A boca fala do que o coração tá cheio

sábado, 21 de dezembro de 2013

Racionalidade e decadência


A racionalidade é um modo de abertura do mundo que oculta os seus próprios pressupostos. A totalidade da realidade aparece, mas a partir da lógica do ser simplesmente dado, que pressupõe que tanto o homem quanto os demais entes sejam algo em si, ou seja, destituídos de uma relação ontológica conformativa prévia. O próprio mundo oculta-se, tendo em vista que tudo aparece sob o esquema do em si. Porém, se o mundo só se abre através do homem e é mobilizado pelo seu caráter de poder-ser, então a racionalidade sem travas passa a ser um obstáculo para o próprio homem. A razão disto é clara. A racionalidade aparece por causa e para o poder-ser do homem. À medida que o homem relaciona-se com tudo e todos para assegurar-se do seu curso e dominar os eventos, ele conforma-se de acordo com o mundo racional que faz antecipar tudo e todos. Também ele passa a ser categorizável. Devido a essas características do mundo “racional”, o homem passa a ver-se como ser simplesmente dado, o que o leva à pretensão de supressão do seu caráter de poder-ser. Seus comportamentos passam a ser condicionados por estruturas categoriais, o que favorece a experiência de alienação de sua condição. O curso de sua existência pode ser previamente decidido e o homem passa a ser somente um exemplo de um modelo cujas regras antecipadamente já são sabidas. Para Heidegger, esse tipo de existência não é contraditória. Sendo poder-ser, o homem é o único ser que poder ser dissonante de si mesmo. Tal tipo de existência é chamado por Heidegger de existência imprópria. Ela é o modo mais comum de desdobramento existencial, pois nela a existência é facilitada, já que suprime a tarefa existencial primária de ter de conquistar a cada vez o seu ser em resposta à nadidade inerente ao poder-ser. O mundo impessoal é sempre “racional”, visto que o curso de tudo já é previsível e o homem lida taticamente com tudo, especialmente consigo mesmo. Suas possibilidades de ser já estão decididas e o modo de lidar com os entes também. Tudo se torna seguro e a angústia não ganha aí a sua voz. Por isso, “o ser dos entes em sua existência é então compreendido como ser simplesmente dado”.[1] A absorção do homem nesse mundo racionalizado impessoal é a sua decadência[2]. Decadência, antes de ser um conceito moral, é um modo próprio do ser humano. Decadente, o homem não responde ao seu poder-ser de forma singular, mas impessoalmente. Existe segundo a lógica antecipadora da racionalidade de um mundo que a trata como uma mera função de si mesmo. Por mais que use utensílios, o homem não os compreende como tais. Tudo aparece segundo a ideia de em si, e a existência se traduz em comportamentos que funcionalizam a perspectiva de antecipação do curso de tudo e de todos. A previsibilidade passa a retirar a insegurança constitutiva da existência humana.
Com as informações anteriores, sabe-se que o homem não é a priori animal racional. A racionalidade passa a ser um modo de ser que operacionaliza um tipo determinado de existência, qual seja, a existência decadente, que visa regulamentar os comportamentos e obscurecer a singularidade humana e o poder-ser que a determina.

In: Bastos, Aguinaldo de. Ontologia da violência: o enigma da crueldade / Aguinaldo de Bastos, Alexandre Marques Cabral, Jonas Rezende. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.






[1] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/São Francisco, 2006.  §43.
[2] Cf. Ibid., §38

Nenhum comentário:

Postar um comentário