Indrodução
Apesar de sua evidente
riqueza e das inúmeras contribuições que pode trazer para o debate filosófico,
é inegável o fato de que o pensamento do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard
permanece ainda bastante pouco explorado, especialmente no âmbito da academia
brasileira. Nesse sentido, essa pesquisa teve como objetivo não só contribuir
com a difusão de suas ideias, como, principalmente, apresentá-las como uma
alternativa de pensamento que rompe com o tradicional dogma da autonomia da
razão –
pressuposto sobre o qual se desenvolveram, praticamente, todas as filosofias
até então, dos gregos até os pós-modernos.
Para isso, inicialmente, procurei
compreender o contexto histórico-filosófico no qual o autor encontra-se
inserido, buscando delimitar o que ele entende por filosofia existencial, que – de acordo com sua perspectiva – seria
a única filosofia realmente legítima; em um segundo momento, debrucei-me sobre
sua concepção de Indivíduo, que, como
será mostrado, constitui o conceito-chave para a compreensão de todo o seu
pensamento; em seguida, trabalhei os conceitos de ética, repetição e liberdade, procurando compreender não só
como eles se relacionam entre si, mas, também, o que têm a nos oferecer em
termos de contribuição para a nossa própria existência; e, por fim, à título de
conclusão, tencionei analisar até que ponto Kierkegaard foi – ou não – fiel ao
seu projeto.
O
primado da existência
Nas raríssimas vezes em que se ouve alguma menção ao
pensamento de Kierkegaard, geralmente o discurso encontra-se ligado ou a sua
clássica concepção dos três estádios da existência, ou a sua alegada
paternidade do existencialismo. Entretanto, se se pretende compreender a obra
do dinamarquês de maneira mais fiel à compreensão que ele mesmo possuía de si enquanto
filósofo, o primeiro mito que precisa ser desfeito, é, justamente, esse que o
apresenta como pai do existencialismo.
Segundo Gouvêa, embora Kierkegaard tenha, certamente,
influenciado o pensamento de alguns dos assim chamados filósofos existencialistas
– assim como também o fizeram Dostoievsky, Nietzsche, Miguel de Unamuno, Kafka,
Henri Bergson e Martin Buber, entre outros –, identificar sua filosofia com
essa escola de pensamento constituir-se-ia não somente um erro banal, mas uma
traição (Cf. GOUVÊA, 2009, p. 47) .
Entretanto, infelizmente, ao definir Kierkegaard como pai do existencialismo,
“pode-se mais facilmente louvá-lo ou rejeitá-lo como irracionalista,
subjetivista, ou relativista. É o modo mais fácil de livrar-se de um autor
difícil” (GOUVÊA, 2006, p. 88) .
De fato, até mesmo um olhar superficial sobre o corpus kierkegaardiano é capaz de
revelar, com bastante clareza, a forte repulsa que Kierkegaard sempre nutriu em
relação aos sistemas filosóficos. Nesse sentido, nada seria mais irracional do
que ele próprio desenvolver um tipo de pensamento contra o qual combateu por
praticamente toda a vida, seja ele de cunho existencialista ou de qualquer
outra natureza. A existência, para Kierkegaard, definitivamente, não se ajusta
a sistemas:
Um
pensador ergue um grande edifício, um sistema, um sistema que abrange o todo da
existência, história do mundo, etc., e se sua vida pessoal é considerada, para
nosso espanto faz-se a descoberta assustadora e burlesca de que ele mesmo não
vive pessoalmente neste grande e abobodado palácio, mas numa cabana ao lado, ou
numa casa de cachorro, ou na melhor das hipóteses, na guarita do porteiro
(KIERKEGAARD apud ibidem, p. 89).
Assim,
o que se observa é que a intenção de Kierkegaard nunca foi a de criar sistemas
de pensamento ou dar início a alguma escola filosófica. De outro modo, ele via
a si mesmo como um corretivo existencial de seu tempo, que tinha como tarefa
apresentar os ideais de maneira poética, de forma que pudesse incitar as
pessoas sobre a ordem estabelecida (Cf.
SONTAG apud ibidem, p. 89).
Entretanto, para Gouvêa, Sartre cometeu um grave equívoco ao considerar “o
compromisso de Kierkegaard com o cristianismo como se fosse algo supérfluo,
apesar da crença deste de que isto era a pedra fundamental de seu pensamento”
(GOUVÊA, Op. Cit. p. 90). Na verdade,
o que aconteceu foi que não apenas Sartre, como também Heidegger, “ignoraram o
único e singular propósito declarado de toda a obra de Kierkegaard: esclarecer
conceitos cristãos e mostrar como alguém realmente pode tornar-se cristão” (ibidem, p. 91). Sem esse entendimento,
até mesmo a compreensão a respeito dos três estádios da existência fica
comprometida.
O
movimento descrito pela obra é este: do poeta (da estética), da filosofia (da
especulação), para a indicação da definição mais central do que seja
cristianismo... Este movimento foi conseguido ou descrito uno tenore, de um fôlego, se posso usar esta expressão, de forma
que a obra, vista integralmente, é religiosa do início ao fim – algo que todo
mundo pode ver se estiver disposto a ver, e portanto pode ver...a mente
perspicaz reconhecerá que correspondendo a esta obra há um originador que, como
autor, “desejou apenas uma coisa”. A mente perspicaz reconhecerá ao mesmo tempo
que esta coisa é o religioso, mas o religioso completa e profundamente
transposto em reflexão, mas de tal forma que esteja completa e profundamente
retirado da reflexão e devolvido à simplicidade – isto é, ele verá que a
estrada percorrida tem o alvo de aproximar, de obter simplicidade” (KIERKEGAARD apud ibidem, p. 91).
Todavia,
se o exposto até aqui já é suficiente para rejeitarmos qualquer relação mais
direta de Kierkegaard com o existencialismo, é também inegável a forte ênfase
existencial que pode ser encontrada ao longo de toda sua obra. Para
Kierkegaard, de fato, não havia nada mais repugnante do que uma filosofia que
se reduzisse a meros jogos linguísticos, com suas proposições bem articuladas,
mas vazias de conteúdo. Em seu entendimento, a filosofia deveria ser não uma
reflexão de saber, mas uma reflexão de poder, que, de alguma forma, conduzisse
o singular a comprometer-se consigo mesmo, tornando-o capaz de reduplicar o ato
de pensar no ato de existir (Cf.
