A boca fala do que o coração tá cheio

terça-feira, 3 de março de 2015

Casamento (II)



No entre do encontro
A latência manifesta
É como a festa da potência
Que no dar-se ao outro
Recebe como troco
O ouro de si mesmo

Na ação da relação
O um se abre ao dois
Dois se tornam Um
Unidos 
Contemplam o alvorecer e o florescer
Do melhor de cada ser

Uma ciranda de delícias
Onde opostos não se opõem
Mas no perfeito encaixe da engrenagem
Gira livre o mais profundo
Descortinando a cada passo
Mistérios do ir junto

Bendito seja o homem
Que topando em seu destino
Não contente com a metade
Lançou-se por inteiro
No penhasco do Amor
Abismo da alteridade








segunda-feira, 2 de março de 2015

O corpo


Morada dos deuses e demônios
Rio da alma
Onde corre e ocorre o oculto

Por ele escorrem a dor e a lágrima
Nele dançam suor e alegria

Vibra ao som de nossas águas
Imerso no mar das sutilezas
E ao firme toque do tambor
Precipita-se em movimento

De cima a  baixo relampeja
Da terra ao céu ouvem-se as luzes
Sobe e desce a ardente chama
No desenho infinito da serpente

Amigo das alturas
Abrigo das profundezas
Ocaso do manifesto
Salve o corpo!
Vivam os pés que tocam o chão!

Louvado seja o pó da terra
Louvado o torno eterno da existência
Mão que molda o barro no Amor
Tornando o criado 
Criador








quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O que a escola e a caserna têm em comum

Quem me conhece há mais tempo sabe das minhas muitas peripécias acadêmico-profissionais até, finalmente, conseguir o tão valorizado pedaço de papel que, hoje, me legitima como “alguém na vida”. Tendo estudado em Colégio Militar, durante muito tempo acreditei, inclusive, que o grande sonho da minha vida seria seguir carreira. E lá fui eu.

            Entretanto, se você chegou na minha vida há menos tempo e me conheceu ontem, já tem condições de imaginar que a ideia não deu lá muito certo. Em pouco tempo pedi as contas e segui minha estrada. Não posso negar – e não nego –, contudo, que todo esse período de convívio com os militares, somando o tempo de colégio e esse pouco tempo de formação, me ensinou muitas coisas.

            Lembro-me, por exemplo, que quando estava pedindo desligamento da Academia Militar, um dos muitos amigos que tentou dissuadir-me da ideia, virou-se para mim e disse: “Eu te entendo, cara. Mas não precisa ir embora. Tem que ter jogo de cintura. Aprende uma coisa: Se todo mundo remar pra trás, o barco também anda”.

            Obviamente, não mudei de ideia e mantive meu caminho. Mas, de fato, nunca esqueci as palavras dele. E lá se vão mais de 10 anos. Aliás, diria que, hoje, como professor do Estado, convivendo e conhecendo os bastidores da educação pública, a máxima daquele intendente orgulhoso de sua malandragem nunca fez tanto sentido.

            A escola é, talvez, a melhor representação social daquele barco de que falava meu amigo. O professor nada mais é que aquele aluno que realizou o sonho de voltar para a escola, só que, agora, sabendo como as coisas realmente são. E, como bom aluno que é, também não gosta de aula. Assim como o aluno fará o máximo para não assisti-las, o professor, legitimado no seu discurso político – isso é importante para não dar aquele ar de vagabundagem, que não pega bem –, fará o que puder para não ter que dá-las.

            Até aí, nenhum problema. Afinal, não creio que, em 2015, ainda haja tanta gente acreditando que aula seja algo, assim, tão importante. A questão é que, apesar de estarem juntos no mesmo barco, remando para trás, continuam a comportar-se como se inimigos fossem, deixando-se vencer pela correnteza.

            Infelizmente, enquanto a educação estiver subordinada à política – e política aqui não no sentido filosófico clássico, mas no sentido real-existencial-brasileiro de um jogo de interesses anti-políticos –, a escola nunca será um ambiente de trocas interpessoais com vistas à formação e ao desenvolvimento integral de indivíduos, mas permanecerá como arena de combate.

