A boca fala do que o coração tá cheio

domingo, 21 de setembro de 2014

Quando o chicote canta!

Depois de muito brigar com o tempo, sempre tendo preferido os mistérios da eternidade, aprendi não só a respeitá-lo, como - apaixonando-me por ele - a degustá-lo como a mais fina iguaria. Amo ser contemporâneo de mim mesmo. Amo viver nessa carcaça que, hoje, pisando nessa Terra no ano de 2014, recebe a dadivosa oportunidade de desfrutar de tudo aquilo que necessita para a realização existencial do meu ser.
Tenho, inclusive, a sensação de que esse tempo que hoje experimento é um tempo que por muito esperei. Eu, que sempre tivera minhas fortes inclinações àquilo que, numa linguagem mais fenomenológica, aprendemos a chamar de “o sagrado”, não poderia me sentir mais à vontade vivendo em nenhum outro momento histórico que não este em que os mais apegados aos conceitos decidiram denominar pós-modernidade.
Um tempo em que as metanarrativas, que antes eram as grandes responsáveis por produzir um sentido mais amplo à realidade, vêm perdendo a sua força e também - não podemos ignorar - um tempo onde a importante questão da linguagem começa a ser tratada num patamar mais condizente com a dignidade que lhe é intrínseca. Como consequência imediata disso, o que se configura na relação do homem com o sagrado nesse início de transição é uma expansão de horizontes sem precedentes.
E como parte - talvez das mais importantes - dessas transformações das quais participamos, está, certamente, a libertação do divino das amarras institucionais. Deus, em suas muitas manifestações, nunca esteve, digamos assim, tão acessível ao homem. E este, por sua vez, transpondo as barreiras das religiões, vem encontrando a oportunidade de experienciar o sagrado com uma riqueza e amplitude jamais imaginadas.
Entretanto, como nem tudo são flores no samsara, não podemos cair na armadilha de imaginar que esse maravilhoso processo que ora vivenciamos não esteja trazendo também consigo questões delicadas e dignas de nossa atenção. Como grande apaixonado pelo fenômeno humano, com todas as suas faces - luzidias e trevosas -, reconheço no homem aquilo que, talvez, constitua um dos espetáculo mais belos do Universo: sua capacidade de transmutar energias. Porém, da mesma forma que há em nós o dom de lançarmos luz sobre trevas, nossa condição de ignorância - característica que, num certo sentido, une e iguala a todos que por essas bandas caminham - faz de nós, também, uma espécie de Midas às avessas em potencial, tornando-nos igualmente capazes de transformar em merda todo o ouro que em nossas mãos é colocado.
Assim é que, tão logo as igrejas e outras institições religiosas formais foram perdendo o monopólio sobre o mundo espiritual, sem tempo nem ao menos para respirar, o “livre” - e agora cobiçado - Reino do Espírito passou a ser assediado por novas estruturas de poder, que, disfarçadas debaixo de uma nova roupagem, sob a bandeira de um discurso laico, libertário e com tom cientificista, tomaram-no de assalto e o incorporaram ao velho e batido Império do Capital.
O que antes era controlado pelo poder autoritário e centralizador da religião, agora parece ter encontrado a liberdade perfeita para que, obedecendo às leis do mercado, o Reino dos Céus possa, finalmente, alcançar um número maior de almas, que, de outra maneira, a ele jamais chegariam. Um altruísmo de verter lagriminhas dos olhos do próprio Satanás.
Altruísmo, aliás, que costuma frequentar assiduamente consciências nebulosas, que, incapazes de  reconhecerem-se a si mesmas, projetam sobre o outro toda sorte de ansiedade salvadora. O que se percebe, contudo, é que quando digo ao outro que ele necessita de algo fora dele para realizar sua própria “salvação”, o que está subjacente nesta fala é que o outro, com os instrumentos que possui, não é capaz. Ou seja, Deus errou. E mais: se  indivíduo quiser corrigir a cagada divina, terá de coçar o bolso para que eu - íntimo do Homem e conhecedor do caminho das pedras - lhe forneça os subsídios sem os quais seu caminho será, indubitavelmente, pior.
