A boca fala do que o coração tá cheio

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Filosofia e ciência


A atual distinção entre filosofia e ciência nem sempre foi uma realidade. Durante toda a Antiguidade e Idade Média, os termos poderiam até mesmo ser entendidos como sinônimos. É somente na Modernidade, com a Revolução Científica do século XVII, que esse panorama começa a se modificar.
Nesse contexto, tanto Galileu, quanto Descartes têm importância fundamental no processo. Seus trabalhos procuraram estabelecer métodos, conceitos e objetos de estudo a partir da experimentação e do modelo da linguagem matemática. A grande busca era pela aquisição de um conhecimento objetivo adquirido através da observação das características quantitativas dos objetos. Ficava de fora, portanto, qualquer referência à subjetividade e aos aspectos qualitativos da realidade. Desde então, fazer ciência passou a significar a perseguição de um ideal de objetividade característico da matemática, não da filosofia.
Entretanto, mesmo após a Revolução Científica, é comum encontrar no pensamento de filósofos modernos, como Kant e Hegel, a identificação entre filosofia e ciência. É somente no século XIX e início do século XX, com o surgimento das Ciências Humanas, que a separação se dá de forma mais clara. O positivismo, ao transpor para essas novas ciências o ideal de inteligibilidade em que se assentavam as Ciências da Natureza, teve importância fundamental nesse processo. A partir desse momento, até mesmo o homem, objeto que havia restado à filosofia após a Revolução Científica, passou a ser analisado nos termos do rigor da cientificidade.
Assim, o ideal de ciência moderno se desenvolve numa tentativa de livrar o conhecimento de influências subjetivas, tornando-o neutro. Embora no meio acadêmico pouco se acredite hoje em dia na possibilidade de um conhecimento verdadeiramente neutro – visto que a ciência é feita por homens e, portanto, suscetível a influências sociais, culturais, políticas, econômicas, etc. –, é possível observar com facilidade a difusão dessa ideia no senso comum. Geralmente, a caracterização de algo como científico tem como objetivo provar a veracidade do argumento.
Apesar disso, ironicamente, o objetivo central da ciência moderna nunca foi a busca da verdade, mas o entendimento da realidade. A verdade científica tem como característica intrínseca a provisoriedade, ou seja: uma hipótese deve ser considerada verdadeira, desde que fundamentada, até que outra hipótese demonstre sua falsidade.
 Dessa forma, é importante observar que o avanço tecnológico acabou por criar uma fé dogmática na ciência, constituindo uma contradição dentro da sua própria base de sustentação, tida como provisória. Cabe à filosofia, atualmente, expor e questionar esses dogmas, além, é claro, de propor alternativas aos tradicionais modelos de ciência.

domingo, 27 de maio de 2012

Aristóteles, Coronel Nascimento e a Rio+20






Assim como a Rio+20, também não vim aqui para falar de meio ambiente. Inicialmente pensei em começar esse texto discutindo a conflituosa relação existente entre os pressupostos filosóficos que sustentam algumas teorias econômicas e as recentes tentativas de absorção pelas mesmas de uma maior preocupação em relação aos recursos do planeta.

Desisti. Por dois motivos: primeiro, porque já existe uma quantidade razoável de obras e textos espalhados por aí que abordam a questão; segundo, porque tenho a impressão de que textos desse tipo tendem a se tornar esotéricos demais, atingindo apenas um pequeno grupo de pessoas que, normalmente, já concordam com a gente. Além disso, correria o risco de ser mal interpretado, e cair na armadilha do nosso mundo bipolar, que nada consegue ver além de uma realidade bipartida entre direita e esquerda, ambientalistas e negacionistas, mocinhos e bandidos, e por aí vai. Portanto, resolvi tentar uma via mais universal: o bom senso.

Ainda assim, me acompanham nessa reflexão dois grandes pensadores que, a partir de insights importantes sobre o seu tempo, creio poderem nos serem úteis no sentido de contribuir para a construção de um olhar mais atento sobre os problemas atuais.