ALMEIDA E VALLS, 2007, p. 30) .
Assim,
o que fica bastante evidente é que a chave hermenêutica da filosofia
existencial, da maneira como Kierkegaard a compreende, deve ser a decisão
apaixonada do existente na transformação da própria existência, visto que toda
decisão essencial se dá na subjetividade. Com isso, a filosofia sai do campo de
uma mera abstração estéril e assume a perspectiva de um diálogo íntimo e
profundo do eu consigo mesmo.
Obviamente, essa ênfase kierkegaardiana na
subjetividade rendeu-lhe várias críticas daqueles que viram nela a
possibilidade de degeneração em subjetivismo ou relativismo. Entretanto, para
compreender o pensamento do dinamarquês é necessário não somente atentar para o
caráter eminentemente cristão de sua obra – como já colocado anteriormente –,
como também situá-lo no contexto histórico-filosófico no qual está inserido.
Nesse
sentido, é possível afirmar que os escritos kierkegaardianos estão,
praticamente, o tempo todo em um intenso diálogo com o racionalismo moderno,
expressos, principalmente, nos pensamentos de Kant e Hegel. Para o filósofo de
Copenhagen, a filosofia hegeliana, especialmente, poderia até ter alguma
utilidade na interpretação da vida, o verdadeiro problema, entretanto, seria
vivê-la (Cf. GOUVÊA, Op. Cit., p. 44). Por isso, a
identificação que a filosofia moderna opera entre o ser e o pensamento é,
tacitamente, rejeitada por Kierkegaard.
Na
filosofia das ideias puras, a qual não considera o indivíduo real, a passagem é
de absoluta necessidade (como aliás no hegelianismo, no qual tudo se realiza
com necessidade), isto é, a passagem do compreender ao agir não tropeça em
nenhum embaraço. [...] E é igualmente esse, no fundo, todo o segredo da
filosofia moderna, toda ela contida no cogito
ergo sum, na identidade do pensamento e do ser; (ao passo que o cristão,
esse, pensa: Que vos seja dado segundo a
vossa fé ou: tal fé, tal homem, ou: crer é ser). A filosofia moderna não é,
como se vê, senão paganismo (KIERKEGAARD, 1979, p. 250) .
Também
sobre a crítica kierkegaardiana a essa identificação da filosofia moderna do
ser e do pensar, Almeida e Valls comentam o seguinte:
A
diferença entre pensamento e existência, embora colocada pela razão, não se
reduz à razão, porque, na ótica existencial, a razão é uma dimensão da
existência, não sinônimo dela. O pensamento puro não é capaz de criar a partir
do próprio pensar a realidade, Deus e o Bem. A tarefa existencial não é objeto
do pensamento puro, mas da existência, precisamente, do existente, pois
“existir significa, antes de tudo, e, sobretudo, ser um indivíduo singular e é
por isso que o pensamento puro deve prescindir da existência, porque o singular
não se deixa pensar, somente o universal” (ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 53).
Por isso, para Kierkegaard, essa supressão do indivíduo
singular diante da abstração do universal que ganhou força na modernidade
mostrou-se tão perniciosa e desumanizadora. Nesse sentido, a “correção
dialética” operada por Hegel na lógica aristotélica – negando os princípios de
não-contradição e do meio excluído – acabou por engolir todas as oposições,
transformando a vida numa apatia absoluta e conduzindo-a à desmoralização (Cf. GOUVÊA, 2009, p. 54). Portanto, no
entendimento do dinamarquês, “dissolver-se no universal, seja concebido como
estado ou como pensamento universal, é rejeitar a responsabilidade pessoal e a
existência autêntica (ibidem, p. 55).
Para compreender essa forte antipatia de Kierkegaard à
filosofia moderna – e ao hegelianismo em particular, com sua forte ênfase
universalista – é preciso compreender que, para ele, a existência é, antes de
tudo, contradição, ou, utilizando o termo mais comumente empregado por ele:
paradoxo. Enquanto a filosofia estava identificada à mediação, o cristianismo,
por sua vez, constituía o paradoxo. Ainda que a lógica dialética hegeliana
tivesse acabado não só com todos os paradoxos, mas, também, com sua própria
possibilidade de existência, para Kierkegaard “a personalidade protestará por
toda a eternidade contra a ideia de que contrastes absolutos podem ser mediados
(e este protesto é incomensurável com a afirmação da mediação); para toda a
eternidade ela repetirá seu dilema imortal: ser ou não ser – eis a questão
(Hamlet)” (KIERKEGAARD, apud GOUVÊA,
2006, p. 169).
Kierkegaard
amava paradoxos porque ele via a importância do paradoxo para a transmissão das
mais profundas verdades cristãs. A percepção de que paradoxos são fundamentais
para a comunicação das mais profundas verdades religiosas não é sequer
exclusivamente cristã ou bíblica. Ela está presente também em outras religiões.
São exemplos disso também os Koans do Zen-Budismo, a tradição do Budismo
Madhiamica, e o Hassidismo judaico. [...] Enfim, o paradoxo é uma ferramenta
por meio da qual o eu ético-religioso
pode ser, como Carnell coloca, “chocado de sua tendência natural de ter uma
idéia maior de si do que deveria. Enquanto o eu conseguir perpetuar a ilusão de que sua posição no tempo é
apenas uma ocasião para especulação, assim o eu continuará ignorante de seu pecado. E esta ignorância, por sua
vez, encorajará o eu a conceber Deus
como pouco mais do que a contra-partida cósmica da razão humana” (GOUVÊA, Op. Cit., p. 170).
Portanto, de acordo com o que foi exposto até aqui, três
pontos devem ser considerados fundamentais na abordagem do pensamento
kierkegaardiano: Kierkegaard não é – nem de longe – um filósofo
existencialista, mas um cristão que dedica seu labor filosófico à tarefa de
conduzir os homens ao cristianismo do Novo Testamento; apesar disso, sua
filosofia apresenta, sim, uma forte ênfase existencial, visto que, mesmo não
terminando suas conclusões na existência, ele tira suas conclusões da
existência, quer se movimente na esfera dos fatos sensíveis e palpáveis, quer
no domínio do pensamento (Cf.
