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sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O INDIVÍDUO CORAM DEO: ÉTICA, REPETIÇÃO E LIBERDADE NA FILOSOFIA EXISTENCIAL DE SØREN KIERKEGAARD




Indrodução

         Apesar de sua evidente riqueza e das inúmeras contribuições que pode trazer para o debate filosófico, é inegável o fato de que o pensamento do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard permanece ainda bastante pouco explorado, especialmente no âmbito da academia brasileira. Nesse sentido, essa pesquisa teve como objetivo não só contribuir com a difusão de suas ideias, como, principalmente, apresentá-las como uma alternativa de pensamento que rompe com o tradicional dogma da autonomia da razão[1] – pressuposto sobre o qual se desenvolveram, praticamente, todas as filosofias até então, dos gregos até os pós-modernos.
         Para isso, inicialmente, procurei compreender o contexto histórico-filosófico no qual o autor encontra-se inserido, buscando delimitar o que ele entende por filosofia existencial, que – de acordo com sua perspectiva – seria a única filosofia realmente legítima; em um segundo momento, debrucei-me sobre sua concepção de Indivíduo, que, como será mostrado, constitui o conceito-chave para a compreensão de todo o seu pensamento; em seguida, trabalhei os conceitos de ética, repetição e liberdade, procurando compreender não só como eles se relacionam entre si, mas, também, o que têm a nos oferecer em termos de contribuição para a nossa própria existência; e, por fim, à título de conclusão, tencionei analisar até que ponto Kierkegaard foi – ou não – fiel ao seu projeto.

O primado da existência

         Nas raríssimas vezes em que se ouve alguma menção ao pensamento de Kierkegaard, geralmente o discurso encontra-se ligado ou a sua clássica concepção dos três estádios da existência, ou a sua alegada paternidade do existencialismo. Entretanto, se se pretende compreender a obra do dinamarquês de maneira mais fiel à compreensão que ele mesmo possuía de si enquanto filósofo, o primeiro mito que precisa ser desfeito, é, justamente, esse que o apresenta como pai do existencialismo.
         Segundo Gouvêa, embora Kierkegaard tenha, certamente, influenciado o pensamento de alguns dos assim chamados filósofos existencialistas – assim como também o fizeram Dostoievsky, Nietzsche, Miguel de Unamuno, Kafka, Henri Bergson e Martin Buber, entre outros –, identificar sua filosofia com essa escola de pensamento constituir-se-ia não somente um erro banal, mas uma traição (Cf. GOUVÊA, 2009, p. 47) [2]. Entretanto, infelizmente, ao definir Kierkegaard como pai do existencialismo, “pode-se mais facilmente louvá-lo ou rejeitá-lo como irracionalista, subjetivista, ou relativista. É o modo mais fácil de livrar-se de um autor difícil” (GOUVÊA, 2006, p. 88) [3].
         De fato, até mesmo um olhar superficial sobre o corpus kierkegaardiano é capaz de revelar, com bastante clareza, a forte repulsa que Kierkegaard sempre nutriu em relação aos sistemas filosóficos. Nesse sentido, nada seria mais irracional do que ele próprio desenvolver um tipo de pensamento contra o qual combateu por praticamente toda a vida, seja ele de cunho existencialista ou de qualquer outra natureza. A existência, para Kierkegaard, definitivamente, não se ajusta a sistemas:

Um pensador ergue um grande edifício, um sistema, um sistema que abrange o todo da existência, história do mundo, etc., e se sua vida pessoal é considerada, para nosso espanto faz-se a descoberta assustadora e burlesca de que ele mesmo não vive pessoalmente neste grande e abobodado palácio, mas numa cabana ao lado, ou numa casa de cachorro, ou na melhor das hipóteses, na guarita do porteiro (KIERKEGAARD apud ibidem, p. 89).

Assim, o que se observa é que a intenção de Kierkegaard nunca foi a de criar sistemas de pensamento ou dar início a alguma escola filosófica. De outro modo, ele via a si mesmo como um corretivo existencial de seu tempo, que tinha como tarefa apresentar os ideais de maneira poética, de forma que pudesse incitar as pessoas sobre a ordem estabelecida (Cf. SONTAG apud ibidem, p. 89). Entretanto, para Gouvêa, Sartre cometeu um grave equívoco ao considerar “o compromisso de Kierkegaard com o cristianismo como se fosse algo supérfluo, apesar da crença deste de que isto era a pedra fundamental de seu pensamento” (GOUVÊA, Op. Cit. p. 90). Na verdade, o que aconteceu foi que não apenas Sartre, como também Heidegger, “ignoraram o único e singular propósito declarado de toda a obra de Kierkegaard: esclarecer conceitos cristãos e mostrar como alguém realmente pode tornar-se cristão” (ibidem, p. 91). Sem esse entendimento, até mesmo a compreensão a respeito dos três estádios da existência fica comprometida.

O movimento descrito pela obra é este: do poeta (da estética), da filosofia (da especulação), para a indicação da definição mais central do que seja cristianismo... Este movimento foi conseguido ou descrito uno tenore, de um fôlego, se posso usar esta expressão, de forma que a obra, vista integralmente, é religiosa do início ao fim – algo que todo mundo pode ver se estiver disposto a ver, e portanto pode ver...a mente perspicaz reconhecerá que correspondendo a esta obra há um originador que, como autor, “desejou apenas uma coisa”. A mente perspicaz reconhecerá ao mesmo tempo que esta coisa é o religioso, mas o religioso completa e profundamente transposto em reflexão, mas de tal forma que esteja completa e profundamente retirado da reflexão e devolvido à simplicidade – isto é, ele verá que a estrada percorrida tem o alvo de aproximar, de obter simplicidade”  (KIERKEGAARD apud ibidem, p. 91).

