A boca fala do que o coração tá cheio

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Simão, o mago vacilão

Conta o evangelista Lucas, no livro dos Atos dos Apóstolos, que, certa vez, enquanto Filipe anunciava o Reino de Deus em Samaria, curando e batizando em nome de Jesus - desperto na consciência crística! -, havia ali naquela cidade um homem com notável conhecimento de magia que ludibriava a todos, fazendo com que acreditassem ser ele um grande homem e exemplo de virtude.
Contudo, ao ver Pedro e João - recém chegados à cidade - impondo as mãos sobre as pessoas e estas recebendo o Espírito Santo, seu personagem não pôde mais se sustentar e - sozinho, sem precisar de ninguém para desmascará-lo - revelou, ali mesmo, a intenção de seu coração. Maravilhado com o que vira e desejoso daquele poder, ofereceu dinheiro aos discípulos para que dessem também a ele o dom de batizar com o Espírito Santo através da imposição de mãos.
A resposta de Pedro - certamente, filho de Ogum! -, foi curta e grossa: O teu dinheiro seja contigo para perdição, pois cuidaste que o dom de Deus se alcança por dinheiro. Com essas palavras, que nada têm de maldição ou qualquer outra coisa parecida com rogo de praga, Pedro não só o entrega a concupiscência de seu próprio coração, deixando que a vida lhe trate da maneira mais adequada, como deixa para nós um grande ensinamento. Aliás, dois!
O primeiro deles, e mais óbvio e direto, é o fato de que o Espírito não é sujeitável a nenhuma espécie de lógica mercantil. Sendo, justamente, o responsável por abrir a percepção de que o reino de mamom não passa de uma perspectiva reduzida e, portanto, ilusória da realidade, o Espírito Santo jamais se deixaria aprisionar pelas cadeias das quais vem nos libertar. O Reino de Deus, definitivamente, não está à venda e a única moeda corrente em seu território é a graça. O que passar disso é responsabilidade de cada um diante de seu próprio coração e consciência.
O segundo ensinamento que o caminho do mago Simão nos traz - tão ou mais importante que o primeiro - é que os carismas, dons ou capacidades extrafísicas pouco - ou nada - têm a ver com a retidão e sinceridade de coração com as quais nos apresentamos diante de Deus e dos homens. Tanto Simão quanto os apóstolos eram conhecidos por seus prodígios. Entretanto, como bem é cantada a sabedoria popular no corrido de capoeira: Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que balança cai.
Aprender a discernir o metal verdadeiro do ouro de tolo é tarefa da maior importância no caminho espiritual e - pode ter certeza! - nos poupa de muita confusão e dores desnecessárias. Digo isso porque, geralmente, quando nos deixamos iludir por tudo que brilha em nossa frente, acabamos por transferir a terceiros - que, talvez, julguemos serem mais evoluídos ou amigos de Deus do que nós, não sei… - o poder que só a nós pertence: de reconhecer nossa consciência e fazer nosso próprio caminho. Com isso, nos abrimos para toda sorte de manipulação e assaltos espirituais, que, dificilmente, deixarão de trazer consigo uma boa carga de sofrimento emocional.
É interessante, ainda, ressaltar que, diante do mago 171, a reação de Pedro foi enérgica. Nossa visão romanceada - quando não babaca - do amor, muitas vezes, nos mergulha em profundo engano, levando-nos a alimentar situações que drenam nossa energia, sob a alegação de uma postura amorosa para com o outro. Simão, certamente, não era aquilo que se pode chamar de um pilantra completo. Ninguém o é. Se tivesse filhos - o texto não comenta -, provavelmente, seria amado por eles, que, também, provavelmente, reconheceriam nele uma série de virtudes ocultas aos olhos dos demais. Da mesma forma o fariam sua mãe e seus amigos. Creio que Pedro, cheio do Espírito Santo, também não ignorasse nada disso. Entretanto, repito: Pedro foi enérgico! Há situações que se colocam diante de nós em que uma simples poda não resolve. Os galhos voltam a crescer e crescem revigorados. Às vezes, lançar o machado sobre a raiz de uma árvore é a única maneira de preservar a floresta.
Mágicos e ilusionistas espirituais, como Simão, sempre existiram e, provavelmente, sempre existirão. E não há problema nenhum nisso. Não precisamos achar que são, de alguma maneira, homens maus ou nossos inimigos. Desde que não os empoderemos, serão apenas homens comuns que, inseguros e inconscientes de si mesmos, apegam-se a externalidades - ainda que espirituais! - como forma de suprir a elevada demanda de seus egos gulosos. Em outra palavras, gente desesperada que encontrou na espiritualidade sua forma de chamar atenção. Por isso, entregar Simão ao seu próprio caminho, sem dar-lhe a atenção requerida, é o melhor que podemos fazer por nós e por ele mesmo. Deus, em sua infinita misericórdia, cuidará de todos!