KIERKEGAARD, 2011, p.63) ;
e, por fim, todo o corpus
kierkegaardiano encontra-se em constante diálogo com a tradição moderna, numa
atitude não só de forte crítica aos sistemas filosóficos, mas, especialmente,
de afirmação do indivíduo e da responsabilidade humana diante das escolhas que
a vida nos oferece na constante tensão dialética dos opostos.
O
Indivíduo coram Deo
Ousarmos
ser nós próprios, ousar-se ser um indivíduo, não um qualquer, mas este que
somos, só face a Deus, isolado na imensidade do seu esforço e da sua
responsabilidade: eis o heroísmo cristão; e confesse-se a sua provável
raridade; mas haverá heroísmo no iludirmo-nos pelo refúgio na pura humanidade,
ou em brincar a ver quem mais se extasia perante a história da humanidade? Todo
o conhecimento cristão, por estrita que seja de resto a sua forma, é inquietação
e deve sê-lo; mas essa mesma inquietação edifica. A inquietação é o verdadeiro
comportamento para com a vida, para com a nossa realidade pessoal e,
consequentemente, ela representa, para o cristão, a seriedade por excelência; a
elevação das ciências imparciais, muito longe de representar uma seriedade
superior ainda, não é, para ele, senão farsa e vaidade. Mas sério é, eu vo-lo
afirmo, aquilo que edifica (KIERKEGAARD, 1979, p. 189).
Se para Kierkegaard a multidão é a mentira, é na categoria
do Indivíduo que o homem encontra a
realização da verdade. Opondo-se ao formalismo que nega ou reduz o ato de
existir a uma padronização da ordem estabelecida ou a generalidades, o
indivíduo encontra-se acima do gênero humano em sua abstração. Para ele, este
indivíduo singular, sempre em devir, só é passível de ser concretizado na
existência e a partir da diferenciação entre o ser e a essência. (Cf. ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p.51).
Contudo, como a distinção que Kierkegaard faz entre ser e
essência rompe com o modelo tradicional, é importante compreender o que ele tem
em mente com tal diferenciação. Segundo o dinamarquês, “o sujeito existente é
eterno, mas enquanto existente é temporal (KIERKEGAARD apud ALMEIDA E VALLS, Op. Cit.,
p. 51). Com isso, ele entende que enquanto possibilidade, o existente é eterno,
visto que é criado do nada e, em Deus, tem sua essência, mas, por outro lado,
sendo a existência um dom – e considerando-se que Deus se retira no ato da
criação –, automaticamente, esvai-se também qualquer possibilidade de
permanência dessa essência que poderia vir a determinar uma
pseudo-independência do ser humano.
Dessa maneira, a partir dessa concepção do caráter dadivoso
da existência, já não há mais espaço para se trabalhar com causas e efeitos.
Tendo sido o dom oferecido, a responsabilidade do que se faz de si mesmo e
consigo mesmo diz respeito, exclusivamente, ao indivíduo singular. “Nesse caso,
a essência é também uma construção da própria condição humana, ou, em termos
kierkegaardianos, a essência também deve ser reduplicada em cada indivíduo, em
cada geração” (ALMEIDA E VALLS, Op. Cit.,
p. 52). Afinal, se e existência já tivesse – de antemão – uma essência pronta,
não seria uma existência de fato. Nessa perspectiva, o indivíduo singular
tem
como tarefa o tornar-se em palavras vivas,
à maneira de Cristo, que é sempre [..] o Modelo, a referência a ser seguida,
porque Ele se constitui na verdadeira vida. Isso explica porque, nessa ótica, a
verdade não se resume à identidade ou à conformidade entre o ser e o
pensamento. A verdade “é” uma vida e é somente na sua apropriação, na aceitação
livre e integral da verdade de Cristo enquanto Verdade-Caminho-Vida, é que a
verdade adquire o caráter de sinônimo de subjetividade (ibidem, p. 53).
Como se percebe, portanto, a verdade na filosofia
existencial de Kierkegaard não é um conceito, mas – antes – uma vida que é
sempre atual. “É a vida que se faz vida, como oferta a cada indivíduo singular
numa relação sempre presente do agora da eternidade no tempo (ibidem, p. 56). Com isso, a verdade
deixa de ser um fundamento lógico para tornar-se uma apropriação existencial
que se dá no interior dessa dialética do finito e do infinito, do temporal e do
eterno. Sob essa ótica, o próprio ato de tornar-se cristão assume outro
significado: tornar-se contemporâneo com Cristo (Cf. ibidem, p. 58). É,
justamente, nesse sentido que, para Kierkegaard, o indivíduo se identifica à
verdade. É quando o indivíduo, afastado da multidão, torna-se indivíduo coram Deo.
Ser
contemporâneo é ser o único perante Deus. É traduzir-se em autenticidade, e
esta, em verdade. A verdade enquanto é
Cristo não pertence ao campo da doutrina, mas à dimensão da realização enquanto
apropriação da própria verdade. O que é a verdade? “Cristo é a verdade. Nesse
sentido, a verdade não consiste em uma suma de proposições, nem em uma
determinação conceitual e coisas similares, senão que a verdade é a Vida.” E,
contrariamente às máximas filosóficas, ele explica que o ser da verdade não é
uma duplicação direta do ser relativo ao pensamento, que somente dá um ser
pensado. “O ser da verdade é um ser, é a duplicação em ti, em mim, de maneira
que a tua vida, a minha e a tua, de uma forma aproximativa – em contato com ele
– seja o ser da verdade, como a verdade era Cristo: uma vida, pois Ele era a
verdade (ibidem, p. 58).
