A
racionalidade é um modo de abertura do mundo que oculta os seus próprios
pressupostos. A totalidade da realidade aparece, mas a partir da lógica do ser
simplesmente dado, que pressupõe que tanto o homem quanto os demais entes sejam
algo em si, ou seja, destituídos de uma relação ontológica conformativa prévia.
O próprio mundo oculta-se, tendo em vista que tudo aparece sob o esquema do em
si. Porém, se o mundo só se abre através do homem e é mobilizado pelo seu
caráter de poder-ser, então a racionalidade sem travas passa a ser um obstáculo
para o próprio homem. A razão disto é clara. A racionalidade aparece por causa
e para o poder-ser do homem. À medida que o homem relaciona-se com tudo e todos
para assegurar-se do seu curso e dominar os eventos, ele conforma-se de acordo
com o mundo racional que faz antecipar tudo e todos. Também ele passa a ser
categorizável. Devido a essas características do mundo “racional”, o homem
passa a ver-se como ser simplesmente dado, o que o leva à pretensão de
supressão do seu caráter de poder-ser. Seus comportamentos passam a ser
condicionados por estruturas categoriais, o que favorece a experiência de
alienação de sua condição. O curso de sua existência pode ser previamente
decidido e o homem passa a ser somente um exemplo de um modelo cujas regras
antecipadamente já são sabidas. Para Heidegger, esse tipo de existência não é
contraditória. Sendo poder-ser, o homem é o único ser que poder ser dissonante
de si mesmo. Tal tipo de existência é chamado por Heidegger de existência imprópria. Ela é o modo mais
comum de desdobramento existencial, pois nela a existência é facilitada, já que
suprime a tarefa existencial primária de ter de conquistar a cada vez o seu ser
em resposta à nadidade inerente ao poder-ser. O mundo impessoal é sempre “racional”,
visto que o curso de tudo já é previsível e o homem lida taticamente com tudo,
especialmente consigo mesmo. Suas possibilidades de ser já estão decididas e o
modo de lidar com os entes também. Tudo se torna seguro e a angústia não ganha
aí a sua voz. Por isso, “o ser dos entes em sua existência é então compreendido
como ser simplesmente dado”.[1] A
absorção do homem nesse mundo racionalizado impessoal é a sua decadência[2].
Decadência, antes de ser um conceito moral, é um modo próprio do ser humano.
Decadente, o homem não responde ao seu poder-ser de forma singular, mas
impessoalmente. Existe segundo a lógica antecipadora da racionalidade de um
mundo que a trata como uma mera função de si mesmo. Por mais que use
utensílios, o homem não os compreende como tais. Tudo aparece segundo a ideia
de em si, e a existência se traduz em comportamentos que funcionalizam a
perspectiva de antecipação do curso de tudo e de todos. A previsibilidade passa
a retirar a insegurança constitutiva da existência humana.
Com
as informações anteriores, sabe-se que o homem não é a priori animal racional. A racionalidade passa a ser um modo de
ser que operacionaliza um tipo determinado de existência, qual seja, a
existência decadente, que visa regulamentar os comportamentos e obscurecer a
singularidade humana e o poder-ser que a determina.
In:
Bastos, Aguinaldo de. Ontologia da violência: o enigma da
crueldade / Aguinaldo de Bastos, Alexandre Marques Cabral, Jonas Rezende. –
Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.
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