A boca fala do que o coração tá cheio

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

E o Amor se fez carne...

No princípio era o verbo, o verbo estava com Deus e o verbo era Deus. Mas, como o Deus Amor nunca foi, de fato, uma ideia ou um conceito filosófico grego, o logos não o pode suportar por muito tempo e o derramou na existência. O Amor, assim, se fez carne...

            O nascimento de Jesus não nos fala, portanto, da fundação de uma nova religião ou da formação de um novo pensamento cultural. A boa nova que o caminhar do filho do homem sobre a terra nos traz é de natureza muito mais simples e profunda: o Amor se realiza entre os homens no sagrado chão da existência.

            Ironicamente, muito antes de Nietzsche, o próprio Cristo já havia – nele mesmo – realizado a inversão da metafísica tradicional. Num movimento de transcendência às avessas, mergulhando na imanência da terra e do corpo, verbo e sujeito fundiram-se num casamento, tornando-se, literalmente, uma só carne.

            Agradar seus interlocutores nunca foi sua prioridade. Comprometido com sua potência divina, era, por muitas vezes, duro e rigoroso com os comportamentos que iam de encontro não às leis da vida – que os judeus tinham muitas, diga-se de passagem –, mas à Vida das leis. Conectado e sintonizado ao verdadeiro espírito da lei, caminhou em liberdade, tudo cumprindo, sem, contudo, ser subjugado por coisa alguma.

            Amigo das festas, dos vagabundos e de toda a pilantragem, comeu e bebeu – a ponto de ser chamado de comilão e beberrão – com ladrões e prostitutas. Recebeu e acolheu esse mundo de tal maneira que o mundo não foi capaz de suportá-lo, enviando-o para a morte na cruz. Morte, aliás, sobre a qual triunfou e sobre a qual nos ensinou.

            O nascimento de Jesus, comemorado nesse dia, é, certamente, muito mais do que a celebração de um mero legado do cristianismo. É a celebração da própria humanidade e da certeza de que o Reino de Deus não é uma meta espiritual a ser alcançada, mas uma realidade que já está em – e entre – nós.

            Assim é que, nesse Natal – momento em que, independente da correspondência ao fato histórico do nascimento de Jesus, milhões de pessoas ao redor do mundo estão vibrando juntas numa mesma intenção – meu desejo sincero é de seguir na trilha deixada pelas pegadas do nazareno. Não seguir os passos do judeu que, há 2000 anos, andou pela Galiléia operando sinais e prodígios. Não tenho a menor pretensão de imitar ou ser como Jesus. Por um motivo óbvio: não sou Jesus. Sou Rodrigo! Essa seria, talvez, a maior traição aos seus ensinamentos.

            De outra forma, minha oração é que, a cada dia, o Natal se faça em mim, realizando o nascimento e o crescimento da consciência crística em meio ao caminhar entre os homens. Para que assim como o beija-flor realiza sua essência quando está junto à sua flor, fazendo aquilo para o que foi criado, também eu – que tenho em mim tanto o Cristo, quanto o beija-flor! – possa experimentar a expressão do meu ser em toda sua plenitude.

Que nossos cristos, flores e beija-flores interiores vivam em todos nós!

Feliz Natal!

