passe pelo cristianismo ou por qualquer outra
ideia de transcendência, também “a ética nietzscheana é uma ética do indivíduo,
da necessidade de, cuidando de si mesmo, transvalorar-se e ‘tornar-se si mesmo’,
transformar-se em si mesmo” (LAGES, 2010, p. 62) [8].
Ou, nas belas palavras do próprio Nietzsche através de Zaratustra: “E se alguém
passa através do fogo pela sua doutrina – que demonstra isso? Mais vale, na
verdade, que a nossa doutrina venha do nosso próprio incêndio!” (NIETZSCHE,
1981, p. 106) [9].
Por
outro lado, como já deve ter ficado claro até aqui, há também pontos
irreconciliáveis em suas filosofias. Esses aspectos, entretanto, para serem
adequadamente compreendidos necessitam de uma análise em um nível mais
profundo: o dos pressupostos.
Como
já visto anteriormente, o mundo nietzscheano surge a partir de uma tensão
insolúvel entre o apolíneo e o dionisíaco, responsável não só por dar a ele seu
componente de criatividade, como por fazer dele um fenômeno estético. Todavia,
se o filósofo holandês Herman Dooyeweerd está correto em sua afirmação de que
todo pensamento teórico está sempre alicerçado sobre um fundamento religioso de
caráter suprateórico (motivo-base religioso da cultura) [10]
que seria o responsável pelo direcionamento do ego pensante, é necessário
penetrar nessas raízes mais profundas dos pensamentos de Nietzsche e
Kierkegaard.
Segundo
Dooyeweerd, a religião grega pré-olímpica da vida e da morte – de onde
Nietzsche consegue identificar o conflito apolíneo/dionisíaco que serve de
esteira para seu pensamento – acabou por deificar
“o
fluxo perene de vida orgânica que se originava da mãe-terra e que não podia se
fixar nem ser restrito por alguma forma corporal. Supunha-se que desse fluxo de
vida na ordem do tempo, as gerações de seres separavam-se a apareciam em formas
corporais individuais. A forma corporal poderia ser mantida apenas à custa de
outros seres vivos, sendo a vida de um a morte de outro. Assim, haveria
injustiça em qualquer forma fixa de vida que, por essa razão, precisava ser
paga com o horrível destino da morte, designada pelo termos gregos de anangke e heimarmenè tuché. Esse é
o significado das palavras misteriosas do filósofo jônico da natureza,
Anaximandro: ‘A origem divina de todas as coisas é o apeiron (i.e., aquilo que carece de uma forma restritiva). As
coisas retornam para aquilo do qual elas se originaram em conformidade com a
lei da justiça. Pois elas pagam umas às outras a penalidade e a retribuição por
sua injustiça na ordem do tempo” (DOOYEWEERD, 2010, p. 229-230) [11].
Assim,
“o
motivo central da religião arcaica da vida e da morte encontrou uma clara
expressão na visão filosófica de physis,
ou natureza, em Anaximandro. Aqui, ‘natureza’ é o motivo da corrente de vida
sem forma, em fluxo perene por meio do processo de vir a ser e desvanecer, o
qual pertence a todas as coisas perecíveis que nascem em forma corporal e estão
sujeitas à anangke. Esse é o sentido
original do motivo grego da matéria, originado de uma deificação do aspecto
biótico de nosso horizonte temporal de experiência e que encontrou sua mais
espetacular expressão no culto a Dionísio, importado da Trácia” (Ibidem, p. 230).
Nesse
sentido, se a tese de Dooyeweerd estiver correta em sua análise dessas raízes
mais profundas que sustentam o pensamento grego – do qual Nietzsche é
declaradamente grande devedor –, há de se considerar – como queria Heidegger [12]–
que sob a filosofia nietzscheana há mais metafísica do que o próprio Nietzsche
gostaria de admitir.
Kierkagaard,
por sua vez, de modo totalmente diverso de Nietzsche, não parece apresentar
nenhum problema em afirmar sua heteronomia em relação a Deus. Na verdade,
conforme bem ressalta Gouvêa, melhor do que o termo heteronomia para se referir
aos fundamentos da filosofia kierkegaardiana, seria a ideia de uma “cosmonomia[13] divinamente
sancionada” (GOUVÊA, Op. Cit., p.
222). Isso porque
“como
a ética cristã é baseada no nomos do
Criador, a ética bíblica não é heteronomia pois não é heteroios em relação a alguém que vive coram Deo. Ética bíblica é a exposição e elucidação dos nomiomata revelacionais, isto é, o nomos ético-cósmico em contraste com a anomia pecado, rebelião e idolatria.