O primeiro deles é Aristóteles. A filosofia aristotélica, assim como o pensamento grego como um todo, foi fortemente marcada por aquilo que ficou conhecido como thaumazein: uma atitude de espanto diante de tudo o que é como é. Aristóteles chega mesmo a relacionar a origem da filosofia a essa maneira com que os gregos viam o mundo. “De fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples”, diz o Estagirita em sua Metafísica.

O segundo, embora menos cult, certamente, está bem mais próximo da nossa tão complexa realidade brasileira: Coronel Nascimento, personagem principal do filme Tropa de Elite 2, de José Padilha.

Depois de virar herói nacional no primeiro filme dando tapa na cara de estudante usuário de droga e botando vagabundo no saco, Nascimento teve, na subsecretaria de segurança, um encontro com o mundo da política e passou a conhecer as entranhas daquilo que ele denominava de “o sistema”. Confesso que depois dos Tropas, toda vez que ouço essa palavra, lembro da definição dada pelo 01: “O sistema é uma articulação de interesses escrotos”. Ele vai ainda mais longe e, num tom melancólico que parece querer acreditar, mas que beira um ceticismo, afirma que: “O sistema entrega a mão pra salvar o braço. O sistema se reorganiza, articula novos interesses, cria novas lideranças.” Por fim, sua conclusão é que “o sistema é foda” e que “ainda vai morrer muito inocente”.

Trazidas essas duas contribuições, acho que já temos subsídios suficientes para falar sobre a Rio+20 sem ter que ficarmos presos a cientificismos.

Assim, a primeira questão que surge é: o que vem a ser essa tal de Rio+20?

Segundo os organizadores, o evento marca os vinte anos de realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92), e tem como objetivo contribuir para definir a agenda do desenvolvimento sustentável para as próximas décadas. Os temas centrais serão: a economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza; e a estrutura institucional para o desenvolvimento sustentável. 

Mas que negócio é esse de economia verde e desenvolvimento sustentável?

Como já disse, e repeti, quero fugir de um tipo de reflexão que, de tão abstrata, perde completamente qualquer ponto de contato com a realidade. Portanto, sigamos simplesmente exercitando nossa capacidade de observar a realidade e confrontá-la com os discursos correspondentes.

No senso comum, me parece que a ideia de desenvolvimento sustentável está ligada às recentes preocupações ambientais em relação ao futuro do planeta. A descoberta, relativamente tarde, de que os recursos naturais não são infinitos fez com que diversos setores da economia passassem a incluir em suas agendas o cuidado com o meio ambiente. Dessa forma, uma megacorporação financeira, como um banco, por exemplo, que se insere nessa perspectiva colorida de economia, já não pode mais operar da mesma forma que antes. O banqueiro verde é um homem moderno e consciente. Ao invés de enviar cartas a seus clientes, prefere usar o e-mail, visto que a tradicional produção de papel é uma atividade altamente degradante; em último caso, quando é estritamente necessário, só o papel reciclado ou oriundo de áreas de reflorestamento é utilizado.

Estranho... mas prossigamos com a Rio+20. Quem, então, pode participar desse fórum que discorrerá sobre o destino do planeta?

Segundo as informações dadas pela ONU, o evento destina-se a todos: chefes de governo dos Estados-membros, organizações civis registradas na entidade e também indivíduos, através do envio de sugestões por e-mail. Em português mais claro: quase ninguém. Coincidentemente, de forma paralela à realização da Rio+20, teremos a reunião dos movimentos sociais do mundo inteiro na Cúpula dos Povos discutindo adivinha o quê: os mesmos problemas do mesmo planeta!

Ué, agora não entendi de vez, você deve estar pensando. Qual é o sentido de um evento que acontece dentro do outro pra discutir os problemas que o evento principal já promete tratar? Além disso, por que os movimentos sociais de um lado e os chefes de Estado do outro? A causa não é a mesma? Não seria melhor o diálogo aberto e a união de esforços? Se apenas uma dessas perguntas passou pela sua cabeça, é um ótimo sinal.