            Não espero do Estado uma solução para essa dinâmica. Foi ele que a criou e não será ele, obviamente, que irá resolvê-la. A solução para a questão da educação, portanto, está nas mãos de alunos e professores. Somos nós quem fazemos a educação. Se formos francos – conosco mesmos, acima de tudo –, teremos que assumir essa responsabilidade.

            Os mais comunistas, certamente, desejarão me agredir nesse momento, mas, indo de encontro ao discurso corrente daqueles que lutam pela a educação, creio que a educação precisa ser despolitizada. Se educar é conviver, o verdadeiro propósito da educação jamais poderá ser realizado por intermédio de uma instituição que não tenha a convivência entre seres humanos como prioridade.

            Contudo, penso que, afastando-se dessas batalhas politiqueiras encrustradas no ideário do funcionalismo público, a escola, paradoxalmente, tem tudo para, transcendendo sua institucionalidade, transformar-se no epicentro de uma nova-antiga forma de fazer política, onde as relações entre os cidadãos não poderão mais ser subjugadas pela desumanidade e pela frieza de instituições despersonalizadas.

            A hora é de assumirmos nosso caminho e decidirmos, com honestidade, em que mundo queremos viver. Decidir que escola eu quero ser. Se queremos ficar nos reunindo para comer cream cracker e reclamar da vida, esperando pela aposentadoria, ou se, quem sabe, preferimos um destino um pouco mais interessante. O tempo de esperar que o outro – seja ele o Estado, Deus ou o Chapolin Colorado – faça algo por nós acabou.

Que saibamos fazer boas escolhas. Nossos filhos agradecerão.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

E o Amor se fez carne...

No princípio era o verbo, o verbo estava com Deus e o verbo era Deus. Mas, como o Deus Amor nunca foi, de fato, uma ideia ou um conceito filosófico grego, o logos não o pode suportar por muito tempo e o derramou na existência. O Amor, assim, se fez carne...

            O nascimento de Jesus não nos fala, portanto, da fundação de uma nova religião ou da formação de um novo pensamento cultural. A boa nova que o caminhar do filho do homem sobre a terra nos traz é de natureza muito mais simples e profunda: o Amor se realiza entre os homens no sagrado chão da existência.

            Ironicamente, muito antes de Nietzsche, o próprio Cristo já havia – nele mesmo – realizado a inversão da metafísica tradicional. Num movimento de transcendência às avessas, mergulhando na imanência da terra e do corpo, verbo e sujeito fundiram-se num casamento, tornando-se, literalmente, uma só carne.

            Agradar seus interlocutores nunca foi sua prioridade. Comprometido com sua potência divina, era, por muitas vezes, duro e rigoroso com os comportamentos que iam de encontro não às leis da vida – que os judeus tinham muitas, diga-se de passagem –, mas à Vida das leis. Conectado e sintonizado ao verdadeiro espírito da lei, caminhou em liberdade, tudo cumprindo, sem, contudo, ser subjugado por coisa alguma.

            Amigo das festas, dos vagabundos e de toda a pilantragem, comeu e bebeu – a ponto de ser chamado de comilão e beberrão – com ladrões e prostitutas. Recebeu e acolheu esse mundo de tal maneira que o mundo não foi capaz de suportá-lo, enviando-o para a morte na cruz. Morte, aliás, sobre a qual triunfou e sobre a qual nos ensinou.

            O nascimento de Jesus, comemorado nesse dia, é, certamente, muito mais do que a celebração de um mero legado do cristianismo. É a celebração da própria humanidade e da certeza de que o Reino de Deus não é uma meta espiritual a ser alcançada, mas uma realidade que já está em – e entre – nós.

            Assim é que, nesse Natal – momento em que, independente da correspondência ao fato histórico do nascimento de Jesus, milhões de pessoas ao redor do mundo estão vibrando juntas numa mesma intenção – meu desejo sincero é de seguir na trilha deixada pelas pegadas do nazareno. Não seguir os passos do judeu que, há 2000 anos, andou pela Galiléia operando sinais e prodígios. Não tenho a menor pretensão de imitar ou ser como Jesus. Por um motivo óbvio: não sou Jesus. Sou Rodrigo! Essa seria, talvez, a maior traição aos seus ensinamentos.