domingo, 7 de dezembro de 2014

Notícias de uma escola pública

Quem faz a escola é o aluno. Mentira. Das brabas. Se assim o fosse, a escola certamente, seria um ambiente bem diferente do que é.  Esse tipo de discurso, infelizmente, não passa de uma artimanha desonesta que intenta transferir o ônus da responsabilidade do fracasso de um sistema educacional estruturalmente desumano, uma vez mais, para os mais vulneráveis.
Durante algum tempo da minha vida, tive um interesse muito grande nas questões relacionadas à segurança pública. Especialmente, em relação àquilo que dizia respeito à questão das drogas. Não que eu ache que as drogas sejam, de fato, uma questão de segurança pública. Mas, bizarramente, essa ainda é a nossa realidade.
E lembro-me que um dos primeiros contatos que tive com o tema, que me levou a despertar um olhar mais crítico e mais curioso para o assunto, foi através do documentário Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Salles. Nele, o então capitão do BOPE – e atual garoto propaganda da Rede Globo – Rodrigo Pimentel falava sobre o trabalho de enxugar gelo realizado pela polícia, matando traficantes e apreendendo armas e munições sem que nada de mais radical fosse feito nas engrenagens que sustentavam – e sustentam – de maneira mais sólida o comércio ilegal de drogas. Segundo ele, policiais e traficantes, alienados – muitas vezes de maneira consciente, diga-se de passagem! – de uma percepção mais ampla do sistema político – e econômico, acima de tudo! – que deles se alimenta, engalfinham-se numa guerra que acaba por transformar-se numa guerra particular, onde a sobrevivência cotidiana é a única coisa que realmente importa.
Certamente, não foi à toa que as imagens desse documentário vieram visitar minha mente essa semana. Quem tem qualquer relação com a escola, seja como professor ou como aluno, sabe que a realidade ali vivida, na maior parte das vezes, pouco se diferencia do que relatou o ex-policial em sua fala. Professores e alunos, movidos pelo desespero da sobrevivência e das exigências de uma sociedade que exclui peremptoriamente os que não se adequam aos seus ditames, esquecem-se de que estão ambos servindo a interesses nada nobres e inserem-se numa dinâmica onde passam a se comportar como se inimigos fossem, percebendo a presença do outro não mais como uma possibilidade de troca e aprendizado para ambos – que constituiria a própria ideia de educação –, mas como uma ameaça constante.
E creio que nenhum outro lugar expressa tão bem o desequilíbrio dessa relação patológica quanto a sala de professores. Um lugar que, a priori, deveria ser um polo irradiador de conhecimento, criatividade e, antes de tudo, amor, mas que, paradoxalmente, por inúmeros motivos legítimos, quase sempre assume as características de um quartel general. Frequentar esse recinto é, mais do que uma experiência filosófica, uma experiência terapêutica.
Ali pulula à flor da pele toda sorte de neuroses e medos humanos. Refugiado em sua trincheira, o professor encontra abrigo junto aos seus para recompor as suas forças e preparar-se para as novas investidas. E, como guerra não se faz sem a pressuposição de que o outro, sendo menos legítimo em sua existência, deve ser subjugado, sua principal arma é a repetição do discurso de poder que desqualifica seu inimigo número um: o aluno não quer nada. Assim, parece que todas as questões se resolvem e podemos seguir em paz a nossa vida.