Disse, ainda, anteriormente, que a Rio+20 marca os 20 anos da Rio-92, evento em que essas mesmas “pessoas-instituições” se reuniram na década de 90 para tratar, basicamente, as mesmas questões que serão abordadas esse ano. Sendo assim, é fundamental dar uma olhada no que aconteceu de lá para cá.

Nesse sentido, até onde tenho percebido, se o conceito de desenvolvimento sustentável utilizado em 92 foi colocado em prática, só tenho duas conclusões possíveis a chegar: ou ele é falacioso em si mesmo, ou alguma coisa no momento de sua aplicação deu muito errado.

Optar pela primeira alternativa me remete, invariavelmente, ao ceticismo do Nascimento, e é, de fato, a posição defendida por muitos: a economia verde é um grande engodo e só atende aos interesses daquele que a tudo domina – o lucro. Assim como no filme de Padilha, aqui também o sistema estaria apenas cedendo a mão para salvar o braço. Através de um forte marketing verde lançado sobre estruturas de produção conservadoras, ele vai apenas se remodelando e se ajusta às novas necessidades do mercado.

Entretanto, se escolho a segunda opção, assumo o risco de estar sendo romântico ou até mesmo utópico. Ainda assim, penso, como Aristóteles, que o caminho da vida feliz passa pela justa medida. Mesmo que não alcance certezas conclusivas, acredito que a simples mudança do olhar em relação às coisas que nos cercam – com espanto e maravilhamento diante de tudo aquilo que diariamente nos é apresentado como óbvio – tem um grande poder de mover transformações profundas e necessárias, se não a nível global, pelo menos em um sentido existencial – que a meu ver, inclusive, é o mais importante.

Seja como for, o fato é que, do ponto de vista da sustentabilidade, o mundo em 2012 pouco difere do mundo de 1992. Continuamos a ser uma sociedade que tem como único pilar de sustentação a contradição. Conseguimos não só produzir um mundo onde sobra alimento e pessoas morrem de fome, como passamos a enxergar coisas desse tipo com naturalidade. Especialmente, um mundo que se apresenta como a única opção viável, a despeito de sua gritante inviabilidade. Um mundo que trata com austeridade e força aqueles que se manifestam contrários aos valores predominantes. Enfim, um mundo completamente insustentável.

Dessa forma, sou obrigado a confessar que minhas expectativas em relação à Rio+20 são mínimas. Ao que todas as evidências indicam, ela será apenas mais um megaevento que provocará efervescência na economia carioca. Um megaevento verde, é claro, vale ressaltar. Por outro lado, entretanto, admito que não se pode deixar passar essa rica oportunidade que surge paralelamente no interior da sociedade civil de desenvolver um diálogo realmente construtivo.

Afinal, já passou da hora de colocarmos as cartas na mesa e decidirmos, com honestidade, que tipo de relações e valores deve predominar num mundo que pretenda, verdadeiramente, ser um ambiente saudável de coexistência.