            De outra forma, minha oração é que, a cada dia, o Natal se faça em mim, realizando o nascimento e o crescimento da consciência crística em meio ao caminhar entre os homens. Para que assim como o beija-flor realiza sua essência quando está junto à sua flor, fazendo aquilo para o que foi criado, também eu – que tenho em mim tanto o Cristo, quanto o beija-flor! – possa experimentar a expressão do meu ser em toda sua plenitude.

Que nossos cristos, flores e beija-flores interiores vivam em todos nós!

Feliz Natal!

domingo, 7 de dezembro de 2014

Notícias de uma escola pública

Quem faz a escola é o aluno. Mentira. Das brabas. Se assim o fosse, a escola certamente, seria um ambiente bem diferente do que é.  Esse tipo de discurso, infelizmente, não passa de uma artimanha desonesta que intenta transferir o ônus da responsabilidade do fracasso de um sistema educacional estruturalmente desumano, uma vez mais, para os mais vulneráveis.
Durante algum tempo da minha vida, tive um interesse muito grande nas questões relacionadas à segurança pública. Especialmente, em relação àquilo que dizia respeito à questão das drogas. Não que eu ache que as drogas sejam, de fato, uma questão de segurança pública. Mas, bizarramente, essa ainda é a nossa realidade.
E lembro-me que um dos primeiros contatos que tive com o tema, que me levou a despertar um olhar mais crítico e mais curioso para o assunto, foi através do documentário Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Salles. Nele, o então capitão do BOPE – e atual garoto propaganda da Rede Globo – Rodrigo Pimentel falava sobre o trabalho de enxugar gelo realizado pela polícia, matando traficantes e apreendendo armas e munições sem que nada de mais radical fosse feito nas engrenagens que sustentavam – e sustentam – de maneira mais sólida o comércio ilegal de drogas. Segundo ele, policiais e traficantes, alienados – muitas vezes de maneira consciente, diga-se de passagem! – de uma percepção mais ampla do sistema político – e econômico, acima de tudo! – que deles se alimenta, engalfinham-se numa guerra que acaba por transformar-se numa guerra particular, onde a sobrevivência cotidiana é a única coisa que realmente importa.
Certamente, não foi à toa que as imagens desse documentário vieram visitar minha mente essa semana. Quem tem qualquer relação com a escola, seja como professor ou como aluno, sabe que a realidade ali vivida, na maior parte das vezes, pouco se diferencia do que relatou o ex-policial em sua fala. Professores e alunos, movidos pelo desespero da sobrevivência e das exigências de uma sociedade que exclui peremptoriamente os que não se adequam aos seus ditames, esquecem-se de que estão ambos servindo a interesses nada nobres e inserem-se numa dinâmica onde passam a se comportar como se inimigos fossem, percebendo a presença do outro não mais como uma possibilidade de troca e aprendizado para ambos – que constituiria a própria ideia de educação –, mas como uma ameaça constante.
E creio que nenhum outro lugar expressa tão bem o desequilíbrio dessa relação patológica quanto a sala de professores. Um lugar que, a priori, deveria ser um polo irradiador de conhecimento, criatividade e, antes de tudo, amor, mas que, paradoxalmente, por inúmeros motivos legítimos, quase sempre assume as características de um quartel general. Frequentar esse recinto é, mais do que uma experiência filosófica, uma experiência terapêutica.