Todavia, se o exposto até aqui já é suficiente para rejeitarmos qualquer relação mais direta de Kierkegaard com o existencialismo, é também inegável a forte ênfase existencial que pode ser encontrada ao longo de toda sua obra. Para Kierkegaard, de fato, não havia nada mais repugnante do que uma filosofia que se reduzisse a meros jogos linguísticos, com suas proposições bem articuladas, mas vazias de conteúdo. Em seu entendimento, a filosofia deveria ser não uma reflexão de saber, mas uma reflexão de poder, que, de alguma forma, conduzisse o singular a comprometer-se consigo mesmo, tornando-o capaz de reduplicar o ato de pensar no ato de existir (Cf. ALMEIDA E VALLS, 2007, p. 30) [4].
Assim, o que fica bastante evidente é que a chave hermenêutica da filosofia existencial, da maneira como Kierkegaard a compreende, deve ser a decisão apaixonada do existente na transformação da própria existência, visto que toda decisão essencial se dá na subjetividade. Com isso, a filosofia sai do campo de uma mera abstração estéril e assume a perspectiva de um diálogo íntimo e profundo do eu consigo mesmo.
  Obviamente, essa ênfase kierkegaardiana na subjetividade rendeu-lhe várias críticas daqueles que viram nela a possibilidade de degeneração em subjetivismo ou relativismo. Entretanto, para compreender o pensamento do dinamarquês é necessário não somente atentar para o caráter eminentemente cristão de sua obra – como já colocado anteriormente –, como também situá-lo no contexto histórico-filosófico no qual está inserido.
Nesse sentido, é possível afirmar que os escritos kierkegaardianos estão, praticamente, o tempo todo em um intenso diálogo com o racionalismo moderno, expressos, principalmente, nos pensamentos de Kant e Hegel. Para o filósofo de Copenhagen, a filosofia hegeliana, especialmente, poderia até ter alguma utilidade na interpretação da vida, o verdadeiro problema, entretanto, seria vivê-la (Cf. GOUVÊA, Op. Cit., p. 44). Por isso, a identificação que a filosofia moderna opera entre o ser e o pensamento é, tacitamente, rejeitada por Kierkegaard.

Na filosofia das ideias puras, a qual não considera o indivíduo real, a passagem é de absoluta necessidade (como aliás no hegelianismo, no qual tudo se realiza com necessidade), isto é, a passagem do compreender ao agir não tropeça em nenhum embaraço. [...] E é igualmente esse, no fundo, todo o segredo da filosofia moderna, toda ela contida no cogito ergo sum, na identidade do pensamento e do ser; (ao passo que o cristão, esse, pensa: Que vos seja dado segundo a vossa fé ou: tal fé, tal homem, ou: crer é ser). A filosofia moderna não é, como se vê, senão paganismo (KIERKEGAARD, 1979, p. 250) [5].

Também sobre a crítica kierkegaardiana a essa identificação da filosofia moderna do ser e do pensar, Almeida e Valls comentam o seguinte:

A diferença entre pensamento e existência, embora colocada pela razão, não se reduz à razão, porque, na ótica existencial, a razão é uma dimensão da existência, não sinônimo dela. O pensamento puro não é capaz de criar a partir do próprio pensar a realidade, Deus e o Bem. A tarefa existencial não é objeto do pensamento puro, mas da existência, precisamente, do existente, pois “existir significa, antes de tudo, e, sobretudo, ser um indivíduo singular e é por isso que o pensamento puro deve prescindir da existência, porque o singular não se deixa pensar, somente o universal” (ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 53).

         Por isso, para Kierkegaard, essa supressão do indivíduo singular diante da abstração do universal que ganhou força na modernidade mostrou-se tão perniciosa e desumanizadora. Nesse sentido, a “correção dialética” operada por Hegel na lógica aristotélica – negando os princípios de não-contradição e do meio excluído – acabou por engolir todas as oposições, transformando a vida numa apatia absoluta e conduzindo-a à desmoralização (Cf. GOUVÊA, 2009, p. 54). Portanto, no entendimento do dinamarquês, “dissolver-se no universal, seja concebido como estado ou como pensamento universal, é rejeitar a responsabilidade pessoal e a existência autêntica (ibidem, p. 55).
         Para compreender essa forte antipatia de Kierkegaard à filosofia moderna – e ao hegelianismo em particular, com sua forte ênfase universalista – é preciso compreender que, para ele, a existência é, antes de tudo, contradição, ou, utilizando o termo mais comumente empregado por ele: paradoxo. Enquanto a filosofia estava identificada à mediação, o cristianismo, por sua vez, constituía o paradoxo. Ainda que a lógica dialética hegeliana tivesse acabado não só com todos os paradoxos, mas, também, com sua própria possibilidade de existência, para Kierkegaard “a personalidade protestará por toda a eternidade contra a ideia de que contrastes absolutos podem ser mediados (e este protesto é incomensurável com a afirmação da mediação); para toda a eternidade ela repetirá seu dilema imortal: ser ou não ser – eis a questão (Hamlet)” (KIERKEGAARD, apud GOUVÊA, 2006, p. 169).

Kierkegaard amava paradoxos porque ele via a importância do paradoxo para a transmissão das mais profundas verdades cristãs. A percepção de que paradoxos são fundamentais para a comunicação das mais profundas verdades religiosas não é sequer exclusivamente cristã ou bíblica. Ela está presente também em outras religiões. São exemplos disso também os Koans do Zen-Budismo, a tradição do Budismo Madhiamica, e o Hassidismo judaico. [...] Enfim, o paradoxo é uma ferramenta por meio da qual o eu ético-religioso pode ser, como Carnell coloca, “chocado de sua tendência natural de ter uma idéia maior de si do que deveria. Enquanto o eu conseguir perpetuar a ilusão de que sua posição no tempo é apenas uma ocasião para especulação, assim o eu continuará ignorante de seu pecado. E esta ignorância, por sua vez, encorajará o eu a conceber Deus como pouco mais do que a contra-partida cósmica da razão humana” (GOUVÊA, Op. Cit., p. 170).

         Portanto, de acordo com o que foi exposto até aqui, três pontos devem ser considerados fundamentais na abordagem do pensamento kierkegaardiano: Kierkegaard não é – nem de longe – um filósofo existencialista, mas um cristão que dedica seu labor filosófico à tarefa de conduzir os homens ao cristianismo do Novo Testamento; apesar disso, sua filosofia apresenta, sim, uma forte ênfase existencial, visto que, mesmo não terminando suas conclusões na existência, ele tira suas conclusões da existência, quer se movimente na esfera dos fatos sensíveis e palpáveis, quer no domínio do pensamento (Cf. KIERKEGAARD, 2011, p.63) [6]; e, por fim, todo o corpus kierkegaardiano encontra-se em constante diálogo com a tradição moderna, numa atitude não só de forte crítica aos sistemas filosóficos, mas, especialmente, de afirmação do indivíduo e da responsabilidade humana diante das escolhas que a vida nos oferece na constante tensão dialética dos opostos.

