Entretanto, dentre todos esses tipos marginalizados, um parecia cativar especialmente a atenção do nazareno: as crianças. E, aproveitando esse irromper do mês de setembro - com a criançada solta, solta! - nada melhor do que descer um pouco do salto e aprender um pouquinho com elas. Oni Ibejada!
Que nós, enquanto humanidade - mesmo que estejamos começando a vislumbrar um período de transição -, ainda vivemos uma época de nossa história bastante marcada pelo patriarcado e por uma visão adultocêntrica da realidade não é muito novidade para ninguém. Mesmo que não haja um olhar mais analítico para a questão, a experiência, contudo, não deixa negar.
Embora nos últimos anos já venhamos observando um resgate até significativo - mas ainda muito incipiente - do feminino na nossa cultura, o mesmo ainda não chegou a acontecer em relação ao universo infantil. Obviamente, a referência aqui não é em relação a questões de garantias jurídicas e legislativas que têm por objetivo oferecer proteção a essa identidade socialmente construída à que chamamos criança. Não refiro-me, portanto, à instituição criança, mas à criança enquanto ser existente. E, como tal, digno, por si só, de legitimidade. Nessa outra perspectiva, parece-me, estamos ainda bastante imobilizados.
Por que será, então, que ainda hoje, nessa época que alguns chamam de pós-moderna - onde acredita-se que as metanarrativas garantidoras de um sentido mais amplo para a vida vêm perdendo sua força - o “infantil” ainda é visto em termos tão pejorativos?
Tenho para mim que isso ocorre porque, geralmente, os discursos de poder encontram-se alicerçados sobre falsas dualidades que, após serem revestidas de um caráter ético, passam a imperar como se grandes verdades fossem. Assim é que, desde nossa mais tenra idade - porra, sempre quis usar essa expressão! -, não só somos, direta e subliminarmente, educados por discursos culturais que estabelecem uma oposição entre aquilo que é “coisa de criança” e aquilo que é “coisa de adulto”, como, para deixar a situação ainda mais delicada, atribuindo-se sentidos de valor a essas duas condições, acabam por enfiar-nos, goela abaixo, a ideia - que, rapidamente, transforma-se em sentimento! - de que comportar-se de maneira adulta é melhor do que comportar-se de maneira infantil. Ora, melhor para quem? É o tipo da ideia que, por melhor encadeamento lógico que tenha, não passa no teste da realidade. Afinal, não sei vocês, mas o universo dos adultos que me cercam não parece ser, assim, tão mais interessante do que o mundo de simplicidade mágica onde habitam as crianças.
E Jesus sabia disso. Não era bobo. Embora seus ensinamentos tenham sido sequestrados e transfigurados pelas próprias estruturas de controle e poder que sua existência tanto ameaçava e colocava em xeque - a cruz não foi à toa! -, seu exemplo vivo continua tendo muito a nos inspirar.
Um relato bastante conhecido conta que, certa vez, enquanto contava parábolas aos discípulos e recebia algumas outras pessoas para que fossem curadas, algumas pessoas trouxeram crianças para perto dele. Os discípulos, porém, não gostaram muito da ideia e tentaram impedir. Atitude bem razoável dentro de uma mentalidade adultocentrada que, diante de um momento considerado muito sério - como, de fato, era -, não permitia espaço para baboseiras infantis. Certamente, eles sabiam que as crianças costumam ter o dom de quebrar a ordem do tão enrijecido mundo adulto e, evidentemente, essa ameaça, dificilmente, é vista com bons olhos.
O adulto já aprendeu o que é certo e errado, o que pode e o que não pode. Já domesticou seu comportamento para conseguir atender à expectativas exteriores do meio em que vive e já está munido de uma quantidade suficiente de máscaras que o permitem interagir num leque razoavelmente amplo de situações que, porventura, se coloquem diante dele. A criança, não. A criança, ainda não tendo passado por seu processo de adulteração, simplesmente existe. Existe com a força da natureza. E isso é perigoso...
Jesus, por sua vez, compartilhando dessa mesma periculosidade infantil, reconhece nos pequeninos a essência do próprio Deus e ordena aos discípulos que abram passagem para que todas as crianças possam chegar até ele. Não satisfeito, subvertendo ainda mais toda uma estrutura mental coletiva extremamente enraizada, olha para as crianças, fita os discípulos nos olhos a atira sua flecha de amor: delas é o Reino dos céus. Aquele que não se fizer como uma delas, nele não entrará.
Com essa atitude, o que Jesus nos apresenta é um Reino dos céus simples como simples é a forma como as crianças concebem o mundo. Mais até do que como concebem, ele nos apresenta um Reino dos céus simples como simples é a forma como as crianças recebem o mundo. Confiando plenamente do poder de seus pais - seus deuses -, elas, com muita tranquilidade, simplesmente, sabem que nada lhes faltará. É essa certeza que faz de seu mundo um infinito parque de diversões e de suas vidas uma eterna hora do recreio. Eis o Reino dos céus! Um lugar existencial, de fato, muito, muito perigoso! Nada ameaça mais a manutenção do status quo do que gente que não tem nada para alcançar. Afinal, quem não tem o que alcançar também não tem o que perder. Tem, diante de si, apenas a liberdade como caminho.
O convite irrecusável do mestre, portanto, a todos nós, é que resgatemos essa infantilidade que em algum momento da jornada possa ter ficado soterrada em meio aos entulhos que a - também maravilhosa - experiência do amadurecimento nos traz. Afinal, se o Reino de Deus realmente pertence às criancinhas, livres somos para - como elas - querermos tudo! Dessa forma, experienciando a vida de uma maneira mais integral, já não precisaremos ficar na angustiante posição de ter que escolher entre isto ou aquilo, mas - transpondo toda dualidade - estaremos aptos a receber, de braços abertos, tudo o que, de maneira abundante, o Universo tem, tão carinhosamente, nos dado. Que a criançada nos ensine a alegria e a leveza do caminho. Um salve a todas as criancinhas!
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