“Na situação estudada,
em se tratando de um tipo específico de comportamento desviante, o uso de
tóxicos, proibidos pelas leis, posso remeter o conceito de cultura dominante ao
de cultura oficial, sancionada pelo Estado, expressa em regulamentos e legislação.
Por isso falei em categoria oprimida,
quando me referi ao fato de essas pessoas não poderem exercer plenamente a sua visão
de mundo, tendo que viver permanentemente num certo grau de tensão e
clandestinidade. Aí, mais uma vez, sou levado a relativizar o conceito de
desvio e comportamento desviante. Tendo realizado a pesquisa numa grande metrópole,
numa sociedade estratificada, tive a oportunidade de verificar que os tóxicos
são utilizados e reprimidos de forma bastante diferenciada, basicamente em
função de classe social, estrato ou grupo de status a que pertença o
consumidor. Desta forma, o tóxico não só tem significados diferentes em função
do grupo que o utiliza, como a sua utilização pode ser interpretada por
não-consumidores, acusadores potenciais e autoridades de maneira diferente, provocando
reações particulares.
(...)
Finalmente, sobre
comportamento desviante em geral e uso de tóxicos em particular, tenho a
repetir que o problema tem que ser contextualizado em termos sociológicos.
Embora não estivesse interessado em examinar as propriedades químicas dos
tóxicos, coisa para a qual não estava capacitado, nada que eu tenha visto me
levou a crer que a utilização por si só seja mais destrutiva, maligna, etc. que
o cigarro comum, o álcool ou certos remédios usados regularmente como
tranquilizantes. Não tenho condições também de afirmar que não têm efeitos
negativos se usados a partir de determinada quantidade. Lembro apenas que as
pessoas que usam esses tóxicos passam a conhecê-los empiricamente,
estabelecendo classificações e discriminações, como foi visto neste trabalho. A
partir dessa experiência, critérios são estabelecidos e precauções tomadas. Nos
grupos que tive a oportunidade de observar, não vi nada parecido com um ‘uso
indiscriminado’ de tóxicos, havendo formas internas de controle social e
identificação de desviantes. O tóxico tem que ser compreendido enquanto um
elemento importante, mas não necessariamente determinante, de uma visão de
mundo em que o hedonismo é fundamental. Certamente implica em uma divergência
em relação à cultura dominante, correspondendo a um certo tipo de contestação.
Chamo a atenção para o fato de não se tratar de alguma coisa que esteja fora,
originalmente, do sistema de valores do estrato social de origem, mas sim de
uma agudização de vertentes e dimensões já existentes. Esse entrechoque de
opiniões, pontos de vista e visões de mundo, centrado no problema do
comportamento desviante, corresponde a um momento de importantes transformações
na estratificação social da sociedade brasileira, podendo ter importantes
consequências na distribuição de poder e oportunidade.”
Extraído da tese de doutorado de Gilberto Velho, publicada pela FGV sob o título: Nobres & anjos – Um estudo de tóxicos e hierarquia
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