O Indivíduo coram Deo

Ousarmos ser nós próprios, ousar-se ser um indivíduo, não um qualquer, mas este que somos, só face a Deus, isolado na imensidade do seu esforço e da sua responsabilidade: eis o heroísmo cristão; e confesse-se a sua provável raridade; mas haverá heroísmo no iludirmo-nos pelo refúgio na pura humanidade, ou em brincar a ver quem mais se extasia perante a história da humanidade? Todo o conhecimento cristão, por estrita que seja de resto a sua forma, é inquietação e deve sê-lo; mas essa mesma inquietação edifica. A inquietação é o verdadeiro comportamento para com a vida, para com a nossa realidade pessoal e, consequentemente, ela representa, para o cristão, a seriedade por excelência; a elevação das ciências imparciais, muito longe de representar uma seriedade superior ainda, não é, para ele, senão farsa e vaidade. Mas sério é, eu vo-lo afirmo, aquilo que edifica (KIERKEGAARD, 1979, p. 189).

         Se para Kierkegaard a multidão é a mentira, é na categoria do Indivíduo que o homem encontra a realização da verdade. Opondo-se ao formalismo que nega ou reduz o ato de existir a uma padronização da ordem estabelecida ou a generalidades, o indivíduo encontra-se acima do gênero humano em sua abstração. Para ele, este indivíduo singular, sempre em devir, só é passível de ser concretizado na existência e a partir da diferenciação entre o ser e a essência. (Cf. ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p.51).
         Contudo, como a distinção que Kierkegaard faz entre ser e essência rompe com o modelo tradicional, é importante compreender o que ele tem em mente com tal diferenciação. Segundo o dinamarquês, “o sujeito existente é eterno, mas enquanto existente é temporal (KIERKEGAARD apud ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 51). Com isso, ele entende que enquanto possibilidade, o existente é eterno, visto que é criado do nada e, em Deus, tem sua essência, mas, por outro lado, sendo a existência um dom – e considerando-se que Deus se retira no ato da criação –, automaticamente, esvai-se também qualquer possibilidade de permanência dessa essência que poderia vir a determinar uma pseudo-independência do ser humano.
         Dessa maneira, a partir dessa concepção do caráter dadivoso da existência, já não há mais espaço para se trabalhar com causas e efeitos. Tendo sido o dom oferecido, a responsabilidade do que se faz de si mesmo e consigo mesmo diz respeito, exclusivamente, ao indivíduo singular. “Nesse caso, a essência é também uma construção da própria condição humana, ou, em termos kierkegaardianos, a essência também deve ser reduplicada em cada indivíduo, em cada geração” (ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 52). Afinal, se e existência já tivesse – de antemão – uma essência pronta, não seria uma existência de fato. Nessa perspectiva, o indivíduo singular

tem como tarefa o tornar-se em palavras vivas, à maneira de Cristo, que é sempre [..] o Modelo, a referência a ser seguida, porque Ele se constitui na verdadeira vida. Isso explica porque, nessa ótica, a verdade não se resume à identidade ou à conformidade entre o ser e o pensamento. A verdade “é” uma vida e é somente na sua apropriação, na aceitação livre e integral da verdade de Cristo enquanto Verdade-Caminho-Vida, é que a verdade adquire o caráter de sinônimo de subjetividade (ibidem, p. 53).

         Como se percebe, portanto, a verdade na filosofia existencial de Kierkegaard não é um conceito, mas – antes – uma vida que é sempre atual. “É a vida que se faz vida, como oferta a cada indivíduo singular numa relação sempre presente do agora da eternidade no tempo (ibidem, p. 56). Com isso, a verdade deixa de ser um fundamento lógico para tornar-se uma apropriação existencial que se dá no interior dessa dialética do finito e do infinito, do temporal e do eterno. Sob essa ótica, o próprio ato de tornar-se cristão assume outro significado: tornar-se contemporâneo com Cristo (Cf. ibidem, p. 58). É, justamente, nesse sentido que, para Kierkegaard, o indivíduo se identifica à verdade. É quando o indivíduo, afastado da multidão, torna-se indivíduo coram Deo.

Ser contemporâneo é ser o único perante Deus. É traduzir-se em autenticidade, e esta, em verdade.  A verdade enquanto é Cristo não pertence ao campo da doutrina, mas à dimensão da realização enquanto apropriação da própria verdade. O que é a verdade? “Cristo é a verdade. Nesse sentido, a verdade não consiste em uma suma de proposições, nem em uma determinação conceitual e coisas similares, senão que a verdade é a Vida.” E, contrariamente às máximas filosóficas, ele explica que o ser da verdade não é uma duplicação direta do ser relativo ao pensamento, que somente dá um ser pensado. “O ser da verdade é um ser, é a duplicação em ti, em mim, de maneira que a tua vida, a minha e a tua, de uma forma aproximativa – em contato com ele – seja o ser da verdade, como a verdade era Cristo: uma vida, pois Ele era a verdade (ibidem, p. 58).

         No mesmo sentido, o próprio Kierkegaard, em As Obras do Amor, afirma o seguinte:

O mesquinho jamais teve a coragem de realizar esse ato audacioso, de humildade e de orgulho agradável a Deus: de ser si mesmo diante de Deus. – pois a ênfase está neste “diante de Deus”, já que esta atitude é a fonte e a origem de todo o caráter particular da pessoa. Quem teve esta audácia tem um caráter individual; ele veio a saber o que Deus já lhe tinha dado, e ele crê exatamente bem do mesmo jeito no caráter particular de cada um. Ter caráter individual é crer no caráter individual de cada um dos outros, pois o caráter individual não é coisa minha; é um dom pelo qual Deus me dá o ser, e ele o dá aliás a todos, e a todos ele dá o ser. Tal é a insondável fonte de bondade que jorra da bondade de Deus, que Ele, o Todo-Poderoso, dá de tal maneira que o que recebe, recebe seu caráter particular, que Ele cria do nada, cria dando uma característica particular, de modo que a criatura, mesmo sendo tirada do nada, não paira diante d’Ele como nada, mas adquire seu caráter próprio (KIERKEGAARD, 2007, p. 306) [7].