Protegendo-se do verdadeiro confronto com sua incapacidade de perceber a impermanência de um mundo que se atualiza a todo momento e com sua dificuldade de se inserir como designer dessas novas estruturas que vão se desenhando, boa parte dos professores não consegue vislumbrar que sua atitude emocional (sim, como seres livres que somos, em alguma instância, pelo menos, somos responsáveis também pelo que sentimos!) perante o quadro que se apresenta termina sendo o – ou, pelo menos, mais um – elemento conservador das engrenagens que nos aprisionam e que tanto criticamos.
O fato é que, percebendo ou não, o mundo está passando por uma série de rápidas transformações. Transformações paradigmáticas. Nesse sentido, creio que não só será impossível a educação não ser atingida – como já está sendo! – pela energia desse novo tempo, como será, ela mesma, o grande cerne e a força motriz de geração desse novo mundo.
Por isso, a crise da educação e seu falido modelo “escolástico” não me assustam. Analogamente ao que Marx pensou em relação à expansão e aprofundamento do capitalismo como base para uma virada socialista – não, não sou marxista, de esquerda, direita ou qualquer outra tribo político-religiosa –, acredito que o fundo do poço em que se encontra a educação em nosso país, para além de todos os males reais, traz em si um potencial de transformação muito grande. Não temos para onde ir. E, quando chegamos nesse ponto, tomar outra direção já não é mais uma opção. É um imperativo.
Assim, meu desejo é que as muitas salas de professores espalhadas por esse Brasil possam, deixando de ser palco de futilidades e, especialmente, de discursos de ódio e separação, assumir esse papel revolucionário. Enquanto o professor não se perceber como aluno e não se enxergar no aluno, enxergando-o também como professor, nessa unidade indissolúvel que somos, não haverá espaço para uma real educação. Infelizmente, por algum motivo, criamos uma cultura onde acreditamos piamente na figura do professor como aquele que fala, transmitindo conhecimento e na figura do aluno como aquele que ouve, absorvendo o conteúdo. Porém, mais sábio que aquele que aprende conhecimento dos livros e os transmite é o professor que aprende a ler seus alunos.
Já passou da hora de deixarmos para trás o conforto da ingenuidade e encararmos o que todos sabemos: a mudança não virá daqueles que se nutrem do sistema. Nós somos a mudança. E toda mudança começa com um novo olhar. Apesar de todo seu moralismo, não podemos negar que Paulo de Tarso – o fariseu que teve com Cristo uma experiência mística – deixou-nos como legado algumas preciosidades. Em sua carta aos romanos, por exemplo, brindou-nos com a beleza desse ensinamento: Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente. Ele sabia que a transformação do mundo começa não nas estruturas exteriores às quais estamos submetidos, mas no interior de cada um, através das mudanças de percepção.
Portanto, deixando para trás todo espírito de separatividade e fragmentação que nos aliena, sigamos, num só passo junto aos alunos, em amor, por amor e para o amor. Afinal, convenhamos, educar não é nada muito além do que amar. 