No mesmo sentido, o próprio Kierkegaard, em As Obras
do Amor, afirma o seguinte:
O
mesquinho jamais teve a coragem de realizar esse ato audacioso, de humildade e
de orgulho agradável a Deus: de ser si mesmo diante de Deus. – pois a ênfase está neste “diante de Deus”, já que
esta atitude é a fonte e a origem de todo o caráter particular da pessoa. Quem
teve esta audácia tem um caráter individual; ele veio a saber o que Deus já lhe
tinha dado, e ele crê exatamente bem do mesmo jeito no caráter particular de
cada um. Ter caráter individual é crer no caráter individual de cada um dos
outros, pois o caráter individual não é coisa minha; é um dom pelo qual Deus me
dá o ser, e ele o dá aliás a todos, e a todos ele dá o ser. Tal é a insondável
fonte de bondade que jorra da bondade de Deus, que Ele, o Todo-Poderoso, dá de tal maneira que o que recebe, recebe seu
caráter particular, que Ele cria do nada, cria dando uma característica
particular, de modo que a criatura, mesmo sendo tirada do nada, não paira
diante d’Ele como nada, mas adquire seu caráter próprio (KIERKEGAARD, 2007, p.
306) .
Entretanto, como já salientado no item anterior, é
importante que esse discurso de Kierkegaard a respeito da subjetividade seja
compreendido à luz de sua polêmica contra Hegel e seu abstrato sujeito
absoluto. Segundo o dinamarquês:
Todo
homem que não se conhece como espírito ou cujo eu interior não tomou em Deus
consciência de si próprio, toda a existência humana, que não mergulha desse
modo limpidamente em Deus, mas se funda nebulosamente sobre qualquer abstração
ou a ela se reduz (Estado, Nação, etc.), ou que, cega para consigo própria, não
vê nas suas faculdades mais do que energias de origem pouco explícita, e aceita
o seu eu como um enigma rebelde a qualquer introspecção – toda a existência
deste gênero, realize o que realizar de extraordinário, explique o que
explicar, até o próprio universo, por muito interessante que, como esteta, goze
a vida: mesmo assim, ela será desespero (KIERKEGAARD, 1979, p. 218).
É também oportuno ressaltar que Kierkegaard jamais afirmou
que existem tantas verdades quanto existem indivíduos. Subjetividade da forma
como ele entende nada tem a ver com alguma manifestação de atividade pessoal ou
qualquer outra expressão de capricho ou egocentrismo humanos. Definitivamente,
ele não está se referindo a alguma espécie de personalidade artística, nem
cultuando a particularidade a todo custo. “Subjetividade em Kierkegaard,
portanto, não significa acreditar no que se queira, fazer apenas o que nos
agrada, negar as compulsões da verdade universal (GOUVÊA, Op. Cit., p. 153).
Portanto,o que se deve ter claro em mente quando Kierkegaard
afirma a primazia do indivíduo sobre o geral e apresenta a subjetividade como
verdade é que em nenhum momento ele está saindo em defesa de alguma espécie de
subjetivismo epistemológico, ou enamorando-se da ideia presente nas ciências
naturais que afirma a impossibilidade de uma certeza objetiva. Para o
dinamarquês, de outro modo, visto que a noção de confiança é básica para o
conceito de fé, esta acaba por configurar-se como uma incerteza, mas uma
incerteza objetiva.
Quando
subjetividade é verdade, a definição de verdade deve conter também em si mesma
uma expressão da antítese à objetividade, um lembrete daquela bifurcação na
estrada, e esta expressão indicará ao mesmo tempo a tenacidade da introspecção.
Aqui está uma tal definição de verdade: Uma incerteza objetiva, agarrada
através da apropriação com a mais apaixonada introspecção, é a verdade, a mais
elevada verdade que há para uma pessoa existente (KIERKEGAARD apud ibidem,
p. 155).
A
ética kierkegaardiana
Se Kierkegaard é um autor
reconhecidamente complexo e que suscita várias possibilidades de confusão por
parte de leitores desavisados, sua concepção de ética, certamente, pode ser
considerada um de seus temas mais nebulosos. Eventualmente, quando se ouve alguma
coisa sobre a ética kierkegaardiana, geralmente o conteúdo da afirmação está
associado à compreensão do segundo estádio da existência, situado entre o
estádio estético e o religioso. Entretanto, um olhar mais atento sobre o
conjunto da obra nos revela que, em Kierkegaard, o conceito de ética quase
nunca apresenta significados unívocos.
O primeiro fato a que devemos atentar, portanto, é que, no
pensamento de Kierkegaard, há uma distinção entre uma ética-primeira e uma
ética-segunda. Segundo o dinamarquês, “todo o conhecimento e toda a especulação
dos Antigos baseavam-se na pressuposição de que o pensamento tinha realidade”,
assim também como “toda Ética antiga baseava-se na pressuposição de que a
virtude era realizável” (Cf.
KIERKEGAARD, 2010, p. 21) .
Dessa forma, o pecado – que, para Kierkegaard, constitui um aspecto fundamental
da realidade – acabava sendo para a consciência ética o que o erro era para o
conhecimento: apenas uma exceção isolada incapaz de provar qualquer coisa.
Nesse sentido, a ciência responsável por fazer a
transposição dessa ética-primeira, de caráter idealista – que tem em Sócrates o
seu principal representante – para a ética-segunda – expressa na figura de
Abraão como protótipo do cavaleiro da fé – seria a Dogmática. Partindo da realidade efetiva, ela não apenas reconhece
a presença do pecado, como explica-o ao pressupor o pecado hereditário (Cf. ibidem,
p. 21). Assim, a ética-segunda “pressupõe a Dogmática, e com essa o pecado
hereditário, de que se serve em seguida para explicar o pecado do indivíduo,
enquanto ao mesmo tempo institui como tarefa a idealidade, porém não no
movimento de cima para baixo, mas de baixo para cima” (ibidem, p. 23).
Na perspectiva de Kierkegaard, a filosofia e a teologia
acabaram caindo em uma grande confusão quando – desviando-se do caminho –
pretenderam ultrapassar seus limites através do calculismo e da indiferença da
mediação como condição para se chegar a Deus. O resultado, como se viu, foi a
redução do próprio Deus a um elemento final do mesmo processo lógico. Com isso:
“Em lugar de esclarecer e orientar os homens (os homens individuais) ao ético,
ao religioso, ao existencial, a filosofia deu o aval para que os homens se
colocassem, para dizer de maneira prosaica, em especulações vazias, sem perigo,
nas nuvens do puro simulacro” (KIERKEGAARD apud
ALMEIDA E VALLS, Op. Cit. p. 45).