Ali pulula à flor da pele toda sorte de neuroses e medos humanos. Refugiado em sua trincheira, o professor encontra abrigo junto aos seus para recompor as suas forças e preparar-se para as novas investidas. E, como guerra não se faz sem a pressuposição de que o outro, sendo menos legítimo em sua existência, deve ser subjugado, sua principal arma é a repetição do discurso de poder que desqualifica seu inimigo número um: o aluno não quer nada. Assim, parece que todas as questões se resolvem e podemos seguir em paz a nossa vida.
Protegendo-se do verdadeiro confronto com sua incapacidade de perceber a impermanência de um mundo que se atualiza a todo momento e com sua dificuldade de se inserir como designer dessas novas estruturas que vão se desenhando, boa parte dos professores não consegue vislumbrar que sua atitude emocional (sim, como seres livres que somos, em alguma instância, pelo menos, somos responsáveis também pelo que sentimos!) perante o quadro que se apresenta termina sendo o – ou, pelo menos, mais um – elemento conservador das engrenagens que nos aprisionam e que tanto criticamos.
O fato é que, percebendo ou não, o mundo está passando por uma série de rápidas transformações. Transformações paradigmáticas. Nesse sentido, creio que não só será impossível a educação não ser atingida – como já está sendo! – pela energia desse novo tempo, como será, ela mesma, o grande cerne e a força motriz de geração desse novo mundo.
Por isso, a crise da educação e seu falido modelo “escolástico” não me assustam. Analogamente ao que Marx pensou em relação à expansão e aprofundamento do capitalismo como base para uma virada socialista – não, não sou marxista, de esquerda, direita ou qualquer outra tribo político-religiosa –, acredito que o fundo do poço em que se encontra a educação em nosso país, para além de todos os males reais, traz em si um potencial de transformação muito grande. Não temos para onde ir. E, quando chegamos nesse ponto, tomar outra direção já não é mais uma opção. É um imperativo.
Assim, meu desejo é que as muitas salas de professores espalhadas por esse Brasil possam, deixando de ser palco de futilidades e, especialmente, de discursos de ódio e separação, assumir esse papel revolucionário. Enquanto o professor não se perceber como aluno e não se enxergar no aluno, enxergando-o também como professor, nessa unidade indissolúvel que somos, não haverá espaço para uma real educação. Infelizmente, por algum motivo, criamos uma cultura onde acreditamos piamente na figura do professor como aquele que fala, transmitindo conhecimento e na figura do aluno como aquele que ouve, absorvendo o conteúdo. Porém, mais sábio que aquele que aprende conhecimento dos livros e os transmite é o professor que aprende a ler seus alunos.
Já passou da hora de deixarmos para trás o conforto da ingenuidade e encararmos o que todos sabemos: a mudança não virá daqueles que se nutrem do sistema. Nós somos a mudança. E toda mudança começa com um novo olhar. Apesar de todo seu moralismo, não podemos negar que Paulo de Tarso – o fariseu que teve com Cristo uma experiência mística – deixou-nos como legado algumas preciosidades. Em sua carta aos romanos, por exemplo, brindou-nos com a beleza desse ensinamento: Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente. Ele sabia que a transformação do mundo começa não nas estruturas exteriores às quais estamos submetidos, mas no interior de cada um, através das mudanças de percepção.
Portanto, deixando para trás todo espírito de separatividade e fragmentação que nos aliena, sigamos, num só passo junto aos alunos, em amor, por amor e para o amor. Afinal, convenhamos, educar não é nada muito além do que amar. 

