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quarta-feira, 18 de abril de 2012

O HOLISMO NA EPISTEMOLOGIA NATURALIZADA DE QUINE


 
I – Introdução:

            Considerado por muitos o maior filósofo norte-americano do século XX, Willard Van Orman Quine contribuiu efetivamente para a construção de um novo modo de pensar as relações entre o mundo e a ciência. Pertencente à tradição analítica, ele entendia que essas relações eram não somente criadas na linguagem, mas, também, a partir da mesma. Entretanto, diferentemente de alguns pensadores que também compactuaram da mesma ideia, Quine defendeu que a filosofia não poderia reduzir-se a uma análise conceitual.
            Esse post tem por objetivo discutir de forma introdutória a filosofia quineana, em especial o conceito de holismo. Para isso, será inicialmente apresentada uma introdução ao conceito de naturalismo proposto por Quine, procurando-se destacar os principais pressupostos admitidos pelo autor; em um segundo momento será abordada a visão holística de ciência propriamente dita; e, por fim, será oferecida uma breve conclusão crítica, buscando discutir as dificuldades implicadas na proposta de Quine.


II – Uma epistemologia naturalizada:

            O primeiro fato a ser observado na teoria do conhecimento de Quine é a sua concepção extremamente positiva de ciência. A possibilidade de as teorias científicas conseguirem organizar sistematicamente a experiência humana, viabilizando a unificação de ordens dispersas de conhecimento, predições bem-sucedidas e produção de tecnologia, é vista por ele como evidência de que a ciência seria o melhor esquema conceitual capaz de mediar a relação entre o homem e a natureza.

            “Dentre esses, a capacidade preditiva merece destaque, já que é a partir dela que uma teoria pode ser testada e, consequentemente, angariar para si a confiança da comunidade pertinente. Com efeito, predições reiteradamente bem-sucedidas constituem fortes argumentos para manter uma teoria; fracassos constituem importante razão para recusá-la. Deste modo, se a predição não precisa ser definida como o principal objetivo da ciência, ainda assim ela é ‘o que decide o jogo’ (PT:20). Ora, temos que predição é, sobretudo, predição de estimulação, de modo que evidência é, para Quine, evidência sensorial (RR:2; OR 75). Assim, a epistemologia é, para Quine, empirismo.” (BULCÃO, 2009, p.207)[1].

            Entretanto, o empirismo defendido por Quine não corresponde ao empirismo tradicional. Em seu famoso artigo Dois dogmas do empirismo, Quine, ao desferir profundas críticas ao empirismo clássico, oferece não só uma espécie de “reorientação” do mesmo, como também uma nova orientação para o próprio realismo científico. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que Quine, “a partir de um empirismo sem dogmas, erige um realismo sem dogmas, o seu realismo naturalista” (Ibidem, p.197).
            Segundo essa doutrina quineana, somente a ciência natural poderia estudar, de forma não dogmática, a própria ciência natural. Quine, não admitindo a possibilidade de uma filosofia primeira, entende que a epistemologia não deveria ser vista “como um ramo preliminar e fundamental, no sentido de legitimar o saber científico” (Ibidem, p.207), mas como parte integrante da própria ciência.
            Partindo desse referencial teórico, ele procurou demonstrar que a relação entre uma teoria e seu suporte empírico depende não exatamente da ontologia que se assume, mas da estrutura lógica da própria teoria. Essa afirmação poderia ser evidenciada no fato de que a alteração da ontologia de uma teoria qualquer não necessariamente comprometeria seu sucesso preditivo. Em outras palavras, seria possível alterar a ontologia de uma teoria sem que seu suporte evidencial fosse afetado.
            Ao relativizar a ontologia, Quine introduz uma nova maneira de pensar a relação entre conhecimento e crença. Para ele, a aceitação de uma ontologia se torna

“similar em princípio à nossa aceitação de uma teoria científica, por exemplo, um sistema de física: nós adotamos, pelo menos na medida em que somos razoáveis, o esquema conceitual mais simples nos quais os fragmentos desordenados da experiência bruta podem ser agrupados e arranjados” (QUINE, 1953, p.6 apud BULCÃO, 2008, p.105) [2].