domingo, 28 de setembro de 2014

A natureza autossustentável do amor



Nem tudo que fazemos, fazemos por amor. Por mais amorosos, evoluídos ou conscientes que sejamos, creio que essa é uma honestidade que devemos a nós mesmos. Nessa Terra de expiação por onde andamos, ainda que, de alguma maneira, consigamos transcender o reino da dualidade, não nos limitando aos aspectos fenomenológicos da realidade manifesta, há ainda em nós sempre muita ignorância a ser dissipada. Cristos, budas e iogues iluminados contam-se nos dedos.
Assim é que quando trabalhamos, por exemplo - e aqui refiro-me ao trabalho em sentido estrito, como aquela atividade por meio da qual obtemos nosso sustento, pagamos nossas contas e suprimos nossas necessidades básicas e supérfluas -, muito raramente o fazemos por amor. Por maior que seja nossa identificação e o sentimento de realização gerado por aquilo que é feito, não penso que possamos chamar essa relação de amor. Suspenda a retribuição financeira proporcionada pelo trabalho e verás que tenho razão. O amor - parece-me - constitui uma outra forma de relacionamento com a existência que não se permite subjugar a qualquer relação de dependência. A liberdade é seu bem mais precioso.
Por amor fazemos aquilo que faríamos de qualquer maneira. Com ou sem dinheiro, com ou sem reconhecimento. E não se iluda: não há aqui nenhuma espécie de julgamento moral que pretenda afirmar que essa maneira de agir é, em si, superior àquela. O amor, ao contrário do que comumente se pensa, não é resultado de um esforço evolutivo que acaba por se expressar em atitudes amorosas. Amor é a própria realidade. A realidade nua em sua essência mais profunda. Por isso, quando amamos, não amamos porque somos bonzinhos. Amamos porque, conectando-nos ao fluxo universal, o próprio amor nos atravessa, faz-nos sentir amados e, sentindo-nos amados, natural e espontaneamente, transbordamos. Isso é amar. Simples, gratuito e abundante como a mangueira que, no verão, derrama seus frutos sobre a terra.
É um tipo de relação que se retroalimenta e, aproveitando a palavra da moda,  poderia dizer que o amor é a expressão maior daquilo que entendemos por sustentabilidade. O amor é, assim, tanto o “produto final”, quanto  a energia geradora responsável por viabilizar todos os recursos necessários para sua própria realização. Operando num ciclo fechado, constituindo-se como causa e efeito de todo o processo, acaba - paradoxalmente - por transcender os duros grilhões da lei de causa e efeito que rege essas bandas conscienciais por onde andamos e torna a si mesmo lei, transportando-nos para seu reino de liberdade.
Desse modo, para que a conta feche e não haja desequilíbrios, o amor nos ensina a lição mais fundamental de toda a vida: só podemos dar o que temos para dar. Quando, porém, não temos - e não há problema algum em não ter! - e, ainda assim, nos permitimos convencer - geralmente, por forças obscuras de nosso próprio ego - de que precisamos compartilhar o que nem nós mesmos ainda experienciamos, aí, coloca-se a grande armadilha: a perspectiva da falta de recursos. Ou seja: Deus te enviou para salvar a humanidade e aliviar o sofrimento alheio, mas te enviou com uma mão na frente e outra atrás. É um brincalhão! Cabe, agora, a você, empreendedor das hostes celestiais, um bom plano de negócios para fazer rodar essa geringonça.
Nesse ponto, o candidato a messias, para dar conta de tão nobre missão, antes mesmo que ela inicie, acaba por desfigurá-la, transformando-a em luta por sobreviência e estabelecendo com ela uma relação de dependência. É o momento em que a missão vira profissão e o amor torna-se capital. Deixando de ser uma experiência vívida, pronta a ser compartilhada espontaneamente por qualquer um que se apresente no caminho, torna-se produto de um mercado de ilusões, que, naturalmente, só terá acesso quem puder pagar por seu preço. Geralmente alto. Não é barato sustentar as demandas de classe média que, comumente, frequentam as consciências que dão refúgio a esse tipo de mentalidade.
Além disso, é ainda nesse momento que melhor se pode expressar a ingratidão para com a fonte de toda luz eterna que, pela graça - e somente por ela -, jorra diariamente sobre todos nós. E, talvez, seja também o momento onde se assina o maior atestado de falta de fé nos próprios ensinamentos transmitidos.
Afinal, não se pode falar de amor de uma posição diferente daquela que nos ensinou o próprio amor encarnado: “Buscai em primeiro lugar o reino dos céus e sua justiça, e todas as demais coisas vos serão acrescentadas”. O reino a que se referia, ele bem sabia, não era - e continua não sendo - deste mundo. Pertence a outra lógica. Portanto, se não pudermos experimentar a verdade dessas palavras em nossa própria existência, melhor seria que nem falássemos do amor. Certamente, ele não se ressentiria de nós e, de nossa parte, seríamos poupados de nossa própria estultice.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Primavera



