Em
seu livro Francis Bacon: Lógica da
sensação, Deleuze não só analisa de que forma a pintura baconiana questiona
o tradicional modelo de figuração, mas, também – de maneira indireta –, acaba
por colocar em xeque o próprio modo esquemático de ser da lógica
representativa. Para ele, ao romper com os limites da representação, da
narração e da figuração clássica, o pintor reconstrói a forma, a figura e a
cor, subvertendo a lógica tradicional e proporcionando o mergulho em outro tipo
de lógica: a lógica dos sentidos.
Deleuze
observa que em Bacon há sempre uma grande preocupação em evitar a típica
armadilha da pintura de representar um objeto ou uma figura humana através de
semelhança da cópia ao modelo. Para o filósofo francês, há em Bacon a invenção
de um campo conceitual/estético que vai além dos limites da simples
representação, e, consequentemente, o uso de uma lógica sub-representativa de
caráter muito singular. Percebe-se aí uma crítica bastante radical em relação
aos mecanismos reprodutivos de produção do real, que é muito bem expressa pelo
modo com que o pintor distorce a figura e borra os contornos que a delimitam,
fazendo surgir corpos e objetos atravessados por fluxos intensivos e livres de
coordenadas fixas e predeterminadas.
Dessa
forma, o que se pode perceber é que o pintor opta não por representar um modelo
ou um objeto exterior por meio de uma ilustração, mas – de outro modo – por
criar imagens potentes e sensíveis que sejam capazes de atingir o sistema
nervoso do observador, atuando mais em seus sentidos do que em sua
inteligência. Por isso, quando Bacon recorre às variações do corpo humano, o
que ele está fazendo é construir um bloco de sensações, onde o corpo, em suas
torções e distorções, passa a ser um suporte de inúmeras possibilidades. Em outras
palavras, pode-se afirmar que o que Bacon deseja é desestratificar as rígidas
codificações do organismo, abrindo possibilidade para a existência de um corpo
intensivamente aberto aos fluxos interconectivos.
Com
isso, torna-se possível conceituar aquilo que Deleuze chamou de matéria
não-estratificada: uma espécie de corpo afetivo, intensivo, anarquista, que só
comporta polos, zonas, limiares e gradientes, onde fica explícita a ação de um
campo ilimitado de fluxos, que, escapando das codificações dualistas,
constituem-se como linhas de desterritorialização. É um corpo caracterizado
como “poderosa vitalidade não-orgânica”, um corpo em devir, em intensidade, com
poder tanto de afetar, como de ser afetado. Em termos nietzscheanos, um corpo
como vontade de poder.
Assim,
fica bastante claro que, para Deleuze, a arte baconiana adota a direção de um
anti-platonismo em relação ao estatuto da imagem enquanto tal, constituindo-se,
portanto, numa crítica aos estratos elementares da representação humana e
expressando uma insatisfação em relação aos componentes constitutivos da
figuração. Para ele, o que as figuras desfiguradas de Bacon proporcionam é a
experiência da beleza entendida não como adequação entre a imagem pintada e seu
modelo, ou a abstração formal de uma desfiguração absoluta, mas – de outro modo
– a construção de uma imagem formalmente potente e dotada de valores táteis. É,
portanto, um quadro menos para ser visto do que para ser tocado por todos os
nossos órgãos corpóreos.
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