Esses mecanismos egóicos de pilantragem existencial, todavia, se reconhecem com muita facilidade. Basta olhar os grandes e verdadeiros mestres espirituais que a humanidade já conheceu - e continua conhecendo - e, com eles, em humildade, aprender um pouquinho. Além do fato de, até onde me parece, suas demandas serem bem distintas das que compartilha nossa classe média espiritualizada e seus empreendedores de sucesso, todos eles demonstram com bastante clareza que o estado existencial do qual desfrutam não se alcança pela via do dinheiro ou de qualquer outra lógica pertencente a este mundo.
Neste ponto, tenho que ter especial cuidado para que, com isso, não pensem que estou afirmando qualquer espécie de dualidade. Quando refiro-me à lógica deste mundo, ou aos valores deste mundo, pego emprestado o sentido atribuído por Jesus à expressão. Certamente, o mestre não acreditava na existência de dois mundos ou duas realidades, sendo uma de natureza sagrada e outra profana. Como ser realizado, ele bem sabia que a realidade é una, não havendo qualquer tipo de oposição a ela. Portanto, quando Jesus fala do mundo utilizando essa  conotação pecaminosa, o que ele está nos trazendo é, na verdade, o entendimento de que, apesar da realidade constituir-se de um todo harmônico, há, em nós, sim, a possibilidade de a percebermos de maneira equivocada. É, justamente, esse equívoco que produz, em nós - não na realidade! -, toda uma miríade de distorções.
Assim, quando invocamos a noção de integralidade da existência para legitimar não só nosso gosto pelo dinheiro, como a sustentação de toda uma estrutura econômica que funciona como uma moderna bolsa de valores de indulgências celestiais, o que estamos fazendo - além de uma deselegância existencial para conosco mesmos - é fruto de uma má compreensão - e, quem sabe, de uma má vontade - da nossa própria dinâmica interior de luz e sombra. Muitas vezes, esquecendo-nos de que, por sua própria natureza, luz e trevas não se misturam, acabamos caindo numa sutil armadilha que nos leva a chamar urubu de meu louro. Afinal, acolher nossas sombras é parte fundamental de qualquer processo de integração. Contudo, não podemos ignorar que a principal evidência do acolhimento verdadeiro de nossas sombras é, justamente, sua transmutação em luz. Essa é a lei.
O próprio Paulo de Tarso, em um dos momentos em que não está vomitando seu moralismo, escreve uma passagem aos coríntios - passagem que, por sinal, me acompanha já há muitos anos! - onde os adverte a não ficarem maravilhados com tudo o que vissem pela frente, visto que até mesmo o diabo, astuto como é, tem o poder de se transfigurar em anjo de luz, e seus ministros, em ministros de justiça.. Deixando de lado a atormentadora figura mitológica do capiroto vestido de vermelho e tridente na mão, e fazendo uma leitura mais existencial do texto, fica claro que Paulo está se referindo, justamente, ao ego e sua surpreendente capacidade de criação de artimanhas que, disfarçando-se em vestes de luz, tornam-se as grandes patrocinadoras de nossas trevas interiores.

Portanto, abramos nossos olhos e, acima de tudo, sondemos nosso coração. Não creio que o dinheiro seja um mal. Aliás, não creio que o dinheiro seja nada. Não acredito na existência das coisas, apenas nas relações que nós, enquanto seres viventes, estabelecemos com elas. Porém, não permitamos que ninguém nos convença de que temos uma necessidade real de algo que só nos será ofertado mediante dinheiro. A perspectiva da falta, além de funcionar como uma usina interior de sofrimento, é a condição sine qua non da nossa sociedade de consumo e de seu marketing perverso. Aprendendo uma vez mais com o mestre, não ignoremos que quando o "lugar santo" - o próprio sagrado! - se transforma em feira de negócios, aí, nesse momento, o chicote canta!

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