            A falibilidade seria, dessa forma, inerente ao próprio conceito de ciência, não havendo nenhuma espécie de garantias ou justificações absolutas que pretendam o estabelecimento de uma verdade superior. Até mesmo o método hipotético-dedutivo, que em algum sentido sustenta o conhecimento científico, está sujeito a correções e melhorias, não sendo considerado o método absoluto ou verdadeiro, mas, simplesmente, o melhor método de que se dispõe até o momento.
            Entretanto, ao contrário do que pode parecer, o que Quine faz não é negar a existência de uma verdade, mas sim considerá-la de maneira estritamente imanente. Segundo Bulcão:

“O ponto é, então, que, não reconhecendo o naturalismo nenhuma realidade mais elevada do que aquela que a ciência oferece ou procura, nós não podemos senão falar sempre de dentro de nosso sistema de mundo corrente quando estamos atribuindo verdade, não há outro modo de falar. É certo que ‘nosso sistema muda, sim. Quando ele o faz, nós não dizemos que a verdade mudou com ele; nós dizemos que nós havíamos erroneamente suposto que algo era verdadeiro e aprendemos depois que não. Falibilismo é a palavra-chave, não relativismo. Falibilismo e naturalismo’ (PPE: 33-34 – grifos nossos)” (BULCÃO, Op. Cit., p. 202).

III – O holismo em ciência:

            É a doutrina do holismo científico que produzirá as bases para a reorientação quineana do empirismo tradicional. Para Quine, a ciência deveria ser compreendida não como uma substituição do senso comum, mas como um prolongamento deste. Dessa maneira, os aprendizados mais primordiais, especialmente a linguagem, seriam determinantes na forma de descrever o mundo e as coisas.
            O destaque dado à linguagem deve-se ao fato de ser ela a responsável por oferecer o suporte necessário para a proferição de uma sentença qualquer ou seu contrário. É a intersubjetividade intrínseca ao aprendizado de uma linguagem que reforça no ser humano a sensação de que sua percepção das coisas é real e externa a ele. Nesse sentido, a função do discurso científico seria, em continuidade com o senso comum, fornecer um maior rigor a essa relação entre as sentenças básicas de observação e as hipóteses teóricas.
Para Quine, a concepção empirista tradicional de ciência estava impregnada por dois dogmas, a distinção analítico-sintético e o reducionismo, que criavam a falsa impressão de que a relação entre os enunciados teóricos e os suportes evidenciais se dava de forma direta, como propunha a teoria verificacionista. A importância do holismo reside, justamente, em apresentar um novo modo de conexão entre essas sentenças teóricas e suas relações internas e seu suporte empírico.
            Tradicionalmente, a distinção analítico-sintético separava duas classes de enunciados. Enquanto os enunciados analíticos eram enunciados independentes da experiência, cujo valor de verdade era estabelecido com base em critérios internos da própria linguagem, os enunciados sintéticos tinham seu valor de verdade nos fatos do mundo, na experiência. O reducionismo, por sua vez, afirmava que cada enunciado seria equivalente, isto é, redutível, a alguma construção lógica sobre termos referentes à experiência imediata.
            Segundo Quine, a noção de analiticidade é desenvolvida sobre um falso pressuposto do conceito de significado.

“O significado (...) não deve ser identificado com a nomeação. O exemplo de Frege da ‘estrela da manhã’ e da ‘estrela da tarde’, e o exemplo de Russel de ‘Scott’ e ‘o autor de Waverley’ ilustram o fato de que termos podem nomear a mesma coisa, mas diferir quanto ao significado. A distinção entre significar e nomear não é menos importante no nível dos termos abstratos. Os termos ‘9’ e ‘o número de planetas’ nomeiam uma única entidade abstrata, mas devem, presumivelmente, ser considerados diferentes quanto ao significado, pois observações astronômicas foram necessárias, e não apenas a reflexão sobre os significados, para determinar a igualdade da entidade em questão” (QUINE, 2011, p.38-39) [3].

            Desse modo, há, para Quine, um equívoco na concepção vigente das relações entre a linguagem e o mundo. Embora seja óbvio que o valor de verdade dos enunciados dependa tanto da linguagem como dos fatores extralingüísticos, de maneira alguma isso significa que a análise da verdade de cada enunciado particular possa ser feita isolando-se o componente lingüístico do componente factual. O enunciado particular não possui conteúdo empírico em si mesmo, mas, antes, depende de uma teoria que faça sua mediação com a experiência. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que “ciência e mundo defrontam-se como blocos indivisíveis, e a idéia de que ao recorte de uma teoria em enunciados corresponde um recorte análogo do mundo em fatos não pode pretender senão o estatuto de dogma” (LOPES DOS SANTOS, 1995, p.67 Apud BULCÃO, 2009, p. 103) [4].
            Assim, o que holismo procurou fazer foi deslocar a unidade de significância empírica da sentença, tomada particularmente, para um corpo ou sistema de sentenças, ou seja, a teoria.

