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quarta-feira, 23 de maio de 2012

Heráclito e o problema do conhecimento


Tradicionalmente, Heráclito é apresentado como o filósofo do devir. Especialmente após a interpretação dada por Platão à teoria do fluxo – que acabou por fornecer os fundamentos para o relativismo de Protágoras e culminou com negação cética da possibilidade do conhecimento e da linguagem –, a filosofia heraclítica passou a ter no conceito de movimento o seu aspecto de maior destaque. Entretanto, a análise conjunta dos diversos fragmentos revela que, apesar de, realmente, a questão do movimento ser colocada de forma enfática, ela não é, de maneira alguma, suficiente para a compreensão do problema do conhecimento na perspectiva do Obscuro.
É fundamental perceber que a filosofia de Heráclito tem como objetivo revelar a harmonia existente entre os opostos. Portanto, a relação existente entre a permanência e o movimento também deve ser entendida dentro dessa perspectiva de combate (pólemos). Nada poderia chegar a ser, senão através de uma luta entre contrários. O combate, nesse sentido, seria, justamente, a unidade desses contrários. Para ilustrar esse pensamento, Heráclito utiliza-se das figuras do arco e da flecha, e das cordas da lira. Assim como no primeiro caso a flecha só poderia ser lançada devido à tensão existente no arco, no segundo também é a tensão das cordas a responsável por produzir o som da lira. Dessa forma, pode-se dizer que o combate heraclítico, apesar de envolver a ideia de harmonia, apresenta essa harmonia com um caráter altamente dinâmico, devendo ser entendida como a tensão existente entre o movimento e o repouso.
É importante ressaltar ainda que Heráclito apresenta o fogo como princípio do devir. Em seu entender, todas as coisas procedem desse fogo eternamente vivo e devem também voltar ao fogo para que possam ressurgir através de um movimento circular de nascimento e destruição. Assim, sendo o mundo devir e o princípio do devir o fogo – onde todas as coisas coincidem –, o todo deveria ser também único.
Heráclito concebe esse fogo, que tudo unifica com inteligência e divindade, como o Logos. Para ele, o testemunho imediato dos sentidos – que, por estarem vinculados aos aspectos contraditórios do real, muitas vezes são incapazes de perceber a unidade presente na discórdia – deveria ser constantemente confrontado com o Logos. Somente assim a unidade poderia aparecer como fruto da discórdia e da oposição entre os contrários. Diferentemente de Platão, a harmonia de que fala Heráclito não tem a ver com a concepção de uma ideia que paira sobre a diversidade conferindo-lhe unidade. A unidade heraclítica, à semelhança da lei que reúne os cidadãos da polis, pode ser entendida como uma lei unificadora que se alimenta do Único que é o Logos.
Assim, o que Heráclito afirmou foi não só a existência de um Logos comum, mas também a capacidade dos homens compreendê-lo. Apesar de não ser um objeto sensível, ele poderia ser alcançado a partir de uma percepção sensível do mundo, visto que este se comporta segundo uma determinada lei ou uma determinada ordenação.

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