domingo, 2 de novembro de 2014

Gira


Gira roda
Gira vida
Gira!

Gira o giro do universo
Gira ciranda da delícia
Giro líquido
Caldo de beleza

Vive a natureza
Ri toda a existência
Com pura alegria
Que transpõe qualquer sentido

Gira além de mim
Gira a própria perfeição
Onde tudo corre bem
Derrete o coração

Gira tudo o que for
Gira além de toda dor
Gira na doçura do amor!

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Assim falou Seu Tranca-Ruas


Tenho pensado muito na filosofia de Nietzsche ultimamente. Para quem alimenta o ser com pensamentos, até aí nada demais. Um a mais, um a menos nem sempre quer dizer lá muita coisa. Um fato, entretanto, começou a me chamar atenção: tão logo me pegava imerso nas ideias do bigodudo alemão, quem aparecia na minha mente para ilustrar a história não era o filósofo. Imponente e com sarcasmo estampado no rosto, lá sorria ele: Seu Tranca-Ruas.

Cheguei a lamentar, pensando: uma pena Nietzsche não ter tido contato com alguma tradição religiosa de matriz africana. A força da terra evocada por essas culturas era a mesma cultivada por ele em sua crítica ferrenha à metafísica ocidental. O negro, ao invés de fugir do mundo para encontrar Deus num céu idealizado, preferiu trazer seus Deuses à terra e, aqui, pisando forte no chão, dançou com todos eles. Se era um Deus que dança que ele procurava, certamente, o teria encontrado se, em vez de nas frias terras da Alemanha, tivesse caminhado pelas ladeiras da Bahia.

O fato é que essa linha cruzada mental me fez ver que há muito mais de Seu Tranca no pensamento de Nietzsche do que algum dia já pôde supor minha vã filosofia. A energia de Exu, expressa na quebra dos padrões e modelos bem definidos, na subversão da ordem estabelecida e na superação da dicotomia moral é o próprio espírito condutor de toda a obra nietzscheana.

Para o alemão, a existência  está acima do bem e do mal e o homem superior deve ser movido não pela moral e pelos valores socialmente construídos, mas por sua vontade de poder. Como resultado de forças que atuam em seu interior - numa constante batalha entre o espírito apolíneo e dionisíaco -, o homem livre se diferencia do homem do rebanho, justamente, pela ênfase dionisíaca com que conduz sua vida, dizendo constantemente sim a ela e à sua criatividade geradora. Nada mais exúdico.

O clássico e belíssimo trecho do Zaratustra, intitulado "Desprezadores do corpo", expressa, talvez como nenhum outro, a força dessa energia telúrica advinda dos Exus. Dignificando o corpo e a realidade terrena, Nietzsche rejeita todo transcendentalismo e integra, de maneira magistral, todos os aspectos que até então haviam sido tratados com desdém pelo pensamento metafísico ocidental.

"Quero dizer a minha palavra aos desprezadores do corpo. Não devem, a meu ver, mudar o que aprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeus ao seu corpo – e, destarte, emudecer. 

‘Eu não sou corpo e alma’ – assim fala a criança. E por que não se deveria falar como as crianças?
Mas o homem já desperto, o sabedor, diz: ‘Eu sou todo corpo e nada além disso; e alma é somente uma palavra para alguma coisa do corpo’. 

O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. 

Instrumento de teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas ‘espírito’, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão. 

‘Eu’, dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior, no que não queres acreditar – é o teu corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu. 

Aquilo que os sentidos experimentam, aquilo que o espírito conhece, nunca tem seu fim em si mesmo. Mas sentidos e espíritos desejariam persuadir-te de que são eles o fim de todas as coisas: tamanha é sua vaidade. 

Instrumentos e brinquedos, são os sentidos e o espírito; atrás deles acha-se, ainda, o ser próprio. O ser próprio procura também com os olhos dos sentidos, escuta também com os ouvidos do espírito. 

E sempre o ser próprio escuta e procura: compara, subjuga, conquista, destrói. Domina e é, também, o dominador do eu. 

Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio desconhecido – e chama-se o ser próprio. Mora no teu corpo, é o teu corpo. 

Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E por que o teu corpo, então, precisaria logo da tua melhor sabedoria? 

O teu ser próprio ri-se do teu eu e de seus altivos pulos. ‘Que são, para mim, esses pulos e vôos do pensamento?’, diz de si para si. ‘Um simples rodeio para chegar aos meus fins. Eu sou as andadeiras do eu e o insuflador dos seus conceitos’. 

O ser próprio diz ao eu: ‘Agora, sente dor!’ E , então, o eu sofre e reflete em como poderá não sofrer mais – e, para isto, justamente, deve pensar. 

O ser próprio diz ao eu: ‘Agora, sente prazer!’ E, então, o eu se regozija e reflete em como poderá ainda regozijar-se muitas vezes – e para isto, justamente, deve pensar. 

Quero dizer uma palavra aos desprezadores do corpo. Que desprezem decorre de que prezam. Mas quem criou o apreço e o desprezo e o valor e a vontade? 

O ser próprio criador criou para si o apreço e o desprezo, criou para si o prazer e a dor. O corpo criador criou o espírito como mão da sua vontade. 