domingo, 2 de novembro de 2014

Gira


Gira roda
Gira vida
Gira!

Gira o giro do universo
Gira ciranda da delícia
Giro líquido
Caldo de beleza

Vive a natureza
Ri toda a existência
Com pura alegria
Que transpõe qualquer sentido

Gira além de mim
Gira a própria perfeição
Onde tudo corre bem
Derrete o coração

Gira tudo o que for
Gira além de toda dor
Gira na doçura do amor!

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Assim falou Seu Tranca-Ruas


Tenho pensado muito na filosofia de Nietzsche ultimamente. Para quem alimenta o ser com pensamentos, até aí nada demais. Um a mais, um a menos nem sempre quer dizer lá muita coisa. Um fato, entretanto, começou a me chamar atenção: tão logo me pegava imerso nas ideias do bigodudo alemão, quem aparecia na minha mente para ilustrar a história não era o filósofo. Imponente e com sarcasmo estampado no rosto, lá sorria ele: Seu Tranca-Ruas.

Cheguei a lamentar, pensando: uma pena Nietzsche não ter tido contato com alguma tradição religiosa de matriz africana. A força da terra evocada por essas culturas era a mesma cultivada por ele em sua crítica ferrenha à metafísica ocidental. O negro, ao invés de fugir do mundo para encontrar Deus num céu idealizado, preferiu trazer seus Deuses à terra e, aqui, pisando forte no chão, dançou com todos eles. Se era um Deus que dança que ele procurava, certamente, o teria encontrado se, em vez de nas frias terras da Alemanha, tivesse caminhado pelas ladeiras da Bahia.

O fato é que essa linha cruzada mental me fez ver que há muito mais de Seu Tranca no pensamento de Nietzsche do que algum dia já pôde supor minha vã filosofia. A energia de Exu, expressa na quebra dos padrões e modelos bem definidos, na subversão da ordem estabelecida e na superação da dicotomia moral é o próprio espírito condutor de toda a obra nietzscheana.

Para o alemão, a existência  está acima do bem e do mal e o homem superior deve ser movido não pela moral e pelos valores socialmente construídos, mas por sua vontade de poder. Como resultado de forças que atuam em seu interior - numa constante batalha entre o espírito apolíneo e dionisíaco -, o homem livre se diferencia do homem do rebanho, justamente, pela ênfase dionisíaca com que conduz sua vida, dizendo constantemente sim a ela e à sua criatividade geradora. Nada mais exúdico.

O clássico e belíssimo trecho do Zaratustra, intitulado "Desprezadores do corpo", expressa, talvez como nenhum outro, a força dessa energia telúrica advinda dos Exus. Dignificando o corpo e a realidade terrena, Nietzsche rejeita todo transcendentalismo e integra, de maneira magistral, todos os aspectos que até então haviam sido tratados com desdém pelo pensamento metafísico ocidental.