         Entretanto, como já salientado no item anterior, é importante que esse discurso de Kierkegaard a respeito da subjetividade seja compreendido à luz de sua polêmica contra Hegel e seu abstrato sujeito absoluto. Segundo o dinamarquês:

Todo homem que não se conhece como espírito ou cujo eu interior não tomou em Deus consciência de si próprio, toda a existência humana, que não mergulha desse modo limpidamente em Deus, mas se funda nebulosamente sobre qualquer abstração ou a ela se reduz (Estado, Nação, etc.), ou que, cega para consigo própria, não vê nas suas faculdades mais do que energias de origem pouco explícita, e aceita o seu eu como um enigma rebelde a qualquer introspecção – toda a existência deste gênero, realize o que realizar de extraordinário, explique o que explicar, até o próprio universo, por muito interessante que, como esteta, goze a vida: mesmo assim, ela será desespero (KIERKEGAARD, 1979, p. 218).

         É também oportuno ressaltar que Kierkegaard jamais afirmou que existem tantas verdades quanto existem indivíduos. Subjetividade da forma como ele entende nada tem a ver com alguma manifestação de atividade pessoal ou qualquer outra expressão de capricho ou egocentrismo humanos. Definitivamente, ele não está se referindo a alguma espécie de personalidade artística, nem cultuando a particularidade a todo custo. “Subjetividade em Kierkegaard, portanto, não significa acreditar no que se queira, fazer apenas o que nos agrada, negar as compulsões da verdade universal (GOUVÊA, Op. Cit., p. 153).
         Portanto,o que se deve ter claro em mente quando Kierkegaard afirma a primazia do indivíduo sobre o geral e apresenta a subjetividade como verdade é que em nenhum momento ele está saindo em defesa de alguma espécie de subjetivismo epistemológico, ou enamorando-se da ideia presente nas ciências naturais que afirma a impossibilidade de uma certeza objetiva. Para o dinamarquês, de outro modo, visto que a noção de confiança é básica para o conceito de fé, esta acaba por configurar-se como uma incerteza, mas uma incerteza objetiva.

Quando subjetividade é verdade, a definição de verdade deve conter também em si mesma uma expressão da antítese à objetividade, um lembrete daquela bifurcação na estrada, e esta expressão indicará ao mesmo tempo a tenacidade da introspecção. Aqui está uma tal definição de verdade: Uma incerteza objetiva, agarrada através da apropriação com a mais apaixonada introspecção, é a verdade, a mais elevada verdade que há para uma pessoa existente (KIERKEGAARD apud ibidem, p. 155).

A ética kierkegaardiana

         Se Kierkegaard é um autor reconhecidamente complexo e que suscita várias possibilidades de confusão por parte de leitores desavisados, sua concepção de ética, certamente, pode ser considerada um de seus temas mais nebulosos. Eventualmente, quando se ouve alguma coisa sobre a ética kierkegaardiana, geralmente o conteúdo da afirmação está associado à compreensão do segundo estádio da existência, situado entre o estádio estético e o religioso. Entretanto, um olhar mais atento sobre o conjunto da obra nos revela que, em Kierkegaard, o conceito de ética quase nunca apresenta significados unívocos.
         O primeiro fato a que devemos atentar, portanto, é que, no pensamento de Kierkegaard, há uma distinção entre uma ética-primeira e uma ética-segunda. Segundo o dinamarquês, “todo o conhecimento e toda a especulação dos Antigos baseavam-se na pressuposição de que o pensamento tinha realidade”, assim também como “toda Ética antiga baseava-se na pressuposição de que a virtude era realizável” (Cf. KIERKEGAARD, 2010, p. 21) [8]. Dessa forma, o pecado – que, para Kierkegaard, constitui um aspecto fundamental da realidade – acabava sendo para a consciência ética o que o erro era para o conhecimento: apenas uma exceção isolada incapaz de provar qualquer coisa.
         Nesse sentido, a ciência responsável por fazer a transposição dessa ética-primeira, de caráter idealista – que tem em Sócrates o seu principal representante – para a ética-segunda – expressa na figura de Abraão como protótipo do cavaleiro da fé – seria a Dogmática. Partindo da realidade efetiva, ela não apenas reconhece a presença do pecado, como explica-o ao pressupor o pecado hereditário (Cf. ibidem, p. 21). Assim, a ética-segunda “pressupõe a Dogmática, e com essa o pecado hereditário, de que se serve em seguida para explicar o pecado do indivíduo, enquanto ao mesmo tempo institui como tarefa a idealidade, porém não no movimento de cima para baixo, mas de baixo para cima” (ibidem, p. 23).
         Na perspectiva de Kierkegaard, a filosofia e a teologia acabaram caindo em uma grande confusão quando – desviando-se do caminho – pretenderam ultrapassar seus limites através do calculismo e da indiferença da mediação como condição para se chegar a Deus. O resultado, como se viu, foi a redução do próprio Deus a um elemento final do mesmo processo lógico. Com isso: “Em lugar de esclarecer e orientar os homens (os homens individuais) ao ético, ao religioso, ao existencial, a filosofia deu o aval para que os homens se colocassem, para dizer de maneira prosaica, em especulações vazias, sem perigo, nas nuvens do puro simulacro” (KIERKEGAARD apud ALMEIDA E VALLS, Op. Cit. p. 45). Como consequência dessa vereda tortuosa, ocorreu que tanto a filosofia, quanto a ética acabaram por se perverter “ao trocar o amor e a seriedade ética por um saber que transformou Deus em paliativo, em analgésico para as dores de consciência” (ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 45).

Descobrimos assim, com a ajuda de Kierkegaard, que o tipo de ética que encontramos na tradição platônico-aristotélica não é apenas racionalista (pois apenas o que é humanamente imaginável e justificável pode ser a base e o conteúdo da ética), mas, do ponto de vista religioso, é idólatra, pois até Deus está sujeito a algo superior. Por outro lado, não se pode dizer que seja real, pois não considera a existência. É uma ética domada, muito cultural, muito aceitável, que não tem nada de importante a dizer além de obrigar a um certo padrão comportamental que é adequado e proveitoso para os dirigentes de uma sociedade. Isto não pode ser jamais o retrato de uma ética existencial, nem muito menos de uma ética cristã, pois o padrão da ética cristã deve ser o ensinamento de Jesus que está longe de ser um ensinamento domado, socialmente aceitável, culturalmente conservador, controlador de pessoas, mas sim um ensinamento devastadoramente contra-cultural, libertador, revolucionário e que “vira a mesa” (GOUVÊA, 2009, p.244).