Mesmo em vossa estultícia e desprezo, ó desprezadores do corpo, estais servindo o vosso ser próprio. Eu vos digo: é justamente o vosso ser próprio que quer morrer e que volta as costas à vida. 

Não consegue mais o que quer acima de tudo: — criar para além de si. Isto ele quer acima de tudo; é o seu férvido anseio. 

Mas achou que, agora, era tarde demais para isso; — e, assim, o vosso ser próprio quer perecer, ó desprezadores da vida. 

Perecer, quer o vosso ser próprio, e por isso vos tornastes desprezadores do corpo! Porque não conseguis mais criar para além de vós. 

E, por isso, agora, vos assanhais contra a vida e a terra. Há uma inconsciente inveja no vesgo olhar do vosso desprezo. 

Não sigo o vosso caminho, ó desprezadores da vida! Não sois, para mim, ponte que leve ao super-homem! – 

Assim falou Zaratustra."

O que o texto não diz - eu, porém, vos digo!- é que Zaratustra, enquanto falava, trajava cartola e capa preta.

Laroiê Exu!

Simbiose


Quando a alma encontra canto
Canta o encanto do encontro
Dos corpos que se abrem
Numa troca sem fronteiras

O olhar atravessa os olhos
O toque trespassa a pele
O silêncio ama
A palavra cura

Os seres se entrelaçam
Em movimentos permeáveis
Perdendo-se e econtrando-se
Numa dança simbiótica

A ressonância da canção
Desnuda os corações
Sincronizando cada verso
Ao som do Universo

Canta, novo dia!
Canta nossa melodia
Canta a beleza do encontro
Canta a gratidão e a alegria

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Verde


Verde sumo da folha
Verde seiva da terra
Verde cura do corpo
Verde fonte da alma

Verde caminho de luz
Verde cor da floresta
Verde morada do sol
Verde alegria da festa

Verde pena do índio
Verde dança a aldeia
Verde ciranda de encantos
Verde som de muitos cantos

Verde alquimia sagrada
Verde existência bendita
Verde magia do mundo
Verde mistério da vida

sábado, 11 de outubro de 2014

Casamento


Como do um vem o dois
De dois nasce o um
Via de mão dupla
É a unidade absoluta

O calor que arde fora
Incendeia o interior
Que rompe num momento
Explodindo em casamento

As almas no espelho
Reconhecem sua luz
E como um raio de certeza
Mergulham o oceano da beleza

Positivo e negativo
Se entrelaçam num abraço
O sol beija a lua
Selando eterno e santo laço

É quando o mito se faz rito
A casa encontra casa
E a menina no menino
Torna o mundo mais bonito

No mistério da união
Bate sagrado o tambor
Conclamando toda Terra
A bailar ao som do Amor