Estes nomiomata da ética bíblica são
a base para o que Kierkegaard afirma sobre o homem que conheceu o Deus vivo:
que ‘ele determina sua relação com o universal por sua relação com o absoluto,
não sua relação com o absoluto por sua relação com o universal’” (GOUVÊA, 2009,
p. 234) [14].
Dessa
forma, o que fica bastante evidente ao longo de toda a obra kierkegaardiana – e
que se configura como principal ponto de divergência em relação a Nietzsche –
é, justamente, este esforço constante do dinamarquês em rejeitar toda e qualquer
possibilidade de autonomia humana. Em Kierkegaard, assim como em Nietzsche, o
indivíduo é relação, mas não uma relação de forças cegas que atiram o mundo no
nada. Pelo contrário:
“O
eu é a síntese consciente de infinito e de finito em relação com ela própria, o
que não se pode fazer senão contatando com Deus. Mas tornar-se si próprio, é
tornar-se concreto, coisa irrealizável no finito ou no infinito, visto o
concreto em questão ser uma síntese. A evolução consiste pois em afastar-se
indefinidamente de si próprio, numa ‘infinitização’. Pelo contrário, o eu que não
se torna ele próprio permanece, saiba-o ou não, desesperado” (KIERKEGAARD,
1979, p. 208) [15].
Assim,
se em Nietzsche a verdadeira liberdade e concretização do eu se dá com a morte
de Deus e suas implicações aqui já analisadas, em Kierkegaard a realização do
indivíduo – do qual Abraão, enquanto pai da fé, é o exemplo maior – só é
possível numa existência Coram Deo.
Conclusão:
Apesar de chegarem a destinos bastante
distintos em suas filosofias, não se pode negar a amplitude da semelhança
existente entre os pensamentos de Friedrich Nietzsche e Søren Kierkegaard. O
zelo incansável com que cada um tratou a questão do cristianismo, ironicamente,
parece ter feito mais pela religião cristã do que qualquer sacerdote ou membro
de igreja poderia fazê-lo.
Se os pressupostos de onde partiu
cada um, obviamente, os conduziram a lugares filosóficos divergentes e até
mesmo irreconciliáveis, o que deve ser ressaltado, entretanto, é a mensagem que
os une, a saber: a busca pela realização do indivíduo na concretude da
existência.
Ainda que Kierkegaard atribua a Deus
a instituição do mundo e tenha a fé como sua relação primordial com a
existência, é oportuno salientar que, também para o dinamarquês, a vida é
agonística. Se em Nietzsche o conflito que coloca a realidade se dá na origem –
com Apolo e Dionísio –, em Kierkegaard a condição pecaminosa do homem lança-o
ao paradoxo, fazendo com que a realidade seja essencialmente contraditória.
A grande e decisiva diferença de
suas filosofias, segundo o ponto de vista aqui expresso, fica por conta da
solução apontada por cada um dos filósofos diante desse quadro de um mundo
agonizante. Enquanto Nietzsche mergulha de cabeça no desespero niilista de uma
existência sem Deus, o melancólico Kierkegaard, assumindo sua fraqueza,
encontra abrigo, pela fé, na presença do Criador, possibilitando-lhe não o fim
do conflito, mas a força existencial necessária para enfrentá-lo.
Certa vez, em seu diário, refletindo
sobre sua vocação na vida e o rompimento com a vida estética que levava e com o
pensamento hegeliano que ate então imperava, o jovem Kierkegaard, aos 22 anos,
escreve o seguinte:
“[...]
aqui eu me posto em frente a um grande ponto de interrogação [...] eu me
interesso por demasiadas coisas, e não decisivamente por alguma... o que
realmente preciso é ter claro o que devo fazer; não o que devo saber. O que
importa é encontrar uma finalidade, ver o que Deus realmente quer que eu faça;
a coisa crucial é encontrar uma verdade que seja verdade para mim, encontrar a
idéia pela qual eu esteja disposto a viver e a morrer” (KIERKEGAARD apud GOUVÊA, 2006, p. 43).
Já Nietzsche, obviamente em outro
tom, mas com significado não muito distante do expresso por Kierkegaard, usa a
boca de Zaratustra para afirmar esta que, certamente, consta entre as mais
belas declarações já tiradas de sua pena:
“Mas
o pior inimigo que podes encontrar serás sempre tu mesmo; tu mesmo estás à tua
espreita em cavernas e florestas. Solitário, percorres o caminho no rumo de ti
mesmo! E teu caminho passa por ti mesmo e pelos teus sete demônios! Herege,
serás para ti mesmo, e feiticeiro e vidente e doido e céptico e ímpio e
celerado. Arder nas tuas próprias chamas, deverás querer; como pretenderias
renovar-se se antes não te tornasses cinza!” (NIETZSCHE, Op. Cit., p. 79).