            Dessa maneira, visto que a ética, enquanto reflexão natural acerca das relações, não deixa de ser validada, o que se observa no ponto de vista kierkegaardiano é que há uma transformação do velho sentido estático de dever de Deus, de mandamento divino. Agora, a ética – encontrando a sua verdadeira base – passa a ser compreendida dentro de sua religiosidade e assume a dimensão de uma supra-ética (Cf. ibidem, p. 245). Assim, “sempre que uma pessoa é chamada a agir como um indivíduo, ele está fora da esfera ética e, portanto, não pode encontrar justificação ética para a sua ação” (SCHRADER  apud ibidem, p. 249). Isso significa que um indivíduo – enquanto indivíduo –, faça o que fizer, certo ou errado, estará sempre fora da esfera ética, visto não haver nenhuma justificação ética para uma ação realizada por um indivíduo enquanto indivíduo, apenas enquanto participante de uma sociedade. Na realidade da existência coram Deo – isto é, do indivíduo isolado perante Deus –, cada ser humano encontra-se, inevitavelmente, como indivíduo singular e, desse modo, deve prestar conta de suas ações, sabendo ainda que, diante de Deus, nós somos sempre devedores. Portanto, enquanto indivíduo, todo ser humano encontra-se fora da esfera ética e, conscientemente ou não, inserido na esfera religiosa. “É por isso que Kierkegaard afirma que o estágio ético era meramente um estágio intermediário, uma passagem na qual ninguém pode realmente permanecer” (GOUVÊA, Op. Cit., p. 249).
         No entanto, conforme bem nos lembra Gouvêa, “o pensamento de Kierkegaard não era em nenhum sentido transmoral, se com isso queremos dizer algum tipo de antinomianismo. Ele não era advogado do niilismo moral” (ibidem, p. 250). O que Kierkegaard nos oferece, na realidade, não é a supressão da ética, mas – de maneira inversa – uma base genuína e original para o pensamento ético. Em As Obras do Amor (1847), um de seus mais belos livros, o dinamarquês dedica-se, justamente, a nos mostrar como outro tipo de ética, “melhor, mais séria e mais honesta” (Cf. ibidem, p. 250), é possível.
         Segundo o filósofo de Copenhagen:

Quando [...] se deve amar o próximo, a tarefa existe (a tarefa ética), a qual, por sua vez, é a fonte original de todas as tarefas. Justamente porque o crístico é o verdadeiro ético ele sabe abreviar os raciocínios e cortar fora as introduções panorâmicas, afastar todas as delongas preliminares e libertar de toda perda de tempo; o cristão está imediatamente na tarefa, porque ele a tem consigo. No mundo há uma grande discussão, aliás, sobre o que deveria ser chamado o bem supremo. Mas qualquer que seja o que chamamos assim, por mais diferente que seja, é incrível quanta complexidade se prende ao esforço de alcançá-lo. O Cristianismo, ao contrário, ensina ao homem imediatamente o caminho mais curto para encontrar o que há de mais elevado: fecha tua porta e ora a Deus – pois Deus é que é o bem supremo. E se um homem tiver que sair pelo mundo, sim, aí talvez ele possa ir longe e andar em vão, dar uma volta ao mundo – e em vão, para procurar a pessoa amada ou o amigo. Mas o Cristianismo jamais incorre na falta de mandar uma pessoa andar, nem que seja um único passo, inutilmente; pois quando abrires aquela porta, que tu fechaste para orar a Deus, e saíres, então a primeira pessoa que encontrares é o próximo, que tu deves amar. Que coisa estranha! (KIERKEGAARD, 2007, p. 70-71).

         Assim, o que fica bastante evidente no pensamento kierkegaardiano é que “sem uma intervenção e um fundo religioso, a realização do ideal ético é de fato impossível” (GOUVÊA, 2006, p. 262). Nessa perspectiva, a função da ética passa a ser não somente desenvolver uma receptividade para a religião, como, também, um sentimento de necessidade por ela (Cf. SWENSON apud GOUVÊA, Op. Cit., p. 262).

O conceito de Repetição

         Se Gouvêa estiver correto em sua interpretação, a repetição é um dos conceitos mais importantes trabalhados por Kierkegaard, quiçá o mais importante. O comentador do dinamarquês chega a profetizar que o conceito kierkegaardiano de repetição “ainda irá se evidenciar como um dos conceitos mais importantes na história da filosofia, um conceito cujo alcance e cujas implicações ainda estão longe de serem descobertas, e que por isso mesmo deverá ser um dos conceitos filosóficos mais explorados do século XXI” (GOUVÊA, Op. Cit., p. 213). Comecemos, então, a fazê-lo.
         Etimologicamente, a palavra re-petição significa pedir novamente ou, em outras palavras, re-peticionar. Isso pode se dá de, pelo menos, duas formas distintas: pode-se pedir algo que já se teve e que se quer mais ou, de outro modo, pode-se pedir algo já pedido anteriormente, mas que, por algum motivo qualquer, não se obteve. O conceito de repetição abarca as duas possibilidades: aquela em que se pede algo que se tem ou que se teve e de que se quer mais, e aquela em que o pedido já se quis, embora não tenha sido obtido. “A repetição kierkegaardiana é, portanto, reapropriação (Gjentagelse), isto é, pegar ou tomar novamente aquilo que já se teve ou ainda se tem, mas de que se quer mais, ou aquilo que já se tentou apropriar anteriormente sem completo êxito” (ibidem, p. 214).

A importância da repetição encontra-se no escândalo da kinesis, do movimento, da metamorfose, e todos os fenômenos relacionados à transitoriedade da vida temporal. A filosofia grega nunca soube o que fazer direito com o movimento, a transformação e a temporalidade, apesar dos honrosos esforços de Aristóteles, porque está toda ela calcada na concepção de reminiscência do eterno. Em outras palavras, diante do fluxo da existência, a filosofia grega se re-colhe e en-colhe em direção do ponto inicial, da origem, isto é, do nada, e sai pela porta dos fundos. A repetição apresenta uma marcha adiante, para o eterno no “fim” da temporalidade, não no seu “início” (ibidem, p. 216).