“Trata-se aqui de recorrer a uma espécie de ampliação da definição contextual[5], estendida agora do enunciado para a teoria: assim como não era análise do significado de cada termo em particular que determinava o significado da sentença, mas ao contrário, era a sentença que determinava o significado do termo; do mesmo modo, não é a análise do significado de cada sentença isolada que determina o significado da teoria, mas, ao contrário, é a teoria ou sistema de sentenças que determina o significado de cada sentença. Transpondo isso para o aspecto doutrinal, isto implica que uma sentença nunca é verificada isoladamente pelo seu confronto com uma experiência imediata; antes, sua verificação sempre implica a verificação de várias outras sentenças às quais ela está relacionada no conjunto de uma teoria” (BULCÃO, Op. Cit., p. 107).

                        No entendimento de Quine, em uma teoria científica, até mesmo uma sentença completa poderia se revelar ordinariamente um texto curto demais para fornecer de forma independente o significado empírico. Somente um corpo inclusivo de teoria científica seria capaz de, tomado como um todo, ter conseqüências testáveis ou observáveis. 
            Entretanto, sabendo que predições propostas por teorias científicas constantemente falham, Quine precisou justificar esse fato. Para ele, o fracasso de uma teoria revela que a teoria é falsa e que, sendo assim, pelo menos uma de suas hipóteses é falsa. Essa simples constatação, no entanto, não permite identificar qual seja a sentença falsa. A solução, por sua vez, deveria ser encontrada a partir da tomada de uma decisão em relação a qual ou quais sentenças ou hipóteses seriam mais vulneráveis ou mais firmes.
            Como consequência da subdeterminação dessa teoria tem-se que, feitos os ajustes necessários dentro do sistema, qualquer enunciado pode ser mantido como verdadeiro. Do mesmo modo, nenhum enunciado está imune à revisão. Assim, o que Quine pretende demonstrar é que “não há nada contido na experiência que determine – direta, absolutamente ou de uma vez por todas – o conteúdo de uma teoria que se pretenda verdadeira (QUINE, 1953, p. 43 apud BULCÃO, 2009, Op. Cit, p. 8).

IV – Conclusão:

            Como foi observado, Quine, partindo da constatação de que a relação entre a observação e a teoria é frouxa, acaba por optar pela teoria como aquela que direciona a experiência. E ao se apartar da experiência na busca por relações mais seguras e firmes entre teorias e suportes evidenciais, Quine, radicalizando sua postura, acaba por assumir que todos os objetos seriam objetos teóricos.

“Entretanto, Quine também assume que as teorias são conjuntos de sentenças associadas a estímulos sensíveis já que em seu naturalismo pretende abdicar de especulações puramente teóricas e metafísicas. Logo, a afirmação de que todos os objetos são teóricos causa perplexidade dado que Quine considera os objetos como constituintes da experiência física pura sendo estados microfísicos que nos afetam e são capturados como inputs neurais. Por outro lado, segundo o naturalismo, ‘as teorias, como um todo – um capítulo de química, no caso, adicionado a adjuntos relevantes da lógica e outros – é (sic) um tecido de sentenças associadas variadamente entre si e a estímulos não-verbais pelos mecanismos de resposta condicionada.’[6] (PUGLIESE, 2010, p. 150) [7].

            Assim, ao comparar as teorias com um tecido formado por uma trama de estímulos e linguagem, Quine, através de uma caracterização empírica da linguagem, garante que o compartilhamento de suportes sensórios faça parte da própria estrutura das teorias. Essa afirmação é importante, visto que é a partir dela que Quine poderá demonstrar a possibilidade de um estudo cientificista da linguagem, baseado estritamente na observação objetiva e, portanto, livre de explicações metafísicas.
            O que Quine provavelmente não percebeu foi que, mesmo propondo uma epistemologia alheia às especulações metafísicas, tanto seu naturalismo quanto seu holismo foram construídos a partir do método filosófico-epistemológico tradicional, isto é: de modo especulativo e a priori. Sua solução encontrada para o problema da subdeterminação traz implícita em si a assunção de que, ao se enfrentar um embate epistemológico, a teoria deve ter a primazia sobre a experiência.

“Quine explora o caráter vago da relação entre teoria e observação, intensificando a distância entre termos teoréticos e critério de observação. A possibilidade de usar métodos de reconstrução vem do pressuposto de que as partes indecidíveis das teorias podem ser manipuladas a priori. O que nos interessa mais aqui não é exatamente avaliar o método de reconstrução de predicados, mas mostrar que este método, assim como o das funções-proxy[8] são (sic) técnicas teóricas que são aplicadas aprioristicamente já que tais transformações não dependem, em absoluto, da experiência. Estas transformações não afetam o suporte empírico para as teorias, já que as transformações ocorrem no âmbito da teoria pura” (Ibidem, p. 154).