"Quero dizer a minha palavra aos desprezadores do corpo. Não devem, a meu ver, mudar o que aprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeus ao seu corpo – e, destarte, emudecer. 

‘Eu não sou corpo e alma’ – assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as crianças?
Mas o homem já desperto, o sabedor, diz: ‘Eu sou todo corpo e nada além disso; e alma é somente uma palavra para alguma coisa do corpo’. 

O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. 

Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas ‘espírito’, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão. 

‘Eu’, dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior, no que não queres acreditar – é o teu corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu. 

Aquilo que os sentidos experimentam, aquilo que o espírito conhece, nunca tem seu fim em si mesmo. Mas sentidos e espíritos desejariam persuadir-te de que são eles o fim de todas as coisas: tamanha é sua vaidade. 

Instrumentos e brinquedos, são os sentidos e o espírito; atrás deles acha-se, ainda, o ser próprio. O ser próprio procura também com os olhos dos sentidos, escuta também com os ouvidos do espírito. 

E sempre o ser próprio escuta e procura: compara, subjuga, conquista, destrói. Domina e é, também, o dominador do eu. 

Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio desconhecido – e chama-se o ser próprio. Mora no teu corpo, é o teu corpo. 

Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E por que o teu corpo, então, precisaria logo da tua melhor sabedoria? 

O teu ser próprio ri-se do teu eu e de seus altivos pulos. ‘Que são, para mim, esses pulos e vôos do pensamento?’, diz de si para si. ‘Um simples rodeio para chegar aos meus fins. Eu sou as andadeiras do eu e o insuflador dos seus conceitos’. 

O ser próprio diz ao eu: ‘Agora, sente dor!’ E , então, o eu sofre e reflete em como poderá não sofrer mais – e, para isto, justamente, deve pensar. 

O ser próprio diz ao eu: ‘Agora, sente prazer!’ E, então, o eu se regozija e reflete em como poderá ainda regozijar-se muitas vezes – e para isto, justamente, deve pensar. 

Quero dizer uma palavra aos desprezadores do corpo. Que desprezem decorre de que prezam. Mas quem criou o apreço e o desprezo e o valor e a vontade? 

O ser próprio criador criou para si o apreço e o desprezo, criou para si o prazer e a dor. O corpo criador criou o espírito como mão da sua vontade. 

Mesmo em vossa estultícia e desprezo, ó desprezadores do corpo, estais servindo o vosso ser próprio. Eu vos digo: é justamente o vosso ser próprio que quer morrer e que volta as costas à vida. 

Não consegue mais o que quer acima de tudo: — criar para além de si. Isto ele quer acima de tudo; é o seu férvido anseio. 

Mas achou que, agora, era tarde demais para isso; — e, assim, o vosso ser próprio quer perecer, ó desprezadores da vida. 

Perecer, quer o vosso ser próprio, e por isso vos tornastes desprezadores do corpo! Porque não conseguis mais criar para além de vós. 

E, por isso, agora, vos assanhais contra a vida e a terra. Há uma inconsciente inveja no vesgo olhar do vosso desprezo. 

Não sigo o vosso caminho, ó desprezadores da vida! Não sois, para mim, ponte que leve ao super-homem! – 

Assim falou Zaratustra."

O que o texto não diz - eu, porém, vos digo!- é que Zaratustra, enquanto falava, trajava cartola e capa preta.

Laroiê Exu!

