A boca fala do que o coração tá cheio

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Comida e existência: escolhendo o combustível que me alimentará durante o caminho



Num momento onde se tem observado a indústria da saúde e do bem-estar crescer vertiginosamente – com sua volumosa quantidade de informação disponível para todos os gostos – cabe a nós – indivíduos que, pelo menos três vezes por dia, lançamos para dentro do corpo alimentos que são responsáveis por atualizar nossa vida na Terra – escolher com qual tipo de energia queremos comungar.
Andando por aí, no chão da vida, descobri que a realidade – e o homem, que a ela pertence – não possui uma essência que lhe serve de fundamento. De outro modo, são as relações – os modos como as pessoas e as coisas se configuram em seu processo de interação – que constituem um conjunto de significados responsáveis por fundar o mundo. Ou, em outras palavras, aquilo que entendemos por realidade.  
Nesse sentido, não havendo a existência de um homem universal – ou de um padrão ou modelo de humano que possa ser universalizado e aplicado a todos os homens – há que se entender que a relação do homem com o alimento – se, realmente, quer-se pensar esse homem em termos de sua liberdade – será sempre uma relação pautada por sua singularidade. Portanto, falar de uma alimentação inteligente como uma espécie de dieta universal que deveria ser seguida por todos os homens não me parece lá a opção mais inteligente.
Uma alimentação inteligente, de outra maneira, é justamente aquela que – de modo oposto a essa nossa tendência ocidental racionalista (e violenta) de universalização de nossas experiências – leva em consideração, primariamente, a nossa singularidade. É uma forma de se relacionar com o alimento que se mantém viva e aberta, procurando não delimitar aquilo que se pode (ou deve) ou não comer, mas colocando-se como uma postura de ativa receptividade na dinâmica de abundância da Terra.
Dessa maneira, creio que a principal característica de uma alimentação que se pretenda verdadeiramente inteligente é, justamente, sua abertura proveniente do entendimento de que o ato de comer é um dos muitos modos de nos relacionarmos com a Terra e com a vida. Obviamente, entretanto, essa abertura – como tudo na vida – não é irrestrita. Qual seria, então, o limite?
A resposta é bastante simples: o limite é a própria vida. Sim, explico melhor.
Creio na vida como um processo dinâmico de autorrealização que tem na geração de mais vida seu único propósito. Em termos nietzscheanos, poderia dizer que o grande papel do homem na Terra é a realização de sua vontade de potência. Ou, para não complicar, simplesmente, a realização de sua potência.
Dentro dessa perspectiva, penso que alimentar-me de maneira inteligente é alimentar-me de forma que a relação com o alimento seja uma relação que me auxilie no desenvolvimento da minha potência. Uma alimentação que permita com que meu corpo – essa dádiva por meio da qual interajo com a Terra – mantenha-se como um canal limpo, livre de obstáculos que impeçam ou dificultem o fluxo de energia que por ele passa, constituindo não somente ele próprio, mas, em especial, também o mundo que o cerca.
Sim, isso mesmo. Cada vez tenho mais clara a sensação de identidade entre o meu corpo e o meu mundo. Não é necessário acreditar em mim, nem me apresentar argumentos contrários. Apenas faça a experiência de mudar a alimentação – passar a comer comida no lugar de produto químico – e observe o que ocorre com sua vida “exterior”. Um intestino que retém fezes, entupindo nosso corpo e impedindo o fluxo natural de energia que o constitui, muito dificilmente será capaz de perceber um mundo onde tudo flui em torrentes abundantes de graça. Por outro lado, um organismo por onde a vida flui livremente, certamente conhecerá cada vez mais esse aspecto de generosidade que a vida carrega.
Além disso, penso que uma comida inteligente é uma comida – antes de tudo – sustentável. E, obviamente, sustentabilidade aqui nada tem a ver com a palavra de ordem do momento, que tem proporcionado bolsos cheios e vida confortavelmente insustentável para muita gente. Quando me refiro a alimento sustentável, não falo de alimentos simplesmente produzidos sem a utilização de agrotóxicos, mas que são vendidos a preços altamente especulativos, que só servem para a criação de mais um mercado de luxo totalmente conformado à velha dinâmica do capital. Também não falo daquela fruta ou daquela semente da moda que, importadas de terras extremamente distantes e com características totalmente diversas da minha – e que, portanto, não serve para me atualizar em relação ao espaço em que eu vivo –, acabam se tornando extintas em seus locais de origem, prejudicando a vida daqueles que dela realmente precisam. Do que falo, então?
O alimento sustentável, no meu entendimento, é aquele que está perto de mim. Mais uma vez, simples assim (e mais uma vez, continuo falando de alimento e não de químicas bizarras produzidas para terem sabores incríveis e me tornarem dependente de uma indústria perversa e milionária). Assim, diria que, para mim – morador do Rio de Janeiro nesse início de verão –, não há nada mais inteligente, nesse momento, do que comer manga, por exemplo. A sensação que tenho é que o mundo se transformou numa grande mangueira. É o que a Mãe quer me oferecer agora e aquilo que eu, de braços abertos, sorriso no rosto e água na boca recebo com gratidão.
O caso de um esquimó, entretanto, que vive no inóspito ambiente de terras cobertas por gelo, ou mesmo de alguma comunidade ribeirinha brasileira, cercada pela abundância das águas com seus muitos peixes, penso que já seriam situações completamente distintas e que sugerem outras formas de relacionamento com o meio, que levem em consideração as especificidades daquilo que, gratuitamente – isso é importante –, a natureza oferece. Nos contextos apresentados, por exemplo, não me pareceria razoável sugerir ao esquimó uma dieta à base de manga, nem, tampouco, motivado pela antropomorfização da natureza de que tanto gostam, especialmente, os homens urbanos, sugerir àqueles que identificam suas vidas às águas e à pesca uma alimentação onde o peixe não esteja presente.
Assim, se tivesse que escolher uma palavra para designar um modo de alimentação que julgo inteligente – e a inteligência aqui vai, obviamente, muito além da racionalidade –, creio que falaria de uma alimentação relacional. Relacional como a vida. Seria, nesse sentido, uma alimentação que se percebe não como algo dado, pronto, fechado e encerrado nos muitos conceitos e experiências vividos por outros em suas singularidades, mas uma alimentação que – em consonância com a vida – constitui-se como abertura. Uma alimentação que não apenas me proporcione experiências espirituais fantásticas, mas que, acima de tudo, me torne um ser humano melhor no convívio com os outros. Enfim, uma alimentação que me permita, diariamente, manter-me não apenas biologicamente vivo, mas vivo em toda complexidade do meu ser, permitindo-me, a cada momento, realizar minha potência como humano e sustentar a singularidade do meu próprio caminho. 

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