         Assim, o que se percebe, como o próprio Kierkegaard chega a afirmar, é que seu conceito de repetição e a reminiscência platônica, na realidade, correspondem ao mesmo movimento, só que em direções opostas. A reminiscência, ao lembrar o que já passou, seria uma espécie de repetição às avessas. A verdadeira repetição, em contrapartida, configura-se como um movimento para frente, constituindo-se em uma espécie de lembrança do futuro. Exatamente por isso que, de modo diferente da reminiscência – que tende a nos tornar infelizes, nostálgicos e pessimistas – ela “faz-nos felizes, motivados e otimistas, pois apresenta-nos a possibilidade do movimento existencial, do crescimento espiritual, em vez da opção da busca pela aniquilação da personalidade e da individualidade no desapego à temporalidade e o retorno ao eterno” (ibidem, p. 217). Ou, nas palavras do próprio dinamarquês: “Grande é alcançar o eterno, mas maior ainda é guardar o temporal depois de a ele ter renunciado” (KIERKEGAARD, 1979, p. 119) [9].
         Ao contrário do que se pode imaginar, no entanto, Kierkegaard não está, simplesmente, negando o pensamento platônico. Está, na realidade, renovando-o e transformando-o. Não se pode esquecer que foi a partir da reminiscência platônica que, mais tarde – na idade Média – Agostinho – que muito influenciou o pensamento de Kierkegaard – construiu sua epistemologia da iluminação. Entretanto, enquanto no pensamento agostiniano – que, diferentemente da reminiscência platônica, não pressupunha a pré-existência da alma humana – a reminiscência se dava como uma iluminação oferecida por Deus ao ser humano, Kierkegaard vai ainda mais longe e sugere que tanto Platão, quanto Agostinho, embora tenham percebido corretamente um movimento psico-epistemológico, erraram na identificação do seu direcionamento, supondo-o para trás. Para Kierkegaard, esse movimento não só toma a direção oposta, dirigindo-se para frente, como é “um movimento empiricamente verificável e inerente à criação, ao mundo natural, independente, portanto, tanto de uma pré-existência da alma quanto de uma iluminação transcendental adicional ou miraculosa” (GOUVÊA, Op. Cit., p. 217).
         No entendimento de Kierkegaard, a repetição, configurando-se como uma espécie de terceira via que se oferece como opção aos conceitos de esperança e reminiscência – provenientes, respectivamente, da tradição judaico-cristã e da tradição grega – é, na realidade, a verdadeira expressão do conceito – tão combatido por ele – que, no idealismo alemão, ficou conhecido como mediação. Nesse sentido, se, para Kierkegaard, a filosofia grega da reminiscência possuía a honestidade como virtude, o mesmo não se dava com a filosofia moderna.

Hegel, lembra-nos Kierkegaard, propunha-se a trazer dinamismo à lógica e à filosofia, por meio da dialética triádica que sugere e exemplifica muitas vezes. Entretanto, sua filosofia termina em um monismo absoluto, tão estático quanto o Ser de Parmênides. O movimento, em Hegel, é comparável ao das crianças nos carrinhos de um parque de diversão: não importa quão drasticamente elas movam a direção do carrinho, ele continua girando preso na bitola segura e sem a incerteza da liberdade a qual estamos fadados, como disse Sartre, ao menos todos os que acordam do sonho da eternidade platônica e abraçam a condição humana da temporalidade. Kierkegaard sugere, no Epílogo de Temor e Tremor, que Hegel é como Crátilo, o discípulo de Heráclito, que, na intenção de levar adiante o projeto filosófico de dinamismo e transmutação de seu mestre, acabou por apresentar, sem perceber, argumentos em favor das teses de Parmênides, o grande opositor de Heráclito. A kinesis hegeliana seria, portanto, um movimento aparente, abstrato, teórico. Assim também é o conhecimento no platonismo e no agostinianismo. A repetição, ao contrário, implica em um genuíno movimento do espírito humano, um movimento concreto e fenomenológico, com consequências práticas para a vida e o mundo (ibidem, p. 219).


         É por isso que, em A Repetição, o heterônimo de Kierkegaard Constantin Canstantius afirma que “a repetição é o lema em qualquer intuição ética” (KIERKEGAARD, 2009, p. 51) [10]. Mais até do que isso, a repetição é identificada à própria realidade, como uma atitude de seriedade diante da existência. Nas belas palavras do dinamarquês:

É preciso juventude para ter esperança, juventude para recordar, mas é preciso coragem para se querer a repetição. Porque aquele que apenas quer ter esperança é cobarde; aquele que apenas quer recordar é voluptuoso; mas aquele que quer a repetição é um homem, e quanto mais energicamente for capaz de a tornar clara para si próprio, tanto maior será a sua profundidade como criatura humana. Aquele, porém, que não compreende que a vida é uma repetição e que essa é a beleza da vida, esse condenou-se a si mesmo e não merece melhor fim do que o que lhe acontecerá, ou seja, sucumbir; porque a esperança é um fruto sedutor que não satisfaz; mas a repetição é o pão de cada dia que abençoadamente satisfaz. Se um indivíduo circum-navegou a existência, tornar-se-á evidente se tem coragem para entender que a vida é uma repetição e desejo suficiente para com ela se regozijar. Aquele que não circum-navegou a vida antes de começar a viver nunca chegará a viver; aquele que a circum-navegou, e porém ficou satisfeito, tinha uma fraca constituição; aquele que escolheu a repetição, esse vive. Não corre como um rapaz atrás de borboletas, nem se põe em bicos de pés para vislumbrar as maravilhas do mundo, pois que as conhece; nem se senta como uma velha mulher fiando na roca da recordação; antes avança calmamente pelo seu caminho, contente da repetição. Sim, se não houvesse a repetição, o que seria vida? Quem poderia desejar ser uma ardósia na qual o tempo inscrevesse a cada instante um novo texto, ou ser um memorial de coisas passadas? Quem poderia desejar deixar-se mover por tudo o que é efémero, pelo novo, que constantemente entretém a alma, amolecendo-a? Se o próprio Deus não tivesse querido a repetição, o mundo nunca teria surgido.  Deus teria seguido os planos superficiais da esperança, ou teria voltado a retirar todas as coisas e tê-las-ia preservado na recordação. Não o fez, por isso continua a haver mundo, e continua a haver pelo fato de ser repetição (ibidem, p. 32-33).