Simbiose


Quando a alma encontra canto
Canta o encanto do encontro
Dos corpos que se abrem
Numa troca sem fronteiras

O olhar atravessa os olhos
O toque trespassa a pele
O silêncio ama
A palavra cura

Os seres se entrelaçam
Em movimentos permeáveis
Perdendo-se e econtrando-se
Numa dança simbiótica

A ressonância da canção
Desnuda os corações
Sincronizando cada verso
Ao som do Universo

Canta, novo dia!
Canta nossa melodia
Canta a beleza do encontro
Canta a gratidão e a alegria

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Verde


Verde sumo da folha
Verde seiva da terra
Verde cura do corpo
Verde fonte da alma

Verde caminho de luz
Verde cor da floresta
Verde morada do sol
Verde alegria da festa

Verde pena do índio
Verde dança a aldeia
Verde ciranda de encantos
Verde som de muitos cantos

Verde alquimia sagrada
Verde existência bendita
Verde magia do mundo
Verde mistério da vida

sábado, 11 de outubro de 2014

Casamento


Como do um vem o dois
De dois nasce o um
Via de mão dupla
É a unidade absoluta

O calor que arde fora
Incendeia o interior
Que rompe num momento
Explodindo em casamento

As almas no espelho
Reconhecem sua luz
E como um raio de certeza
Mergulham o oceano da beleza

Positivo e negativo
Se entrelaçam num abraço
O sol beija a lua
Selando eterno e santo laço

É quando o mito se faz rito
A casa encontra casa
E a menina no menino
Torna o mundo mais bonito

No mistério da união
Bate sagrado o tambor
Conclamando toda Terra
A bailar ao som do Amor

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Dieta Eleitoral

Nessas eleições, meu voto foi de silêncio. Não que não tivesse uma série de opiniões muito inteligentes prontas para despejar em cima dos menos esclarecidos. Tinha, e muitas! Mas - confesso -, já não tenho acreditado tanto assim em minhas opiniões. Tem-me faltado - desculpe a expressão - o saco devido para defendê-las. Como Jaiminho, o carteiro do Chaves, tenho preferido evitar a fadiga e não emprestar mais a elas tanta energia quanto já emprestara em outros momentos. Aliás, diante do quadro político periclitante, nunca antes visto na história desse país, não diria que tem sido lá um esforço tão pesado.
Todavia, se nada falei, muito observei. E - não posso negar - muito me assustei. Mantendo certo distanciamento, pude perceber com uma clareza muito límpida que o sistema eleitoral brasileiro não é apenas algo muito perverso de um ponto de vista ético e político. Ele é diabólico. E não se enganem. Não digo isso com nenhuma conotação mística. Falo de um ponto de vista bem pouco metafísico, levando em consideração apenas o significado mais radical que se pode extrair do vocábulo grego diabolos: aquele que divide, que separa, o caluniador.
Como expectador, conscientemente alienado de todo esse pathos eleitoreiro e daquilo que o alimenta, tive a oportunidade de assistir de camarote o espetáculo mais bizarro da Terra: o espetáculo de nós mesmos! Iludidos e ludibriados por nossa própria arrogância e insensatez, disfarçadas em vestes ideológicas, enredamo-nos num jogo estruturalmente sórdido e servimos de mola mestra não apenas para a manutenção de um sistema político antipolítico, mas, antes de tudo, para a conservação de uma maneira nada saudável de enxergar a vida e suas relações. Uma maneira, diga-se de passagem, biofóbica!
Mas, também, creio que, pela primeira vez, pude compreender um pouco mais profundamente a resposta de Jesus àqueles que, querendo testá-lo questionaram-no à respeito do pagamento de impostos, colocando em xeque o tipo de relação que se deve ter para com as estruturas desse mundo que operam sob suas leis cármicas. Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus nunca teve nada a ver com uma visão fragmentada de mundo, onde se privilegia o aspecto sagrado da realidade em detrimento de um suposto mundo profano. Cristos - ou Budas - não conhecem essa divisão, são seres integrados e realizados. Porém, não se pode negar que aquele que conhece o Reino de Deus e em sua lei é iniciado - a lei do Amor -, dificilmente, dispor-se-á novamente a entrar em qualquer espécie de questão com César. Não faz mais sentido. César que brinque sozinho de ser rei! Afinal, o filho do Amor sabe que, por mais cruéis que possam ser as leis do Império, nenhuma delas jamais será capaz de subjugar o ser que, na consciência crística, encontrou sua inabalável liberdade.
Portanto, penso que o que o mestre diz, em outras palavras é o seguinte: concentrem suas energias no que vale à pena, no que é elevado. Uma vez mais, sem espiritualismos! Não posso compartilhar de nenhuma concepção que aborde a realidade de maneira fugidia, induzindo-nos a abandonar ou domar nossas paixões. Sou filho do fogo e creio que paixão tem mais é que queimar! Porém, vale lembrar que nelas habita tanto o poder da vida quanto da morte. Por isso, não pouco importante é aprender a direcioná-las para que, de maneira saudável, possam nos conduzir não para a destruição e morte do ser, mas para renovação e vida eterna. Os frutos continuam sendo a evidência imbatível que nos revela se estamos ou não trilhando o caminho da paz e da bem aventurança.
Assim, em termos bem práticos, senti que essa dieta eleitoral fez-me um bem danado. Votei em quem quis votar, sem ter que me defender e justificar de nada; diverti-me o quanto pude com nossa incurável capacidade de criar argumentos - dos mais toscos aos mais sofisticados - que, de alguma forma, legitimam e justificam crenças que, evidentemente, têm origem em regiões muito mais profundas, onde nossa limitada razão jamais chegará; e, acima de tudo, consegui poupar a mim e aos outros da porção de medo que em mim habita e que, pelo menos dessa vez, não conseguiu acordar para vestir-se de ódio ideológico e botar seu bloco na rua. Acho que, finalmente, estou aprendendo um pouquinho de subversão...

