Num
momento onde se tem observado a indústria da saúde e do bem-estar crescer
vertiginosamente – com sua volumosa quantidade de informação disponível para
todos os gostos – cabe a nós – indivíduos que, pelo menos três vezes por dia,
lançamos para dentro do corpo alimentos que são responsáveis por atualizar
nossa vida na Terra – escolher com qual tipo de energia queremos comungar.
Andando
por aí, no chão da vida, descobri que a realidade – e o homem, que a ela
pertence – não possui uma essência que lhe serve de fundamento. De outro modo, são
as relações – os modos como as pessoas e as coisas se configuram em seu
processo de interação – que constituem um conjunto de significados responsáveis
por fundar o mundo. Ou, em outras palavras, aquilo que entendemos por
realidade.
Nesse
sentido, não havendo a existência de um homem universal – ou de um padrão ou
modelo de humano que possa ser universalizado e aplicado a todos os homens – há
que se entender que a relação do homem com o alimento – se, realmente, quer-se
pensar esse homem em termos de sua liberdade – será sempre uma relação pautada por
sua singularidade. Portanto, falar de uma alimentação inteligente como uma
espécie de dieta universal que deveria ser seguida por todos os homens não me
parece lá a opção mais inteligente.
Uma
alimentação inteligente, de outra maneira, é justamente aquela que – de modo
oposto a essa nossa tendência ocidental racionalista (e violenta) de
universalização de nossas experiências – leva em consideração, primariamente, a
nossa singularidade. É uma forma de se relacionar com o alimento que se mantém
viva e aberta, procurando não delimitar aquilo que se pode (ou deve) ou não
comer, mas colocando-se como uma postura de ativa receptividade na dinâmica de
abundância da Terra.
Dessa
maneira, creio que a principal característica de uma alimentação que se
pretenda verdadeiramente inteligente é, justamente, sua abertura proveniente do
entendimento de que o ato de comer é um dos muitos modos de nos relacionarmos
com a Terra e com a vida. Obviamente, entretanto, essa abertura – como tudo na
vida – não é irrestrita. Qual seria, então, o limite?
A
resposta é bastante simples: o limite é a própria vida. Sim, explico melhor.
Creio
na vida como um processo dinâmico de autorrealização que tem na geração de mais
vida seu único propósito. Em termos nietzscheanos, poderia dizer que o grande
papel do homem na Terra é a realização de sua vontade de potência. Ou, para não
complicar, simplesmente, a realização de sua potência.
Dentro
dessa perspectiva, penso que alimentar-me de maneira inteligente é alimentar-me
de forma que a relação com o alimento seja uma relação que me auxilie no
desenvolvimento da minha potência. Uma alimentação que permita com que meu
corpo – essa dádiva por meio da qual interajo com a Terra – mantenha-se como um
canal limpo, livre de obstáculos que impeçam ou dificultem o fluxo de energia
que por ele passa, constituindo não somente ele próprio, mas, em especial, também
o mundo que o cerca.
Sim,
isso mesmo. Cada vez tenho mais clara a sensação de identidade entre o meu
corpo e o meu mundo. Não é necessário acreditar em mim, nem me apresentar
argumentos contrários. Apenas faça a experiência de mudar a alimentação – passar
a comer comida no lugar de produto químico – e observe o que ocorre com sua
vida “exterior”. Um intestino que retém fezes, entupindo nosso corpo e
impedindo o fluxo natural de energia que o constitui, muito dificilmente será
capaz de perceber um mundo onde tudo flui em torrentes abundantes de graça. Por
outro lado, um organismo por onde a vida flui livremente, certamente conhecerá
cada vez mais esse aspecto de generosidade que a vida carrega.
Além
disso, penso que uma comida inteligente é uma comida – antes de tudo – sustentável.
E, obviamente, sustentabilidade aqui nada tem a ver com a palavra de ordem do
momento, que tem proporcionado bolsos cheios e vida confortavelmente
insustentável para muita gente. Quando me refiro a alimento sustentável, não
falo de alimentos simplesmente produzidos sem a utilização de agrotóxicos, mas
que são vendidos a preços altamente especulativos, que só servem para a criação
de mais um mercado de luxo totalmente conformado à velha dinâmica do capital. Também
não falo daquela fruta ou daquela semente da moda que, importadas de terras
extremamente distantes e com características totalmente diversas da minha – e
que, portanto, não serve para me atualizar em relação ao espaço em que eu vivo
–, acabam se tornando extintas em seus locais de origem, prejudicando a vida
daqueles que dela realmente precisam. Do que falo, então?
O
alimento sustentável, no meu entendimento, é aquele que está perto de mim. Mais
uma vez, simples assim (e mais uma vez, continuo falando de alimento e não de químicas
bizarras produzidas para terem sabores incríveis e me tornarem dependente de
uma indústria perversa e milionária). Assim, diria que, para mim – morador do
Rio de Janeiro nesse início de verão –, não há nada mais inteligente, nesse
momento, do que comer manga, por exemplo. A sensação que tenho é que o mundo se
transformou numa grande mangueira. É o que a Mãe quer me oferecer agora e
aquilo que eu, de braços abertos, sorriso no rosto e água na boca recebo com
gratidão.
O
caso de um esquimó, entretanto, que vive no inóspito ambiente de terras
cobertas por gelo, ou mesmo de alguma comunidade ribeirinha brasileira, cercada
pela abundância das águas com seus muitos peixes, penso que já seriam situações
completamente distintas e que sugerem outras formas de relacionamento com o
meio, que levem em consideração as especificidades daquilo que, gratuitamente –
isso é importante –, a natureza oferece. Nos contextos apresentados, por
exemplo, não me pareceria razoável sugerir ao esquimó uma dieta à base de
manga, nem, tampouco, motivado pela antropomorfização da natureza de que tanto
gostam, especialmente, os homens urbanos, sugerir àqueles que identificam suas
vidas às águas e à pesca uma alimentação onde o peixe não esteja presente.
Assim,
se tivesse que escolher uma palavra para designar um modo de alimentação que
julgo inteligente – e a inteligência aqui vai, obviamente, muito além da
racionalidade –, creio que falaria de uma alimentação relacional. Relacional como a vida. Seria, nesse sentido, uma
alimentação que se percebe não como algo dado, pronto, fechado e encerrado nos
muitos conceitos e experiências vividos por outros em suas singularidades, mas
uma alimentação que – em consonância com a vida – constitui-se como abertura. Uma
alimentação que não apenas me proporcione experiências espirituais fantásticas,
mas que, acima de tudo, me torne um ser humano melhor no convívio com os outros.
Enfim, uma alimentação que me permita, diariamente, manter-me não apenas
biologicamente vivo, mas vivo em toda complexidade do meu ser, permitindo-me, a
cada momento, realizar minha potência como humano e sustentar a singularidade
do meu próprio caminho.
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