A liberdade

         Como se deve ter percebido até aqui, há uma ideia central que permeia todo o pensamento de Kierkegaard: a ideia de liberdade. Não raras vezes, inclusive, o dinamarquês apresenta tal conceito como sinônimo de verdade. Entretanto, como já visto anteriormente, o indivíduo, para Kierkegaard, também é, constantemente, identificado à verdade. Dessa maneira, o que fica evidente para nós no pensamento kierkegaardiano é que tanto verdade, quanto liberdade e individualidade apresentam-se indissociavelmente relacionadas, chegando mesmo, muitas vezes, a significarem a mesma coisa.
         Em seu Desespero Humano, Kierkegaard declara que: “O eu é formado de finito e de infinito. Mas a sua síntese é uma relação que, apesar de derivada, se relaciona consigo própria, o que é a liberdade. O eu é liberdade. Mas a liberdade é a dialética das duas categorias do possível e do necessário” (KIERKEGAARD, 1979, p. 207) [11]. Para ele, se a mudança do devir é a realidade, essa passagem só se torna possível pela liberdade, jamais por pura necessidade. Isso porque, em seu entendimento, nada do que está vindo a ser o está fazendo devido a uma razão, mas devido a uma causa. E, nesse sentido, toda e qualquer causa remonta a uma causa atuando livremente. Segundo ele, o engano advindo da ideia de causas intermediárias ocorre porque o devir parece necessário. No entanto, a verdade delas consiste em que, devindas elas mesmas, remetem definitivamente a uma causa que atua livremente. Com isso, mesmo a consequência de uma lei natural não poderia explicar a necessidade de nenhum devir, pelo menos não quando se reflete de maneira definitiva sobre o devir. Assim, da mesma forma ocorre com as manifestações de liberdade quando, não nos deixando enganar por elas, refletimos sobre o seu devir (Cf. KIERKEGAARD, 2011, p. 104).
         Na perspectiva kierkegaardiana:

Se o passado se tivesse tornado necessário, não se deveria poder concluir o oposto no que concerne ao futuro, porém, ao contrário, daí se seguiria que o futuro também era necessário. Caso a necessidade pudesse penetrar num único ponto, não se poderia mais falar de passado e de futuro. Querer predizer o futuro (profetizar) e querer compreender a necessidade do passado é completamente a mesma coisa, e é apenas uma questão de moda se a uma geração uma parece mais plausível do que a outra. O passado, afinal de contas, deveio; o devir é a mudança da realidade pela liberdade. Ora, se o passado se tivesse tornado necessário, não mais pertenceria à liberdade, isto é, àquilo pelo qual ele veio a ser. A liberdade estaria então numa posição ruim, faria ao mesmo tempo rir e chorar, pois levaria a culpa daquilo que não seria de sua competência, produziria aquilo que a necessidade logo haveria de engolir, e a própria liberdade tornar-se-ia uma ilusão, e o devir não menos; a liberdade tornar-se-ia bruxaria, e o devir alarme falso (KIERKEGAARD, Op. Cit., p. 107-108).

         Por isso que, para o dinamarquês, a fé não é um conhecimento, mas – de outro modo – um ato da liberdade, uma expressão da vontade. Ao crer no devir, a fé acaba por suprimir em si a incerteza que corresponde ao nada do não-ser.  Ela crê “neste ‘assim’ do que deveio e já suprimiu, portanto, o ‘como’ possível do que deveio, e embora sem negar a possibilidade de um outro ‘assim’, o ‘assim’ do que deveio é todavia para a fé o que há de mais certo” (ibidem, p. 116).
         É nesse contexto, portanto, que indivíduo, verdade e liberdade são entendidos de maneira muito próxima. Ao considerar a verdade não como uma abstração teórica ou como um conceito frio, mas como um caminho que é identificado com a própria vida, Kierkegaard percebe que “a verdade exige um constante atualizar da Verdade na ação concreta e na realização do indivíduo singular” (ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 55). Essa atualização, por sua vez, só é possível através da liberdade. Desse modo, concebida fora de um sistema, a verdade passa a ser concebida como uma coerência prática que se realiza na ação. Ou, em suas próprias palavras: “Eu só conheço a verdade se ela se faz vida em mim” (KIERKEGAARD  apud ibidem, p. 55).
         Em termos éticos, na concepção da ética kierkegaardiana do amor vista anteriormente, o dinamarquês entende que é o dever de amar o próximo que oferece o fundamento necessário para que a verdadeira liberdade se estabeleça. Para ele,

o amor que se submeteu à transformação da eternidade em se tornando dever, e ama porque deve amar, é independente, tem a lei de sua existência na própria relação do amor para com o eterno. Este amor jamais pode tornar-se dependente no sentido não verdadeiro, pois a única coisa de que ele depende é o dever, e o dever é a única coisa que liberta. O amor imediato torna um ser humano livre, e no instante seguinte dependente. O mesmo ocorre com o tornar-se homem de um homem; ao tornar-se, ao tornar-se um “si mesmo”, ele se torna livre, mas no instante seguinte está dependente desse si mesmo. O dever, ao contrário, torna um homem dependente e no mesmo instante eternamente independente. “Só a lei pode dar a liberdade”. Ai, tão frequentemente se acha que há liberdade, e que a lei seria aquilo que amarra a liberdade. Contudo, é justamente o contrário; sem a lei a liberdade pura e simplesmente não existe, e é a lei que dá a liberdade. Também se acredita que é a lei quem faz diferenças, porque não há diferença nenhuma lá onde não existe lei. Contudo, é o contrário; se é a lei que faz diferenças, então é justamente a lei que torna todos iguais diante da lei. Dessa maneira, este “deves” liberta o amor para uma feliz independência; um tal amor não depende , para se manter ou perecer, da contingência do seu objeto, ele depende da lei da eternidade – mas então realmente não perece jamais; um tal amor não depende deste ou daquele, ele só depende da única coisa que liberta; portanto ele é eternamente independente. Com esta independência nenhuma outra pode ser comparada (KIERKEGAARD, 2007, p. 56-57).