Como consequência dessa vereda tortuosa, ocorreu que tanto a filosofia, quanto
a ética acabaram por se perverter “ao trocar o amor e a seriedade ética por um
saber que transformou Deus em paliativo, em analgésico para as dores de
consciência” (ALMEIDA E VALLS, Op. Cit.,
p. 45).
Descobrimos
assim, com a ajuda de Kierkegaard, que o tipo de ética que encontramos na
tradição platônico-aristotélica não é apenas racionalista (pois apenas o que é
humanamente imaginável e justificável pode ser a base e o conteúdo da ética),
mas, do ponto de vista religioso, é idólatra, pois até Deus está sujeito a algo
superior. Por outro lado, não se pode dizer que seja real, pois não considera a
existência. É uma ética domada, muito cultural, muito aceitável, que não tem
nada de importante a dizer além de obrigar a um certo padrão comportamental que
é adequado e proveitoso para os dirigentes de uma sociedade. Isto não pode ser
jamais o retrato de uma ética existencial, nem muito menos de uma ética cristã,
pois o padrão da ética cristã deve ser o ensinamento de Jesus que está longe de
ser um ensinamento domado, socialmente aceitável, culturalmente conservador,
controlador de pessoas, mas sim um ensinamento devastadoramente
contra-cultural, libertador, revolucionário e que “vira a mesa” (GOUVÊA, 2009, p.244).
Dessa
maneira, visto que a ética, enquanto reflexão natural acerca das relações, não
deixa de ser validada, o que se observa no ponto de vista kierkegaardiano é que
há uma transformação do velho sentido estático de dever de Deus, de mandamento divino. Agora, a ética – encontrando a sua
verdadeira base – passa a ser compreendida dentro de sua religiosidade e assume
a dimensão de uma supra-ética (Cf. ibidem, p. 245). Assim, “sempre que uma
pessoa é chamada a agir como um indivíduo, ele está fora da esfera ética e,
portanto, não pode encontrar justificação ética para a sua ação” (SCHRADER apud
ibidem, p. 249). Isso significa que
um indivíduo – enquanto indivíduo –, faça o que fizer, certo ou errado, estará
sempre fora da esfera ética, visto não haver nenhuma justificação ética para
uma ação realizada por um indivíduo enquanto indivíduo, apenas enquanto
participante de uma sociedade. Na realidade da existência coram Deo – isto é, do indivíduo isolado perante Deus –, cada ser
humano encontra-se, inevitavelmente, como indivíduo singular e, desse modo,
deve prestar conta de suas ações, sabendo ainda que, diante de Deus, nós somos
sempre devedores. Portanto, enquanto indivíduo, todo ser humano encontra-se
fora da esfera ética e, conscientemente ou não, inserido na esfera religiosa.
“É por isso que Kierkegaard afirma que o estágio ético era meramente um estágio
intermediário, uma passagem na qual ninguém pode realmente permanecer” (GOUVÊA,
Op. Cit., p. 249).
No entanto, conforme bem nos lembra Gouvêa, “o pensamento de
Kierkegaard não era em nenhum sentido transmoral, se com isso queremos dizer
algum tipo de antinomianismo. Ele não era advogado do niilismo moral” (ibidem, p. 250). O que Kierkegaard nos
oferece, na realidade, não é a supressão da ética, mas – de maneira inversa –
uma base genuína e original para o pensamento ético. Em As Obras do Amor (1847),
um de seus mais belos livros, o dinamarquês dedica-se, justamente, a nos
mostrar como outro tipo de ética, “melhor, mais séria e mais honesta” (Cf. ibidem,
p. 250), é possível.
Segundo o filósofo de Copenhagen:
Quando
[...] se deve amar o próximo, a tarefa existe (a
tarefa ética), a qual, por sua vez, é a fonte original de todas as tarefas.
Justamente porque o crístico é o verdadeiro ético ele sabe abreviar os
raciocínios e cortar fora as introduções panorâmicas, afastar todas as delongas
preliminares e libertar de toda perda de tempo; o cristão está imediatamente na
tarefa, porque ele a tem consigo. No mundo há uma grande discussão, aliás,
sobre o que deveria ser chamado o bem supremo. Mas qualquer que seja o que
chamamos assim, por mais diferente que seja, é incrível quanta complexidade se
prende ao esforço de alcançá-lo. O Cristianismo, ao contrário, ensina ao homem
imediatamente o caminho mais curto para encontrar o que há de mais elevado:
fecha tua porta e ora a Deus – pois Deus é que é o bem supremo. E se um homem tiver
que sair pelo mundo, sim, aí talvez ele possa ir longe e andar em vão, dar uma
volta ao mundo – e em vão, para procurar a pessoa amada ou o amigo. Mas o
Cristianismo jamais incorre na falta de mandar uma pessoa andar, nem que seja
um único passo, inutilmente; pois quando abrires aquela porta, que tu fechaste
para orar a Deus, e saíres, então a primeira pessoa que encontrares é o
próximo, que tu deves amar. Que coisa estranha! (KIERKEGAARD,
2007, p. 70-71).
Assim, o que fica bastante evidente no pensamento
kierkegaardiano é que “sem uma intervenção e um fundo religioso, a realização
do ideal ético é de fato impossível” (GOUVÊA, 2006, p. 262). Nessa perspectiva,
a função da ética passa a ser não somente desenvolver uma receptividade para a
religião, como, também, um sentimento de necessidade por ela (Cf. SWENSON apud GOUVÊA, Op. Cit., p.
262).
O
conceito de Repetição
Se Gouvêa estiver correto em sua interpretação, a repetição
é um dos conceitos mais importantes trabalhados por Kierkegaard, quiçá o mais
importante. O comentador do dinamarquês chega a profetizar que o conceito
kierkegaardiano de repetição “ainda irá se evidenciar como um dos conceitos
mais importantes na história da filosofia, um conceito cujo alcance e cujas
implicações ainda estão longe de serem descobertas, e que por isso mesmo deverá
ser um dos conceitos filosóficos mais explorados do século XXI” (GOUVÊA, Op. Cit.,
p. 213). Comecemos, então, a fazê-lo.
