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terça-feira, 19 de novembro de 2013

Deleuze e a lógica dos sentidos


Em seu livro Francis Bacon: Lógica da sensação, Deleuze não só analisa de que forma a pintura baconiana questiona o tradicional modelo de figuração, mas, também – de maneira indireta –, acaba por colocar em xeque o próprio modo esquemático de ser da lógica representativa. Para ele, ao romper com os limites da representação, da narração e da figuração clássica, o pintor reconstrói a forma, a figura e a cor, subvertendo a lógica tradicional e proporcionando o mergulho em outro tipo de lógica: a lógica dos sentidos.
Deleuze observa que em Bacon há sempre uma grande preocupação em evitar a típica armadilha da pintura de representar um objeto ou uma figura humana através de semelhança da cópia ao modelo. Para o filósofo francês, há em Bacon a invenção de um campo conceitual/estético que vai além dos limites da simples representação, e, consequentemente, o uso de uma lógica sub-representativa de caráter muito singular. Percebe-se aí uma crítica bastante radical em relação aos mecanismos reprodutivos de produção do real, que é muito bem expressa pelo modo com que o pintor distorce a figura e borra os contornos que a delimitam, fazendo surgir corpos e objetos atravessados por fluxos intensivos e livres de coordenadas fixas e predeterminadas.
Dessa forma, o que se pode perceber é que o pintor opta não por representar um modelo ou um objeto exterior por meio de uma ilustração, mas – de outro modo – por criar imagens potentes e sensíveis que sejam capazes de atingir o sistema nervoso do observador, atuando mais em seus sentidos do que em sua inteligência. Por isso, quando Bacon recorre às variações do corpo humano, o que ele está fazendo é construir um bloco de sensações, onde o corpo, em suas torções e distorções, passa a ser um suporte de inúmeras possibilidades. Em outras palavras, pode-se afirmar que o que Bacon deseja é desestratificar as rígidas codificações do organismo, abrindo possibilidade para a existência de um corpo intensivamente aberto aos fluxos interconectivos.
Com isso, torna-se possível conceituar aquilo que Deleuze chamou de matéria não-estratificada: uma espécie de corpo afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes, onde fica explícita a ação de um campo ilimitado de fluxos, que, escapando das codificações dualistas, constituem-se como linhas de desterritorialização. É um corpo caracterizado como “poderosa vitalidade não-orgânica”, um corpo em devir, em intensidade, com poder tanto de afetar, como de ser afetado. Em termos nietzscheanos, um corpo como vontade de poder.

Assim, fica bastante claro que, para Deleuze, a arte baconiana adota a direção de um anti-platonismo em relação ao estatuto da imagem enquanto tal, constituindo-se, portanto, numa crítica aos estratos elementares da representação humana e expressando uma insatisfação em relação aos componentes constitutivos da figuração. Para ele, o que as figuras desfiguradas de Bacon proporcionam é a experiência da beleza entendida não como adequação entre a imagem pintada e seu modelo, ou a abstração formal de uma desfiguração absoluta, mas – de outro modo – a construção de uma imagem formalmente potente e dotada de valores táteis. É, portanto, um quadro menos para ser visto do que para ser tocado por todos os nossos órgãos corpóreos.

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