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Dieta Eleitoral

Nessas eleições, meu voto foi de silêncio. Não que não tivesse uma série de opiniões muito inteligentes prontas para despejar em cima dos menos esclarecidos. Tinha, e muitas! Mas - confesso -, já não tenho acreditado tanto assim em minhas opiniões. Tem-me faltado - desculpe a expressão - o saco devido para defendê-las. Como Jaiminho, o carteiro do Chaves, tenho preferido evitar a fadiga e não emprestar mais a elas tanta energia quanto já emprestara em outros momentos. Aliás, diante do quadro político periclitante, nunca antes visto na história desse país, não diria que tem sido lá um esforço tão pesado.
Todavia, se nada falei, muito observei. E - não posso negar - muito me assustei. Mantendo certo distanciamento, pude perceber com uma clareza muito límpida que o sistema eleitoral brasileiro não é apenas algo muito perverso de um ponto de vista ético e político. Ele é diabólico. E não se enganem. Não digo isso com nenhuma conotação mística. Falo de um ponto de vista bem pouco metafísico, levando em consideração apenas o significado mais radical que se pode extrair do vocábulo grego diabolos: aquele que divide, que separa, o caluniador.
Como expectador, conscientemente alienado de todo esse pathos eleitoreiro e daquilo que o alimenta, tive a oportunidade de assistir de camarote o espetáculo mais bizarro da Terra: o espetáculo de nós mesmos! Iludidos e ludibriados por nossa própria arrogância e insensatez, disfarçadas em vestes ideológicas, enredamo-nos num jogo estruturalmente sórdido e servimos de mola mestra não apenas para a manutenção de um sistema político antipolítico, mas, antes de tudo, para a conservação de uma maneira nada saudável de enxergar a vida e suas relações. Uma maneira, diga-se de passagem, biofóbica!
Mas, também, creio que, pela primeira vez, pude compreender um pouco mais profundamente a resposta de Jesus àqueles que, querendo testá-lo questionaram-no à respeito do pagamento de impostos, colocando em xeque o tipo de relação que se deve ter para com as estruturas desse mundo que operam sob suas leis cármicas. Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus nunca teve nada a ver com uma visão fragmentada de mundo, onde se privilegia o aspecto sagrado da realidade em detrimento de um suposto mundo profano. Cristos - ou Budas - não conhecem essa divisão, são seres integrados e realizados. Porém, não se pode negar que aquele que conhece o Reino de Deus e em sua lei é iniciado - a lei do Amor -, dificilmente, dispor-se-á novamente a entrar em qualquer espécie de questão com César. Não faz mais sentido. César que brinque sozinho de ser rei! Afinal, o filho do Amor sabe que, por mais cruéis que possam ser as leis do Império, nenhuma delas jamais será capaz de subjugar o ser que, na consciência crística, encontrou sua inabalável liberdade.
Portanto, penso que o que o mestre diz, em outras palavras é o seguinte: concentrem suas energias no que vale à pena, no que é elevado. Uma vez mais, sem espiritualismos! Não posso compartilhar de nenhuma concepção que aborde a realidade de maneira fugidia, induzindo-nos a abandonar ou domar nossas paixões. Sou filho do fogo e creio que paixão tem mais é que queimar! Porém, vale lembrar que nelas habita tanto o poder da vida quanto da morte. Por isso, não pouco importante é aprender a direcioná-las para que, de maneira saudável, possam nos conduzir não para a destruição e morte do ser, mas para renovação e vida eterna. Os frutos continuam sendo a evidência imbatível que nos revela se estamos ou não trilhando o caminho da paz e da bem aventurança.
Assim, em termos bem práticos, senti que essa dieta eleitoral fez-me um bem danado. Votei em quem quis votar, sem ter que me defender e justificar de nada; diverti-me o quanto pude com nossa incurável capacidade de criar argumentos - dos mais toscos aos mais sofisticados - que, de alguma forma, legitimam e justificam crenças que, evidentemente, têm origem em regiões muito mais profundas, onde nossa limitada razão jamais chegará; e, acima de tudo, consegui poupar a mim e aos outros da porção de medo que em mim habita e que, pelo menos dessa vez, não conseguiu acordar para vestir-se de ódio ideológico e botar seu bloco na rua. Acho que, finalmente, estou aprendendo um pouquinho de subversão...

Curumim curandeira



Jeitinho suave e profundo
É sua expressão no mundo
Sob o sorriso sapeca de criança
Sorri também muitos mistérios
Inclusive, coisa de gente bem antiga
Curumim e curandeira
Acontecem, livres, em corpo de menina

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Amor de gente


Gosto mesmo é de ser gente
Assim foi me dada a oportunidade de amar
Amar gente
Amando como gente

Já quis ser santo
Como os anjos conhecer a pureza do amor
Transcender sei lá o quê
Para, quem sabe, amar sem sofrer

Mas não adianta!
É como gente que a vida me encanta
É nesse tudo o que sou
Que meu fogo arde

É sendo gente que me realizo
Encontro minha vocação
Voando e mergulhando
Onde manda o coração

Se alço os céus e louvo os deuses
Ou no inferno encontro meus demônios
Piso onde for preciso
Para, como gente, acolher o que for meu

Com corpo e rosto nus
Máscaras ao chão
Nesse amor com-paixão
Rasgo os manuais

Sendo apenas gente
Vou amando como posso
E posso tanto como gente
Que posso até amar demais