Etimologicamente, a palavra re-petição significa pedir novamente ou, em outras palavras, re-peticionar. Isso pode se dá de, pelo
menos, duas formas distintas: pode-se pedir algo que já se teve e que se quer
mais ou, de outro modo, pode-se pedir algo já pedido anteriormente, mas que,
por algum motivo qualquer, não se obteve. O conceito de repetição abarca as
duas possibilidades: aquela em que se pede algo que se tem ou que se teve e de
que se quer mais, e aquela em que o pedido já se quis, embora não tenha sido
obtido. “A repetição kierkegaardiana é, portanto, reapropriação (Gjentagelse), isto é, pegar ou tomar
novamente aquilo que já se teve ou ainda se tem, mas de que se quer mais, ou
aquilo que já se tentou apropriar anteriormente sem completo êxito” (ibidem, p. 214).
A
importância da repetição encontra-se no escândalo da kinesis, do movimento, da metamorfose, e todos os fenômenos
relacionados à transitoriedade da vida temporal. A filosofia grega nunca soube
o que fazer direito com o movimento, a transformação e a temporalidade, apesar
dos honrosos esforços de Aristóteles, porque está toda ela calcada na concepção
de reminiscência do eterno. Em outras palavras, diante do fluxo da existência,
a filosofia grega se re-colhe e en-colhe em direção do ponto inicial, da
origem, isto é, do nada, e sai pela porta dos fundos. A repetição apresenta uma
marcha adiante, para o eterno no “fim” da temporalidade, não no seu “início” (ibidem, p. 216).
Assim, o que se percebe, como o próprio Kierkegaard chega a
afirmar, é que seu conceito de repetição e a reminiscência platônica, na
realidade, correspondem ao mesmo movimento, só que em direções opostas. A
reminiscência, ao lembrar o que já passou, seria uma espécie de repetição às
avessas. A verdadeira repetição, em contrapartida, configura-se como um
movimento para frente, constituindo-se em uma espécie de lembrança do futuro.
Exatamente por isso que, de modo diferente da reminiscência – que tende a nos
tornar infelizes, nostálgicos e pessimistas – ela “faz-nos felizes, motivados e
otimistas, pois apresenta-nos a possibilidade do movimento existencial, do
crescimento espiritual, em vez da opção da busca pela aniquilação da
personalidade e da individualidade no desapego à temporalidade e o retorno ao
eterno” (ibidem, p. 217). Ou, nas
palavras do próprio dinamarquês: “Grande é alcançar o eterno, mas maior ainda é
guardar o temporal depois de a ele ter renunciado” (KIERKEGAARD, 1979, p. 119) .
Ao contrário do que se pode imaginar, no entanto,
Kierkegaard não está, simplesmente, negando o pensamento platônico. Está, na
realidade, renovando-o e transformando-o. Não se pode esquecer que foi a partir
da reminiscência platônica que, mais tarde – na idade Média – Agostinho – que
muito influenciou o pensamento de Kierkegaard – construiu sua epistemologia da
iluminação. Entretanto, enquanto no pensamento agostiniano – que,
diferentemente da reminiscência platônica, não pressupunha a pré-existência da
alma humana – a reminiscência se dava como uma iluminação oferecida por Deus ao
ser humano, Kierkegaard vai ainda mais longe e sugere que tanto Platão, quanto
Agostinho, embora tenham percebido corretamente um movimento
psico-epistemológico, erraram na identificação do seu direcionamento, supondo-o
para trás. Para Kierkegaard, esse movimento não só toma a direção oposta,
dirigindo-se para frente, como é “um movimento empiricamente verificável e
inerente à criação, ao mundo natural, independente, portanto, tanto de uma
pré-existência da alma quanto de uma iluminação transcendental adicional ou
miraculosa” (GOUVÊA, Op. Cit., p.
217).
No entendimento de Kierkegaard, a repetição, configurando-se
como uma espécie de terceira via que se oferece como opção aos conceitos de
esperança e reminiscência – provenientes, respectivamente, da tradição
judaico-cristã e da tradição grega – é, na realidade, a verdadeira expressão do
conceito – tão combatido por ele – que, no idealismo alemão, ficou conhecido
como mediação. Nesse sentido, se, para Kierkegaard, a filosofia grega da
reminiscência possuía a honestidade como virtude, o mesmo não se dava com a
filosofia moderna.
Hegel,
lembra-nos Kierkegaard, propunha-se a trazer dinamismo à lógica e à filosofia,
por meio da dialética triádica que sugere e exemplifica muitas vezes.
Entretanto, sua filosofia termina em um monismo absoluto, tão estático quanto o
Ser de Parmênides. O movimento, em Hegel, é comparável ao das crianças nos
carrinhos de um parque de diversão: não importa quão drasticamente elas movam a
direção do carrinho, ele continua girando preso na bitola segura e sem a
incerteza da liberdade a qual estamos fadados, como disse Sartre, ao menos
todos os que acordam do sonho da eternidade platônica e abraçam a condição
humana da temporalidade. Kierkegaard sugere, no Epílogo de Temor e Tremor,
que Hegel é como Crátilo, o discípulo de Heráclito, que, na intenção de levar
adiante o projeto filosófico de dinamismo e transmutação de seu mestre, acabou
por apresentar, sem perceber, argumentos em favor das teses de Parmênides, o
grande opositor de Heráclito. A kinesis
hegeliana seria, portanto, um movimento aparente, abstrato, teórico. Assim
também é o conhecimento no platonismo e no agostinianismo. A repetição, ao
contrário, implica em um genuíno movimento do espírito humano, um movimento
concreto e fenomenológico, com consequências práticas para a vida e o mundo (ibidem, p. 219).
É por isso que, em A
Repetição, o heterônimo de Kierkegaard
Constantin Canstantius afirma que “a repetição é o lema em qualquer
intuição ética” (KIERKEGAARD, 2009, p. 51) .
Mais até do que isso, a repetição é identificada à própria realidade, como uma
atitude de seriedade diante da existência. Nas belas palavras do dinamarquês:
É
preciso juventude para ter esperança, juventude para recordar, mas é preciso
coragem para se querer a repetição. Porque aquele que apenas quer ter esperança
é cobarde; aquele que apenas quer recordar é voluptuoso; mas aquele que quer a
repetição é um homem, e quanto mais energicamente for capaz de a tornar clara
para si próprio, tanto maior será a sua profundidade como criatura humana.