Conclusão

         Diante do exposto até aqui, fica bastante claro que o pensamento de Kierkegaard traz em si um aspecto extremamente revolucionário. Muito mais do que criticar a filosofia moderna como um todo – e, especialmente, Hegel, em particular – o que o dinamarquês nos apresenta é um outro paradigma de filosofia. Ironicamente – aliás a ironia é a grande marca de toda sua filosofia –, ao assumir a dogmática e as questões relativas à fé como a base de seu pensamento, Kierkegaard não só rompe com o dogma da autonomia da razão que permeou toda a tradição ocidental, como liberta a si mesmo e sua filosofia, possibilitando um diálogo efetivo entre esta e a realidade. Se, como ele afirma, é a lei a responsável por conferir liberdade ao indivíduo, analogamente, a assunção honesta de seus pressupostos religiosos acaba sendo a grande responsável por permitir-lhe desenvolver uma ética extremamente livre e independente. Isso porque, conforme bem percebe Gouvêa,

como a ética cristã é baseada no nomos do Criador, a ética bíblica não é heteronomia pois não é heteroios em relação a alguém que vive coram Deo. Ética bíblica é a exposição e elucidação dos nomiomata revelacionais, isto é, o nomos ético-cósmico em contraste com a anomia pecado, rebelião e idolatria. Estes nomiomata da ética bíblica são a base para o que Kierkegaard afirma sobre o homem que conheceu o Deus vivo: que “ele determina sua relação com o universal por sua relação com o absoluto, não sua relação com o absoluto por sua relação com o universal” (GOUVÊA, Op. Cit, p. 234).

         Assim, ao contrário do pensa Hannah Arendt quando afirma ter permanecido o dinamarquês preso à tradição em sua crítica à tradição (Cf. ARENDT, 2009, p. 52) [12], Kierkegaard não só nos presenteia com uma concepção superior de ética, pautada no dever de amar o próximo, como apresenta um novo modo de fazer filosofia. Não é à toa que, para Paul Ricoeur – ao introduzir a descontinuidade, a angústia, o nada, o paradoxo, o salto, o drama existencial que se apresenta no vazio, na superficialidade, na inautenticidade da existência –, Kierkegaard inaugura a pós-filosofia (Cf. ALMEIDA E VALLS, Op. Cit., p. 61).
         Portanto, se também Adorno estiver correto em sua crítica ético-política, ao afirmar que a estratégia do Estado consiste em eliminar a personalidade individual, criando o anonimato e difundindo a mentira de que o mais importante é a massa, a multidão, a maioria (Cf. ibidem, p. 65), ouso dizer que o pensamento kierkegaardiano deve não somente deixar de ser alvo de preconceitos infundados por parte daqueles que – incapazes de compreender as implicações mais profundas de sua filosofia – o inferiorizam por seu posicionamento declaradamente religioso, mas, acima de tudo, receber uma atenção especial dos pesquisadores como forma de oferecer alternativas de pensamento para um mundo onde o velho racionalismo moderno já não tem mais muito o que dizer.

Referências Bibliográficas

1 - ALMEIDA E VALLS, Jorge Miranda de e Álvaro L. M.. Kierkegaard. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Coleção passo-a-passo).
2 - ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.
3 - DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental.  [Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, Rodolfo Amorim Carlos] – São Paulo: Hagnos, 2010.
4 - GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Paixão pelo paradoxo. São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2006.
5 - ____________________. A Palavra e o Silêncio. São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2009.
6 - KIERKEGAARD, Søren. A Repetição. [Tradução: José Miranda Justo] – Lisboa, PT: Relógio D’Água Editores, 2009.
7 - ____________________. As Obras do Amor – Algumas considerações cristãs em forma de discursos. [Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls] – Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
8 - ____________________. Migalhas Filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. [Tradução: Ernani Reichmann e Álvaro Valls] – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
9 -_____________________. O conceito de angústia. [Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls] – Petrópolis, RJ: Vozes; São Paulo, SP: Editora Universitária São Francisco, 2010. – (Coleção pensamento humano).
10 - ____________________. O desespero humano. In: Os pensadores. [Tradução: Adolfo Casais Monteiro] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.
11 - ____________________. Temor e Tremor. In: Os pensadores. [Tradução: Maria José Marinho] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.







[1] Segundo o filósofo holandês Herman Dooyeweerd, esse seria o grande problema do pensamento ocidental: “uma completa confusão a respeito da relação entre racionalidade e natureza humana” (DOOYEWEERD, 2010, p. 29). Um dos pontos centrais de sua tese é a afirmação de que “a razão teórica depende da orientação religiosa fundamental do ser humano, em direção ao que ele crê ser a fonte divina de todas as coisas” (Ibidem, p.28). Dessa forma, ele procura demonstrar que “o pensamento teórico reflete uma função ou aspecto particular da vida humana, o qual perde todo o sentido se deixa de ser compreendido em seu contexto humano integral” (Ibidem, p.29).
[2]  GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Palavra e o Silêncio. São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2009.

[3]  GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Paixão pelo paradoxo. São Paulo, SP: Fonte Editorial, 2006.

[4] ALMEIDA E VALLS, Jorge Miranda de e Álvaro L. M.. Kierkegaard. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Coleção passo-a-passo).

[5] KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. In: Os pensadores. [Tradução: Adolfo Casais Monteiro] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.

[6] KIERKEGAARD, Søren. Migalhas Filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. [Tradução: Ernani Reichmann e Álvaro Valls] – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

[7] KIERKEGAARD, Søren. As Obras do Amor – Algumas considerações cristãs em forma de discursos. [Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls] – Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

[8] KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. [Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls] – Petrópolis, RJ: Vozes; São Paulo, SP: Editora Universitária São Francisco, 2010. – (Coleção pensamento humano).

[9] KIERKEGAARD, Søren. Temor e Tremor. In: Os pensadores. [Tradução: Maria José Marinho] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.

[10] KIERKEGAARD, Søren. A Repetição. [Tradução: José Miranda Justo] – Lisboa, PT: Relógio D’Água Editores, 2009.

[11] KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. In: Os pensadores. [Tradução: Adolfo Casais Monteiro] – São Paulo: Abril Cultural, 1979.

[12] ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.

2 comentários:

  1. Excelente introdução ao Kierkegaard para nos que nunca o lemos!
    Mas se não me engano você omitiu analisar a estetica daqueles famosos três estádios da existência?
    keep it real!
    Abraço

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    1. Obrigado, Sifis! Fico feliz que tenha gostado!

      De fato a análise dos 3 estádios não fazia parte do escopo da pesquisa. Mesmo a ética apresentada aqui, se você perceber bem no texto, não se refere à ética do segundo estádio kierkegaardiano, mas àquilo que ele chama de ética segunda.

      Abraço!

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