Assim
– a despeito do que tentou mostrar Hannah Arendt[16]
quando afirmou permanecerem os dois filósofos ainda atados à tradição em suas
críticas –,fica evidente que tanto o dinamarquês quanto o alemão cumpriram seu
papel naquilo que se propuseram, seja através da melancolia piedosa de
Kierkegaard ou da acalorada busca existencial de Nietzsche.
Certamente,
o tipo de caminho que um e outro escolheu trilhar dentro da filosofia, chegando
mesmo a tornar difícil uma acurada distinção entre seus pensamentos teóricos e
suas próprias experiências no chão da vida, definitivamente, não está aberto a
refutações. Afinal, a existência – como bem lembra Dooyeweerd [17] –
não é teoria para que seja colocada em xeque, muito menos julgada a partir de
pressupostos já previamente rejeitados. Apenas uma boa dose de tolice poderia
mover alguém a embrenhar-se nesse caminho.
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[2] GOUVÊA, Ricardo Q.. A Paixão
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[3] Para Kierkegaard, a figura de
Abraão subindo o monte Moriá para o sacrifício de seu filho Isaque por ordem de
Deus é o protótipo do indivíduo Coram Deo,
i.e., o indivíduo isolado perante Deus.
[4] ALMEIDA, Jorge Miranda de; VALLS, Álvaro L.
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Jorge Zahar Ed., 2007. (Coleção passo-a-passo).
[5] NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia
Ciência. [Trad. Paulo César de Souza] –
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
[6] CABRAL, Alexandre M.. O Jesus de Nietzsche: a ambiguidade de uma
polêmica. Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche – 1º semestre 2010 –
Vol.3 – nº1 – pp. 01-20
[7] JASPERS, Karl. Razon y
Existencia. Buenos Aires: Editorial Nova, 1959.
[8] LAGES, Lucas N.R.M.V.. O
demônio de Nietzsche: Niilismo, Eterno Retorno e Ética do cuidado de si.
2010. 71f. Dissertação (Mestrado em Ética e Epistemologia) – Centro de Ciência
Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina. 2010.
[10]
Para Dooyeweerd,
“o princípio motivador e controlador de uma cultura não é, primariamente, a
política, a economia, ou as idéias, mas a religião.
Cada comunidade espiritual é unida por um espírito comum, [...] que controla
ativamente a vida dessa comunidade. Dooyeweerd chamou esse poder de motivo–base
religioso (religious ground-motive) da cultura. Os motivos-bases são as forças
motivadoras que dominaram o desenvolvimento da cultura, da ciência e da
filosofia ocidental. Cada um deles estabeleceu uma comunidade espiritual entre
aqueles que o iniciaram, e permaneceu oculto como o princípio espiritual
subjacente de toda a produção cultural. Nesse sentido, os pensadores ocidentais
muitas vezes foram dominados por um determinado motivo-base sem nem mesmo terem
consciência disso; na verdade, o sentido religioso dos motivos-bases está além
do alcance desses pensadores justamente porque toda explicação histórica, em si mesma, pressupõe um ponto de partida
central e suprateórico que é dado por um motivo-base religioso” (Cf. CARVALHO, G. V. R. . 2006, p. 125).
[11] DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental.
[Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São
Paulo: Hagnos, 2010.
[12] Segundo Heidegger, “mesmo que um
pensamento seja considerado ateu, se ele não põe em jogo a diferença
irredutível entre ser e ente, ele caracteriza-se por ser onto-teo-lógico. Este
seria justamente o caso de Nietzsche” (CABRAL, 2011, p. 10).
[13] Baseado na interpretação
calvinista da soberania de Deus sobre todas as coisas, esse conceito utilizado
por Dooyeweerd indica que o cosmos
teria imprimido nele um conjunto de leis divinas que regeriam cada aspecto da
realidade temporal. Assim, para Dooyeweerd, há um conjunto de leis divinas que deveriam reger a política, a
economia, a sociedade, a ética, a biologia, a física, etc. Toda essa
diversidade modal de leis, entretanto, “está relacionada à unidade central da
lei divina, ou seja, o mandamento de amar a Deus e ao nosso próximo”
(DOOYEWEERD, Op. Cit., p. 56).
[15]KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. In: Os pensadores. [Tradução: Adolfo Casais
Monteiro] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
[16] Cf. ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo:
Perspectiva, 2009.
[17] Cf. DOOYEWEERD, Op. Cit. p. 67
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