A boca fala do que o coração tá cheio

domingo, 28 de setembro de 2014

A natureza autossustentável do amor



Nem tudo que fazemos, fazemos por amor. Por mais amorosos, evoluídos ou conscientes que sejamos, creio que essa é uma honestidade que devemos a nós mesmos. Nessa Terra de expiação por onde andamos, ainda que, de alguma maneira, consigamos transcender o reino da dualidade, não nos limitando aos aspectos fenomenológicos da realidade manifesta, há ainda em nós sempre muita ignorância a ser dissipada. Cristos, budas e iogues iluminados contam-se nos dedos.
Assim é que quando trabalhamos, por exemplo - e aqui refiro-me ao trabalho em sentido estrito, como aquela atividade por meio da qual obtemos nosso sustento, pagamos nossas contas e suprimos nossas necessidades básicas e supérfluas -, muito raramente o fazemos por amor. Por maior que seja nossa identificação e o sentimento de realização gerado por aquilo que é feito, não penso que possamos chamar essa relação de amor. Suspenda a retribuição financeira proporcionada pelo trabalho e verás que tenho razão. O amor - parece-me - constitui uma outra forma de relacionamento com a existência que não se permite subjugar a qualquer relação de dependência. A liberdade é seu bem mais precioso.
Por amor fazemos aquilo que faríamos de qualquer maneira. Com ou sem dinheiro, com ou sem reconhecimento. E não se iluda: não há aqui nenhuma espécie de julgamento moral que pretenda afirmar que essa maneira de agir é, em si, superior àquela. O amor, ao contrário do que comumente se pensa, não é resultado de um esforço evolutivo que acaba por se expressar em atitudes amorosas. Amor é a própria realidade. A realidade nua em sua essência mais profunda. Por isso, quando amamos, não amamos porque somos bonzinhos. Amamos porque, conectando-nos ao fluxo universal, o próprio amor nos atravessa, faz-nos sentir amados e, sentindo-nos amados, natural e espontaneamente, transbordamos. Isso é amar. Simples, gratuito e abundante como a mangueira que, no verão, derrama seus frutos sobre a terra.
É um tipo de relação que se retroalimenta e, aproveitando a palavra da moda,  poderia dizer que o amor é a expressão maior daquilo que entendemos por sustentabilidade. O amor é, assim, tanto o “produto final”, quanto  a energia geradora responsável por viabilizar todos os recursos necessários para sua própria realização. Operando num ciclo fechado, constituindo-se como causa e efeito de todo o processo, acaba - paradoxalmente - por transcender os duros grilhões da lei de causa e efeito que rege essas bandas conscienciais por onde andamos e torna a si mesmo lei, transportando-nos para seu reino de liberdade.
Desse modo, para que a conta feche e não haja desequilíbrios, o amor nos ensina a lição mais fundamental de toda a vida: só podemos dar o que temos para dar. Quando, porém, não temos - e não há problema algum em não ter! - e, ainda assim, nos permitimos convencer - geralmente, por forças obscuras de nosso próprio ego - de que precisamos compartilhar o que nem nós mesmos ainda experienciamos, aí, coloca-se a grande armadilha: a perspectiva da falta de recursos. Ou seja: Deus te enviou para salvar a humanidade e aliviar o sofrimento alheio, mas te enviou com uma mão na frente e outra atrás. É um brincalhão! Cabe, agora, a você, empreendedor das hostes celestiais, um bom plano de negócios para fazer rodar essa geringonça.
Nesse ponto, o candidato a messias, para dar conta de tão nobre missão, antes mesmo que ela inicie, acaba por desfigurá-la, transformando-a em luta por sobreviência e estabelecendo com ela uma relação de dependência. É o momento em que a missão vira profissão e o amor torna-se capital. Deixando de ser uma experiência vívida, pronta a ser compartilhada espontaneamente por qualquer um que se apresente no caminho, torna-se produto de um mercado de ilusões, que, naturalmente, só terá acesso quem puder pagar por seu preço. Geralmente alto. Não é barato sustentar as demandas de classe média que, comumente, frequentam as consciências que dão refúgio a esse tipo de mentalidade.
Além disso, é ainda nesse momento que melhor se pode expressar a ingratidão para com a fonte de toda luz eterna que, pela graça - e somente por ela -, jorra diariamente sobre todos nós. E, talvez, seja também o momento onde se assina o maior atestado de falta de fé nos próprios ensinamentos transmitidos.
Afinal, não se pode falar de amor de uma posição diferente daquela que nos ensinou o próprio amor encarnado: “Buscai em primeiro lugar o reino dos céus e sua justiça, e todas as demais coisas vos serão acrescentadas”. O reino a que se referia, ele bem sabia, não era - e continua não sendo - deste mundo. Pertence a outra lógica. Portanto, se não pudermos experimentar a verdade dessas palavras em nossa própria existência, melhor seria que nem falássemos do amor. Certamente, ele não se ressentiria de nós e, de nossa parte, seríamos poupados de nossa própria estultice.

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