quarta-feira, 23 de maio de 2012

Heráclito e o problema do conhecimento


Tradicionalmente, Heráclito é apresentado como o filósofo do devir. Especialmente após a interpretação dada por Platão à teoria do fluxo – que acabou por fornecer os fundamentos para o relativismo de Protágoras e culminou com negação cética da possibilidade do conhecimento e da linguagem –, a filosofia heraclítica passou a ter no conceito de movimento o seu aspecto de maior destaque. Entretanto, a análise conjunta dos diversos fragmentos revela que, apesar de, realmente, a questão do movimento ser colocada de forma enfática, ela não é, de maneira alguma, suficiente para a compreensão do problema do conhecimento na perspectiva do Obscuro.
É fundamental perceber que a filosofia de Heráclito tem como objetivo revelar a harmonia existente entre os opostos. Portanto, a relação existente entre a permanência e o movimento também deve ser entendida dentro dessa perspectiva de combate (pólemos). Nada poderia chegar a ser, senão através de uma luta entre contrários. O combate, nesse sentido, seria, justamente, a unidade desses contrários. Para ilustrar esse pensamento, Heráclito utiliza-se das figuras do arco e da flecha, e das cordas da lira. Assim como no primeiro caso a flecha só poderia ser lançada devido à tensão existente no arco, no segundo também é a tensão das cordas a responsável por produzir o som da lira. Dessa forma, pode-se dizer que o combate heraclítico, apesar de envolver a ideia de harmonia, apresenta essa harmonia com um caráter altamente dinâmico, devendo ser entendida como a tensão existente entre o movimento e o repouso.
É importante ressaltar ainda que Heráclito apresenta o fogo como princípio do devir. Em seu entender, todas as coisas procedem desse fogo eternamente vivo e devem também voltar ao fogo para que possam ressurgir através de um movimento circular de nascimento e destruição. Assim, sendo o mundo devir e o princípio do devir o fogo – onde todas as coisas coincidem –, o todo deveria ser também único.
Heráclito concebe esse fogo, que tudo unifica com inteligência e divindade, como o Logos. Para ele, o testemunho imediato dos sentidos – que, por estarem vinculados aos aspectos contraditórios do real, muitas vezes são incapazes de perceber a unidade presente na discórdia – deveria ser constantemente confrontado com o Logos. Somente assim a unidade poderia aparecer como fruto da discórdia e da oposição entre os contrários. Diferentemente de Platão, a harmonia de que fala Heráclito não tem a ver com a concepção de uma ideia que paira sobre a diversidade conferindo-lhe unidade. A unidade heraclítica, à semelhança da lei que reúne os cidadãos da polis, pode ser entendida como uma lei unificadora que se alimenta do Único que é o Logos.
Assim, o que Heráclito afirmou foi não só a existência de um Logos comum, mas também a capacidade dos homens compreendê-lo. Apesar de não ser um objeto sensível, ele poderia ser alcançado a partir de uma percepção sensível do mundo, visto que este se comporta segundo uma determinada lei ou uma determinada ordenação.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O filosofar e a história da filosofia


Do ponto de vista histórico, pode-se dizer que a filosofia é uma reflexão autônoma sobre o vínculo existente entre as teorias e as práticas humanas, e tem como finalidade a constituição de um quadro complexo da historicidade, através dos sentidos que se constroem nessas diferentes relações. Assim, à historia da filosofia cabe a missão de investigar as contradições que muitas vezes envolvem essa complicada indissociabilidade entre teoria e práxis.
A importância da história da filosofia para o estudo da filosofia reside no fato de que a filosofia é, em si mesma, histórica. Essa historicidade tem o sentido não apenas da filosofia ser um produto histórico configurado nas teorias que se sucedem, mas, especialmente, dela ser uma elaboração histórica da presença do espírito objetivo a si mesmo. Nesse sentido, é possível afirmar que a própria historicidade humana só existe pelo testemunho da consciência reflexiva.
Além disso, estudar história da filosofia é essencial para o filósofo porque, ao se deparar com o enraizamento histórico das diversas filosofias, o seu próprio enraizamento histórico é exposto. E, como o filosofar é algo que só se faz no presente, é preciso que a reconstituição de uma filosofia do passado seja também uma indagação sobre como o filósofo interpretou o seu tempo. Isso permite que a filosofia preserve seu caráter questionador, compreendendo que seu objetivo maior não é oferecer respostas definitivas, mas, antes, elaborar novas perguntas.
A própria construção do pensamento se dá a partir da significação que o passado assume para um determinado momento do presente. Os fatos relativos ao passado e ao presente não são independentes de sua relação com o sujeito histórico, mas são, antes de tudo, significações e valores produzidos por uma certa visão do presente e do passado, e até mesmo por uma expectativa de futuro. Nesse sentido, o desenvolvimento do pensamento filosófico só se tornou e se torna possível porque os filósofos não consideram o que foi pensado por seus predecessores como fatos, mas como construções significativas e valorativas deixadas pelo passado e, enquanto tais, suscetíveis a serem retomadas a partir de novas possibilidades em termos de significações e valores. 

