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terça-feira, 28 de outubro de 2014

Assim falou Seu Tranca-Ruas


Tenho pensado muito na filosofia de Nietzsche ultimamente. Para quem alimenta o ser com pensamentos, até aí nada demais. Um a mais, um a menos nem sempre quer dizer lá muita coisa. Um fato, entretanto, começou a me chamar atenção: tão logo me pegava imerso nas ideias do bigodudo alemão, quem aparecia na minha mente para ilustrar a história não era o filósofo. Imponente e com sarcasmo estampado no rosto, lá sorria ele: Seu Tranca-Ruas.

Cheguei a lamentar, pensando: uma pena Nietzsche não ter tido contato com alguma tradição religiosa de matriz africana. A força da terra evocada por essas culturas era a mesma cultivada por ele em sua crítica ferrenha à metafísica ocidental. O negro, ao invés de fugir do mundo para encontrar Deus num céu idealizado, preferiu trazer seus Deuses à terra e, aqui, pisando forte no chão, dançou com todos eles. Se era um Deus que dança que ele procurava, certamente, o teria encontrado se, em vez de nas frias terras da Alemanha, tivesse caminhado pelas ladeiras da Bahia.

O fato é que essa linha cruzada mental me fez ver que há muito mais de Seu Tranca no pensamento de Nietzsche do que algum dia já pôde supor minha vã filosofia. A energia de Exu, expressa na quebra dos padrões e modelos bem definidos, na subversão da ordem estabelecida e na superação da dicotomia moral é o próprio espírito condutor de toda a obra nietzscheana.

Para o alemão, a existência  está acima do bem e do mal e o homem superior deve ser movido não pela moral e pelos valores socialmente construídos, mas por sua vontade de poder. Como resultado de forças que atuam em seu interior - numa constante batalha entre o espírito apolíneo e dionisíaco -, o homem livre se diferencia do homem do rebanho, justamente, pela ênfase dionisíaca com que conduz sua vida, dizendo constantemente sim a ela e à sua criatividade geradora. Nada mais exúdico.

O clássico e belíssimo trecho do Zaratustra, intitulado "Desprezadores do corpo", expressa, talvez como nenhum outro, a força dessa energia telúrica advinda dos Exus. Dignificando o corpo e a realidade terrena, Nietzsche rejeita todo transcendentalismo e integra, de maneira magistral, todos os aspectos que até então haviam sido tratados com desdém pelo pensamento metafísico ocidental.

"Quero dizer a minha palavra aos desprezadores do corpo. Não devem, a meu ver, mudar o que aprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeus ao seu corpo – e, destarte, emudecer. 

‘Eu não sou corpo e alma’ – assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as crianças?
Mas o homem já desperto, o sabedor, diz: ‘Eu sou todo corpo e nada além disso; e alma é somente uma palavra para alguma coisa do corpo’. 

O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. 

Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas ‘espírito’, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão. 

‘Eu’, dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior, no que não queres acreditar – é o teu corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu. 

Aquilo que os sentidos experimentam, aquilo que o espírito conhece, nunca tem seu fim em si mesmo. Mas sentidos e espíritos desejariam persuadir-te de que são eles o fim de todas as coisas: tamanha é sua vaidade. 

Instrumentos e brinquedos, são os sentidos e o espírito; atrás deles acha-se, ainda, o ser próprio. O ser próprio procura também com os olhos dos sentidos, escuta também com os ouvidos do espírito. 

E sempre o ser próprio escuta e procura: compara, subjuga, conquista, destrói. Domina e é, também, o dominador do eu. 

Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio desconhecido – e chama-se o ser próprio. Mora no teu corpo, é o teu corpo. 

Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E por que o teu corpo, então, precisaria logo da tua melhor sabedoria? 

O teu ser próprio ri-se do teu eu e de seus altivos pulos. ‘Que são, para mim, esses pulos e vôos do pensamento?’, diz de si para si. ‘Um simples rodeio para chegar aos meus fins. Eu sou as andadeiras do eu e o insuflador dos seus conceitos’. 

O ser próprio diz ao eu: ‘Agora, sente dor!’ E , então, o eu sofre e reflete em como poderá não sofrer mais – e, para isto, justamente, deve pensar. 

O ser próprio diz ao eu: ‘Agora, sente prazer!’ E, então, o eu se regozija e reflete em como poderá ainda regozijar-se muitas vezes – e para isto, justamente, deve pensar. 

Quero dizer uma palavra aos desprezadores do corpo. Que desprezem decorre de que prezam. Mas quem criou o apreço e o desprezo e o valor e a vontade? 

O ser próprio criador criou para si o apreço e o desprezo, criou para si o prazer e a dor. O corpo criador criou o espírito como mão da sua vontade. 

Mesmo em vossa estultícia e desprezo, ó desprezadores do corpo, estais servindo o vosso ser próprio. Eu vos digo: é justamente o vosso ser próprio que quer morrer e que volta as costas à vida. 

Não consegue mais o que quer acima de tudo: — criar para além de si. Isto ele quer acima de tudo; é o seu férvido anseio. 

Mas achou que, agora, era tarde demais para isso; — e, assim, o vosso ser próprio quer perecer, ó desprezadores da vida. 

Perecer, quer o vosso ser próprio, e por isso vos tornastes desprezadores do corpo! Porque não conseguis mais criar para além de vós. 

E, por isso, agora, vos assanhais contra a vida e a terra. Há uma inconsciente inveja no vesgo olhar do vosso desprezo. 

Não sigo o vosso caminho, ó desprezadores da vida! Não sois, para mim, ponte que leve ao super-homem! – 

Assim falou Zaratustra."

O que o texto não diz - eu, porém, vos digo!- é que Zaratustra, enquanto falava, trajava cartola e capa preta.

Laroiê Exu!

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