Curumim curandeira



Jeitinho suave e profundo
É sua expressão no mundo
Sob o sorriso sapeca de criança
Sorri também muitos mistérios
Inclusive, coisa de gente bem antiga
Curumim e curandeira
Acontecem, livres, em corpo de menina

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Amor de gente


Gosto mesmo é de ser gente
Assim foi me dada a oportunidade de amar
Amar gente
Amando como gente

Já quis ser santo
Como os anjos conhecer a pureza do amor
Transcender sei lá o quê
Para, quem sabe, amar sem sofrer

Mas não adianta!
É como gente que a vida me encanta
É nesse tudo o que sou
Que meu fogo arde

É sendo gente que me realizo
Encontro minha vocação
Voando e mergulhando
Onde manda o coração

Se alço os céus e louvo os deuses
Ou no inferno encontro meus demônios
Piso onde for preciso
Para, como gente, acolher o que for meu

Com corpo e rosto nus
Máscaras ao chão
Nesse amor com-paixão
Rasgo os manuais

Sendo apenas gente
Vou amando como posso
E posso tanto como gente
Que posso até amar demais



segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Simão, o mago vacilão

Conta o evangelista Lucas, no livro dos Atos dos Apóstolos, que, certa vez, enquanto Filipe anunciava o Reino de Deus em Samaria, curando e batizando em nome de Jesus - desperto na consciência crística! -, havia ali naquela cidade um homem com notável conhecimento de magia que ludibriava a todos, fazendo com que acreditassem ser ele um grande homem e exemplo de virtude.
Contudo, ao ver Pedro e João - recém chegados à cidade - impondo as mãos sobre as pessoas e estas recebendo o Espírito Santo, seu personagem não pôde mais se sustentar e - sozinho, sem precisar de ninguém para desmascará-lo - revelou, ali mesmo, a intenção de seu coração. Maravilhado com o que vira e desejoso daquele poder, ofereceu dinheiro aos discípulos para que dessem também a ele o dom de batizar com o Espírito Santo através da imposição de mãos.
A resposta de Pedro - certamente, filho de Ogum! -, foi curta e grossa: O teu dinheiro seja contigo para perdição, pois cuidaste que o dom de Deus se alcança por dinheiro. Com essas palavras, que nada têm de maldição ou qualquer outra coisa parecida com rogo de praga, Pedro não só o entrega a concupiscência de seu próprio coração, deixando que a vida lhe trate da maneira mais adequada, como deixa para nós um grande ensinamento. Aliás, dois!
O primeiro deles, e mais óbvio e direto, é o fato de que o Espírito não é sujeitável a nenhuma espécie de lógica mercantil. Sendo, justamente, o responsável por abrir a percepção de que o reino de mamom não passa de uma perspectiva reduzida e, portanto, ilusória da realidade, o Espírito Santo jamais se deixaria aprisionar pelas cadeias das quais vem nos libertar. O Reino de Deus, definitivamente, não está à venda e a única moeda corrente em seu território é a graça. O que passar disso é responsabilidade de cada um diante de seu próprio coração e consciência.
O segundo ensinamento que o caminho do mago Simão nos traz - tão ou mais importante que o primeiro - é que os carismas, dons ou capacidades extrafísicas pouco - ou nada - têm a ver com a retidão e sinceridade de coração com as quais nos apresentamos diante de Deus e dos homens. Tanto Simão quanto os apóstolos eram conhecidos por seus prodígios. Entretanto, como bem é cantada a sabedoria popular no corrido de capoeira: Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que balança cai.
Aprender a discernir o metal verdadeiro do ouro de tolo é tarefa da maior importância no caminho espiritual e - pode ter certeza! - nos poupa de muita confusão e dores desnecessárias. Digo isso porque, geralmente, quando nos deixamos iludir por tudo que brilha em nossa frente, acabamos por transferir a terceiros - que, talvez, julguemos serem mais evoluídos ou amigos de Deus do que nós, não sei… - o poder que só a nós pertence: de reconhecer nossa consciência e fazer nosso próprio caminho. Com isso, nos abrimos para toda sorte de manipulação e assaltos espirituais, que, dificilmente, deixarão de trazer consigo uma boa carga de sofrimento emocional.
É interessante, ainda, ressaltar que, diante do mago 171, a reação de Pedro foi enérgica. Nossa visão romanceada - quando não babaca - do amor, muitas vezes, nos mergulha em profundo engano, levando-nos a alimentar situações que drenam nossa energia, sob a alegação de uma postura amorosa para com o outro. Simão, certamente, não era aquilo que se pode chamar de um pilantra completo. Ninguém o é. Se tivesse filhos - o texto não comenta -, provavelmente, seria amado por eles, que, também, provavelmente, reconheceriam nele uma série de virtudes ocultas aos olhos dos demais. Da mesma forma o fariam sua mãe e seus amigos. Creio que Pedro, cheio do Espírito Santo, também não ignorasse nada disso. Entretanto, repito: Pedro foi enérgico! Há situações que se colocam diante de nós em que uma simples poda não resolve. Os galhos voltam a crescer e crescem revigorados. Às vezes, lançar o machado sobre a raiz de uma árvore é a única maneira de preservar a floresta.
Mágicos e ilusionistas espirituais, como Simão, sempre existiram e, provavelmente, sempre existirão. E não há problema nenhum nisso. Não precisamos achar que são, de alguma maneira, homens maus ou nossos inimigos. Desde que não os empoderemos, serão apenas homens comuns que, inseguros e inconscientes de si mesmos, apegam-se a externalidades - ainda que espirituais! - como forma de suprir a elevada demanda de seus egos gulosos. Em outra palavras, gente desesperada que encontrou na espiritualidade sua forma de chamar atenção. Por isso, entregar Simão ao seu próprio caminho, sem dar-lhe a atenção requerida, é o melhor que podemos fazer por nós e por ele mesmo. Deus, em sua infinita misericórdia, cuidará de todos!