Aquele, porém, que não compreende que a vida é uma repetição e que essa é a
beleza da vida, esse condenou-se a si mesmo e não merece melhor fim do que o
que lhe acontecerá, ou seja, sucumbir; porque a esperança é um fruto sedutor
que não satisfaz; mas a repetição é o pão de cada dia que abençoadamente
satisfaz. Se um indivíduo circum-navegou a existência, tornar-se-á evidente se
tem coragem para entender que a vida é uma repetição e desejo suficiente para
com ela se regozijar. Aquele que não circum-navegou a vida antes de começar a
viver nunca chegará a viver; aquele que a circum-navegou, e porém ficou
satisfeito, tinha uma fraca constituição; aquele que escolheu a repetição, esse
vive. Não corre como um rapaz atrás de borboletas, nem se põe em bicos de pés
para vislumbrar as maravilhas do mundo, pois que as conhece; nem se senta como
uma velha mulher fiando na roca da recordação; antes avança calmamente pelo seu
caminho, contente da repetição. Sim, se não houvesse a repetição, o que seria
vida? Quem poderia desejar ser uma ardósia na qual o tempo inscrevesse a cada
instante um novo texto, ou ser um memorial de coisas passadas? Quem poderia
desejar deixar-se mover por tudo o que é efémero, pelo novo, que constantemente
entretém a alma, amolecendo-a? Se o próprio Deus não tivesse querido a
repetição, o mundo nunca teria surgido.
Deus teria seguido os planos superficiais da esperança, ou teria voltado
a retirar todas as coisas e tê-las-ia preservado na recordação. Não o fez, por
isso continua a haver mundo, e continua a haver pelo fato de ser repetição (ibidem, p. 32-33).
A
liberdade
Como se deve ter percebido até aqui, há uma ideia central
que permeia todo o pensamento de Kierkegaard: a ideia de liberdade. Não raras
vezes, inclusive, o dinamarquês apresenta tal conceito como sinônimo de
verdade. Entretanto, como já visto anteriormente, o indivíduo, para
Kierkegaard, também é, constantemente, identificado à verdade. Dessa maneira, o
que fica evidente para nós no pensamento kierkegaardiano é que tanto verdade,
quanto liberdade e individualidade apresentam-se indissociavelmente
relacionadas, chegando mesmo, muitas vezes, a significarem a mesma coisa.
Em seu Desespero
Humano, Kierkegaard declara que: “O eu é formado de finito e de infinito.
Mas a sua síntese é uma relação que, apesar de derivada, se relaciona consigo
própria, o que é a liberdade. O eu é liberdade. Mas a liberdade é a dialética
das duas categorias do possível e do necessário” (KIERKEGAARD, 1979, p. 207) .
Para ele, se a mudança do devir é a realidade, essa passagem só se torna
possível pela liberdade, jamais por pura necessidade. Isso porque, em seu
entendimento, nada do que está vindo a ser o está fazendo devido a uma razão,
mas devido a uma causa. E, nesse sentido, toda e qualquer causa remonta a uma
causa atuando livremente. Segundo ele, o engano advindo da ideia de causas
intermediárias ocorre porque o devir parece necessário. No entanto, a verdade
delas consiste em que, devindas elas mesmas, remetem definitivamente a uma
causa que atua livremente. Com isso, mesmo a consequência de uma lei natural
não poderia explicar a necessidade de nenhum devir, pelo menos não quando se
reflete de maneira definitiva sobre o devir. Assim, da mesma forma ocorre com
as manifestações de liberdade quando, não nos deixando enganar por elas,
refletimos sobre o seu devir (Cf.
KIERKEGAARD, 2011, p. 104).
Na perspectiva kierkegaardiana:
Se
o passado se tivesse tornado necessário, não se deveria poder concluir o oposto
no que concerne ao futuro, porém, ao contrário, daí se seguiria que o futuro
também era necessário. Caso a necessidade pudesse penetrar num único ponto, não
se poderia mais falar de passado e de futuro. Querer predizer o futuro (profetizar)
e querer compreender a necessidade do passado é completamente a mesma coisa, e
é apenas uma questão de moda se a uma geração uma parece mais plausível do que
a outra. O passado, afinal de contas, deveio; o devir é a mudança da realidade
pela liberdade. Ora, se o passado se tivesse tornado necessário, não mais
pertenceria à liberdade, isto é, àquilo pelo qual ele veio a ser. A liberdade
estaria então numa posição ruim, faria ao mesmo tempo rir e chorar, pois
levaria a culpa daquilo que não seria de sua competência, produziria aquilo que
a necessidade logo haveria de engolir, e a própria liberdade tornar-se-ia uma
ilusão, e o devir não menos; a liberdade tornar-se-ia bruxaria, e o devir
alarme falso (KIERKEGAARD, Op. Cit.,
p. 107-108).
Por isso que, para o dinamarquês, a fé não é um
conhecimento, mas – de outro modo – um ato da liberdade, uma expressão da
vontade. Ao crer no devir, a fé acaba por suprimir em si a incerteza que
corresponde ao nada do não-ser. Ela crê
“neste ‘assim’ do que deveio e já suprimiu, portanto, o ‘como’ possível do que
deveio, e embora sem negar a possibilidade de um outro ‘assim’, o ‘assim’ do
que deveio é todavia para a fé o que há de mais certo” (ibidem, p. 116).
É nesse contexto, portanto, que indivíduo, verdade e liberdade
são entendidos de maneira muito próxima. Ao considerar a verdade não como uma
abstração teórica ou como um conceito frio, mas como um caminho que é
identificado com a própria vida, Kierkegaard percebe que “a verdade exige um
constante atualizar da Verdade na ação concreta e na realização do indivíduo
singular” (ALMEIDA E VALLS, Op. Cit.,
p. 55). Essa atualização, por sua vez, só é possível através da liberdade.
Desse modo, concebida fora de um sistema, a verdade passa a ser concebida como
uma coerência prática que se realiza na ação. Ou, em suas próprias palavras:
“Eu só conheço a verdade se ela se faz vida em mim” (KIERKEGAARD apud
ibidem, p. 55).