            Além disso, outro ponto fraco da filosofia quineana é a ausência de exemplos reais de teorias que podem ser traduzidas por meio das proxy functions, assim como exemplos de duas teorias que sejam empiricamente equivalentes e logicamente incompatíveis.         Assim, o alto grau de abstração a que Quine submete suas teorias acaba por desvendar um caráter fortemente apriorístico e especulativo para um empirismo que se desenvolveu a partir da pretensão de se livrar de dogmas.

V – Bibliografia:

- BULCÃO, Marcos. Quine. In: Os filósofos: Clássicos da filosofia: vol III: de Ortega y Gasset a Vattimo / Rossano Pecoraro (org.). – Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009.
- __________________. É possível um realismo pragmatista? Quine e o naturalismo. In: COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia. São Paulo, Volume 5, Número 2, julho-dezembro, 2008, p.104-113. Disponível em < http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo > Acesso em 24 setembro 2011.
-___________________. O holismo quineano e a ciência sem dogmas. In: Praxis Filosófica, n.28, 2009. Disponível em < http://marcosbulcao.wordpress.com/2010/05/24/o-holismo-quineano-e-a-ciencia-sem-dogmas/ > Acesso em 24 setembro 2011.
- PUGLIESE, Natassja. Naturalismo e subdeterminação. In: Revista Análogos, vol X, 2010.
- QUINE, Willard Van Orman. De um ponto de vista lógico. São Paulo: Editora Unesp, 2011.



[1] BULCÃO, Marcos Nascimento. Quine. In: Os filósofos: Clássicos da filosofia: vol III: de Ortega y Gasset a Vattimo / Rossano Pecoraro (org.). – Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009.
[2] BULCÃO, Marcos Nascimento. É possível um realismo pragmatista? Quine e o naturalismo. In: COGNITIO-ESTUDOS: Revista Eletrônica de Filosofia. São Paulo, Volume 5, Número 2, julho-dezembro, 2008, p.104-113. Disponível em < http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo > Acesso em 24 setembro 2011.
[3] QUINE, Willard Van Orman. De um ponto de vista lógico. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
[4] BULCÃO, Marcos Nascimento. O holismo quineano e a ciência sem dogmas. In: Praxis Filosófica, n.28, 2009. Disponível em < http://marcosbulcao.wordpress.com/2010/05/24/o-holismo-quineano-e-a-ciencia-sem-dogmas/ > Acesso em 24 setembro 2011.
[5] A definição contextual precipitou uma revolução em semântica: menos repentina talvez que a Revolução Copernicana em astronomia, mas tal como esta foi uma mudança de centro. O veículo do sentido já não é visto como sendo a palavra, mas a frase. Os termos tal como as partículas gramaticais, significam por contribuírem para o sentido das frases que os contêm. O heliocentrismo proposto por Copérnico não era óbvio, e este também não é. Não é óbvio porque na maior parte dos casos, compreendemos as frases apenas por construção a partir de palavras já compreendidas. Isto é necessariamente assim visto que as frases são potencialmente infinitas em variedade. Podemos aprender algumas palavras isoladamente, com efeito como frases de uma-palavra (one-word sentences); aprendemos depois mais palavras em contexto, ao aprender várias frases curtas que as contêm; e as frases seguintes compreendemo-las por construção a partir das palavras assim aprendidas. Se a linguagem que aprendemos assim for, depois, compilada, o manual consistirá necessariamente, na sua maior parte, num dicionário, palavra-por-palavra, obscurecendo assim o facto de que os sentidos das palavras são abstracções das condições de verdade das frases que as contêm. (SÀÁGUA, 1995, p. 12) Quine, W. (1975), “Cinco Marcos do Empirismo” in Quine, Filosofia e Linguagem, (Porto: Asa, 1995), p. 11-17.

[6] QUINE, Willard van Orman. Things and their place in theories.  Cambridge, MA: Harvard University Press, 1981, p. 20.
[7] PUGLIESE, Natassja S. de Araújo. Naturalismo e subdeterminação. In: Revista Análogos, vol X, 2010.
[8] “Proxy function é uma espécie de mapeamento de um universo dentro do outro, mapeamento que nos mostra como um domínio de objetos pode ser eliminado – por meio de uma reinterpretação – em favor de algum outro universo (ou domínio de objetos), talvez parte própria do primeiro (OR, 55; TT, 17-9)”. (BULCÃO, 2009, p. 204).

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