domingo, 28 de setembro de 2014

A natureza autossustentável do amor



Nem tudo que fazemos, fazemos por amor. Por mais amorosos, evoluídos ou conscientes que sejamos, creio que essa é uma honestidade que devemos a nós mesmos. Nessa Terra de expiação por onde andamos, ainda que, de alguma maneira, consigamos transcender o reino da dualidade, não nos limitando aos aspectos fenomenológicos da realidade manifesta, há ainda em nós sempre muita ignorância a ser dissipada. Cristos, budas e iogues iluminados contam-se nos dedos.
Assim é que quando trabalhamos, por exemplo - e aqui refiro-me ao trabalho em sentido estrito, como aquela atividade por meio da qual obtemos nosso sustento, pagamos nossas contas e suprimos nossas necessidades básicas e supérfluas -, muito raramente o fazemos por amor. Por maior que seja nossa identificação e o sentimento de realização gerado por aquilo que é feito, não penso que possamos chamar essa relação de amor. Suspenda a retribuição financeira proporcionada pelo trabalho e verás que tenho razão. O amor - parece-me - constitui uma outra forma de relacionamento com a existência que não se permite subjugar a qualquer relação de dependência. A liberdade é seu bem mais precioso.
Por amor fazemos aquilo que faríamos de qualquer maneira. Com ou sem dinheiro, com ou sem reconhecimento. E não se iluda: não há aqui nenhuma espécie de julgamento moral que pretenda afirmar que essa maneira de agir é, em si, superior àquela. O amor, ao contrário do que comumente se pensa, não é resultado de um esforço evolutivo que acaba por se expressar em atitudes amorosas. Amor é a própria realidade. A realidade nua em sua essência mais profunda. Por isso, quando amamos, não amamos porque somos bonzinhos. Amamos porque, conectando-nos ao fluxo universal, o próprio amor nos atravessa, faz-nos sentir amados e, sentindo-nos amados, natural e espontaneamente, transbordamos. Isso é amar. Simples, gratuito e abundante como a mangueira que, no verão, derrama seus frutos sobre a terra.
É um tipo de relação que se retroalimenta e, aproveitando a palavra da moda,  poderia dizer que o amor é a expressão maior daquilo que entendemos por sustentabilidade. O amor é, assim, tanto o “produto final”, quanto  a energia geradora responsável por viabilizar todos os recursos necessários para sua própria realização. Operando num ciclo fechado, constituindo-se como causa e efeito de todo o processo, acaba - paradoxalmente - por transcender os duros grilhões da lei de causa e efeito que rege essas bandas conscienciais por onde andamos e torna a si mesmo lei, transportando-nos para seu reino de liberdade.
Desse modo, para que a conta feche e não haja desequilíbrios, o amor nos ensina a lição mais fundamental de toda a vida: só podemos dar o que temos para dar. Quando, porém, não temos - e não há problema algum em não ter! - e, ainda assim, nos permitimos convencer - geralmente, por forças obscuras de nosso próprio ego - de que precisamos compartilhar o que nem nós mesmos ainda experienciamos, aí, coloca-se a grande armadilha: a perspectiva da falta de recursos. Ou seja: Deus te enviou para salvar a humanidade e aliviar o sofrimento alheio, mas te enviou com uma mão na frente e outra atrás. É um brincalhão! Cabe, agora, a você, empreendedor das hostes celestiais, um bom plano de negócios para fazer rodar essa geringonça.
Nesse ponto, o candidato a messias, para dar conta de tão nobre missão, antes mesmo que ela inicie, acaba por desfigurá-la, transformando-a em luta por sobreviência e estabelecendo com ela uma relação de dependência. É o momento em que a missão vira profissão e o amor torna-se capital. Deixando de ser uma experiência vívida, pronta a ser compartilhada espontaneamente por qualquer um que se apresente no caminho, torna-se produto de um mercado de ilusões, que, naturalmente, só terá acesso quem puder pagar por seu preço. Geralmente alto. Não é barato sustentar as demandas de classe média que, comumente, frequentam as consciências que dão refúgio a esse tipo de mentalidade.
Além disso, é ainda nesse momento que melhor se pode expressar a ingratidão para com a fonte de toda luz eterna que, pela graça - e somente por ela -, jorra diariamente sobre todos nós. E, talvez, seja também o momento onde se assina o maior atestado de falta de fé nos próprios ensinamentos transmitidos.
Afinal, não se pode falar de amor de uma posição diferente daquela que nos ensinou o próprio amor encarnado: “Buscai em primeiro lugar o reino dos céus e sua justiça, e todas as demais coisas vos serão acrescentadas”. O reino a que se referia, ele bem sabia, não era - e continua não sendo - deste mundo. Pertence a outra lógica. Portanto, se não pudermos experimentar a verdade dessas palavras em nossa própria existência, melhor seria que nem falássemos do amor. Certamente, ele não se ressentiria de nós e, de nossa parte, seríamos poupados de nossa própria estultice.