quinta-feira, 17 de maio de 2012

O que Gilberto Velho já falava sobre drogas em 1975




“Na situação estudada, em se tratando de um tipo específico de comportamento desviante, o uso de tóxicos, proibidos pelas leis, posso remeter o conceito de cultura dominante ao de cultura oficial, sancionada pelo Estado, expressa em regulamentos e legislação. Por isso falei em categoria oprimida, quando me referi ao fato de essas pessoas não poderem exercer plenamente a sua visão de mundo, tendo que viver permanentemente num certo grau de tensão e clandestinidade. Aí, mais uma vez, sou levado a relativizar o conceito de desvio e comportamento desviante. Tendo realizado a pesquisa numa grande metrópole, numa sociedade estratificada, tive a oportunidade de verificar que os tóxicos são utilizados e reprimidos de forma bastante diferenciada, basicamente em função de classe social, estrato ou grupo de status a que pertença o consumidor. Desta forma, o tóxico não só tem significados diferentes em função do grupo que o utiliza, como a sua utilização pode ser interpretada por não-consumidores, acusadores potenciais e autoridades de maneira diferente, provocando reações particulares.

(...)

Finalmente, sobre comportamento desviante em geral e uso de tóxicos em particular, tenho a repetir que o problema tem que ser contextualizado em termos sociológicos. Embora não estivesse interessado em examinar as propriedades químicas dos tóxicos, coisa para a qual não estava capacitado, nada que eu tenha visto me levou a crer que a utilização por si só seja mais destrutiva, maligna, etc. que o cigarro comum, o álcool ou certos remédios usados regularmente como tranquilizantes. Não tenho condições também de afirmar que não têm efeitos negativos se usados a partir de determinada quantidade. Lembro apenas que as pessoas que usam esses tóxicos passam a conhecê-los empiricamente, estabelecendo classificações e discriminações, como foi visto neste trabalho. A partir dessa experiência, critérios são estabelecidos e precauções tomadas. Nos grupos que tive a oportunidade de observar, não vi nada parecido com um ‘uso indiscriminado’ de tóxicos, havendo formas internas de controle social e identificação de desviantes. O tóxico tem que ser compreendido enquanto um elemento importante, mas não necessariamente determinante, de uma visão de mundo em que o hedonismo é fundamental. Certamente implica em uma divergência em relação à cultura dominante, correspondendo a um certo tipo de contestação. Chamo a atenção para o fato de não se tratar de alguma coisa que esteja fora, originalmente, do sistema de valores do estrato social de origem, mas sim de uma agudização de vertentes e dimensões já existentes. Esse entrechoque de opiniões, pontos de vista e visões de mundo, centrado no problema do comportamento desviante, corresponde a um momento de importantes transformações na estratificação social da sociedade brasileira, podendo ter importantes consequências na distribuição de poder e oportunidade.”