Em termos éticos, na concepção da ética kierkegaardiana do
amor vista anteriormente, o dinamarquês entende que é o dever de amar o próximo
que oferece o fundamento necessário para que a verdadeira liberdade se
estabeleça. Para ele,
o
amor que se submeteu à transformação da eternidade em se tornando dever, e ama
porque deve amar, é independente, tem
a lei de sua existência na própria relação do amor para com o eterno. Este amor
jamais pode tornar-se dependente no sentido não verdadeiro, pois a única coisa
de que ele depende é o dever, e o dever é a única coisa que liberta. O amor
imediato torna um ser humano livre, e no instante seguinte dependente. O mesmo
ocorre com o tornar-se homem de um homem; ao tornar-se, ao tornar-se um “si mesmo”,
ele se torna livre, mas no instante seguinte está dependente desse si mesmo. O
dever, ao contrário, torna um homem dependente e no mesmo instante eternamente
independente. “Só a lei pode dar a liberdade”. Ai, tão frequentemente se acha
que há liberdade, e que a lei seria aquilo que amarra a liberdade. Contudo, é
justamente o contrário; sem a lei a liberdade pura e simplesmente não existe, e
é a lei que dá a liberdade. Também se acredita que é a lei quem faz diferenças,
porque não há diferença nenhuma lá onde não existe lei. Contudo, é o contrário;
se é a lei que faz diferenças, então é justamente a lei que torna todos iguais
diante da lei. Dessa maneira, este “deves” liberta o amor para uma feliz
independência; um tal amor não depende , para se manter ou perecer, da
contingência do seu objeto, ele depende da lei da eternidade – mas então
realmente não perece jamais; um tal amor não depende deste ou daquele, ele só
depende da única coisa que liberta; portanto ele é eternamente independente.
Com esta independência nenhuma outra pode ser comparada (KIERKEGAARD, 2007, p.
56-57).
Conclusão
Diante do exposto até aqui, fica bastante claro que o
pensamento de Kierkegaard traz em si um aspecto extremamente revolucionário.
Muito mais do que criticar a filosofia moderna como um todo – e, especialmente,
Hegel, em particular – o que o dinamarquês nos apresenta é um outro paradigma
de filosofia. Ironicamente – aliás a ironia é a grande marca de toda sua
filosofia –, ao assumir a dogmática e as questões relativas à fé como a base de
seu pensamento, Kierkegaard não só rompe com o dogma da autonomia da razão que
permeou toda a tradição ocidental, como liberta a si mesmo e sua filosofia,
possibilitando um diálogo efetivo entre esta e a realidade. Se, como ele
afirma, é a lei a responsável por conferir liberdade ao indivíduo,
analogamente, a assunção honesta de seus pressupostos religiosos acaba sendo a
grande responsável por permitir-lhe desenvolver uma ética extremamente livre e
independente. Isso porque, conforme bem percebe Gouvêa,
como
a ética cristã é baseada no nomos do Criador, a ética bíblica não é heteronomia
pois não é heteroios em relação a
alguém que vive coram Deo. Ética
bíblica é a exposição e elucidação dos nomiomata
revelacionais, isto é, o nomos ético-cósmico em contraste com a anomia pecado, rebelião e idolatria.
Estes nomiomata da ética bíblica são
a base para o que Kierkegaard afirma sobre o homem que conheceu o Deus vivo:
que “ele determina sua relação com o universal por sua relação com o absoluto,
não sua relação com o absoluto por sua relação com o universal” (GOUVÊA, Op. Cit, p. 234).
Assim, ao contrário do pensa Hannah Arendt quando afirma ter
permanecido o dinamarquês preso à tradição em sua crítica à tradição (Cf. ARENDT, 2009, p. 52) ,
Kierkegaard não só nos presenteia com uma concepção superior de ética, pautada
no dever de amar o próximo, como apresenta um novo modo de fazer filosofia. Não
é à toa que, para Paul Ricoeur – ao introduzir a descontinuidade, a angústia, o
nada, o paradoxo, o salto, o drama existencial que se apresenta no vazio, na
superficialidade, na inautenticidade da existência –, Kierkegaard inaugura a
pós-filosofia (Cf. ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 61).
Portanto, se também Adorno estiver correto em sua crítica ético-política,
ao afirmar que a estratégia do Estado consiste em eliminar a personalidade
individual, criando o anonimato e difundindo a mentira de que o mais importante
é a massa, a multidão, a maioria (Cf.
ibidem, p. 65), ouso dizer que o
pensamento kierkegaardiano deve não somente deixar de ser alvo de preconceitos
infundados por parte daqueles que – incapazes de compreender as implicações
mais profundas de sua filosofia – o inferiorizam por seu posicionamento
declaradamente religioso, mas, acima de tudo, receber uma atenção especial dos
pesquisadores como forma de oferecer alternativas de pensamento para um mundo
onde o velho racionalismo moderno já não tem mais muito o que dizer.
Referências
Bibliográficas
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Ed., 2007. (Coleção passo-a-passo).
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tradição e a época moderna. In: Entre
o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.
3 - DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de
Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.
4 - GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Paixão pelo paradoxo. São Paulo, SP:
Fonte Editorial, 2006.
5 - ____________________. A Palavra e o Silêncio. São Paulo, SP:
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6 - KIERKEGAARD, Søren. A Repetição. [Tradução: José Miranda
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Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
8 -
____________________. Migalhas
Filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. [Tradução:
Ernani Reichmann e Álvaro Valls] – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
9 -_____________________.
O conceito de angústia. [Tradução:
Álvaro Luiz Montenegro Valls] – Petrópolis, RJ: Vozes; São Paulo, SP: Editora
Universitária São Francisco, 2010. – (Coleção pensamento humano).
10 - ____________________.
O desespero humano. In: Os pensadores. [Tradução: Adolfo Casais
Monteiro] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
11 -
____________________. Temor e Tremor.
In: Os pensadores. [Tradução: Maria
José Marinho] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
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KIERKEGAARD, Søren. Temor e Tremor. In: Os pensadores. [Tradução: Maria José Marinho] – São Paulo: Abril
Cultural, 1979.