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Drogas e subjetividade


“Os usuário regulares aprendem a experimentar o ‘barato’, e esse processo de aprendizagem teria consequências fisiológicas. Em outras palavras, os níveis subjetivo e fisiológico estão estreitamente inter-relacionados, e os usuários, no processo de alcançar o ‘barato’, produzem transformações no seu próprio metabolismo. Essa noção está próxima da reação traumática clássica no indivíduo, onde ele sofre subjetivamente  medo, e esse medo se traduz, no nível fisiológico, em descarga de adrenalina no seu fluxo sanguíneo. Medo é um processo socialmente definido, onde o estado subjetivo do indivíduo afeta o seu metabolismo e, mais ainda, o medo, como ‘barato’, é experimentado pelo indivíduo como um estado subjetivo que é automaticamente substanciado no nível corpóreo. Mas isso, com certeza, é apenas metade do processo. As drogas, por sua própria natureza, afetam o metabolismo do indivíduo, mas os modos pelos quais o indivíduo interpreta essas mudanças no seu organismo relacionam-se a suas próprias noções subjetivas do que está acontecendo com ele. O que estou afirmando é que ocorre, no uso de drogas, um processo bidirecional: a droga altera o metabolismo do indivíduo, ele interpreta essas mudanças orgânicas em experiências subjetivas, reage de acordo com essas experiências e transforma o metabolismo já alterado. Em resumo, a experiência de drogas só pode ser compreendida em termos de uma dialética constante entre o estado subjetivo do indivíduo e os efeitos psicotrópicos objetivos da droga.” 

Jock Young (The drugtakers: the social meaning of drug use)

Aprendendo a viver - Clarice Lispector



     Thoreau era um filósofo americano que, entre outras coisas mais difìceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.
     Thoreau , por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos só pouparem e economizarem para um futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas "melhore o momento presente", exclamava. E acrescentava: "Estamos vivos agora." E comentava com desgosto: "Eles ficam juntando tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões roubar.
     A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras   é que você existe.
     Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.
     Ele queria que fizéssemos agora o que queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou e praticou a necessidade de fazer agora o que é mais importante para cada um de nós.
     Por exemplo: para os jovens que queriam tornar-se escritores mas que contemporizavam - ou esperando uma inspiração ou se dizendo que não tinham tempo por causa de estudos ou trabalhos - ele mandava ir agora para o quarto e começar a escrever.
     Impacientava-se também com os que gastam tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver. "É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a saber."
     E dizia esta coisa forte que nos enche de coragem: " Por que não deixamos penetrar a torrente, abrimos os portões  e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?" Só em pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade percorrer-me o corpo. Agora, meus amigos, está sendo neste próprio instante.
     Thoreau achava que o medo era a causa da ruína dos nossos momentos presentes. E também as assustadoras opiniões que nós temos de nós mesmos. Dizia ele: "A opinião pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos." É verdade: mesmos as pessoas cheias de segurança aparente julgam-se tão mal que no fundo estão alarmadas. E isso, na opinião de Thoreau, é grave, pois "o que um homem pensa a respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino".
     E, por mais inesperado que isso seja, ele dizia: tenha pena de si mesmo. Isso quando se levava uma vida de desespero passivo. Ele então aconselhava um pouco menos de dureza para com eles próprios. O medo faz, segundo ele, ter-se uma covardia desnecessária. Nesse caso, devia-se abrandar o julgamento de si próprio. "Creio", escreveu, " que podemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos. A natureza adapta-se tão bem à nossa fraqueza quanto à nossa força." E repetia mil vezes aos que complicavam inutilmente as coisas - e quem de nós  não faz isso? -, como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as coisas: simplifique! simplifique!
     E um dia desses, abrindo um jornal e lendo um artigo de um nome de homem que infelizmente esqueci, deparei com citações de Bernanos que na verdade vem complementar Thoreau, mesmo que aquele jamais tenha lido este.
     Em determinado ponto do artigo (só recortei esse trecho) o autor fala que a marca de Bernanos estava na veemência com que nunca cessou de denunciar a impostura do "mundo livre". Além disso, procurava a salvação pelo risco - sem o qual a vida para ele não valia a pena - " e não pelo encolhimento senil, que não é só dos velhos, é de todos os que defendem as suas posições, inclusive ideológicas, inclusive religiosas" (o grifo é meu).
     Para Bernanos, dizia o artigo, o maior pecado sobre a terra era a avareza, sob todas as formas. "A avareza e o tédio danam o mundo." "Dois ramos, enfim, do egoísmo", acrescenta o autor do artigo.
     Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena!
     Feliz Ano novo.