Hoje acordei diferente
Havia no ar uma nova atmosfera
Botei os pés na rua
E as árvores todas se querendo
Num bailar mais do que exibido
Celebravam a nova era

Foi então que uma mais atiradinha
Acenando para mim 
Deu uma piscadela
E com um sorriso bem maroto 
Me disse bem baixinho
Sou eu, a primavera!

domingo, 21 de setembro de 2014

Quando o chicote canta!

Depois de muito brigar com o tempo, sempre tendo preferido os mistérios da eternidade, aprendi não só a respeitá-lo, como - apaixonando-me por ele - a degustá-lo como a mais fina iguaria. Amo ser contemporâneo de mim mesmo. Amo viver nessa carcaça que, hoje, pisando nessa Terra no ano de 2014, recebe a dadivosa oportunidade de desfrutar de tudo aquilo que necessita para a realização existencial do meu ser.
Tenho, inclusive, a sensação de que esse tempo que hoje experimento é um tempo que por muito esperei. Eu, que sempre tivera minhas fortes inclinações àquilo que, numa linguagem mais fenomenológica, aprendemos a chamar de “o sagrado”, não poderia me sentir mais à vontade vivendo em nenhum outro momento histórico que não este em que os mais apegados aos conceitos decidiram denominar pós-modernidade.
Um tempo em que as metanarrativas, que antes eram as grandes responsáveis por produzir um sentido mais amplo à realidade, vêm perdendo a sua força e também - não podemos ignorar - um tempo onde a importante questão da linguagem começa a ser tratada num patamar mais condizente com a dignidade que lhe é intrínseca. Como consequência imediata disso, o que se configura na relação do homem com o sagrado nesse início de transição é uma expansão de horizontes sem precedentes.
E como parte - talvez das mais importantes - dessas transformações das quais participamos, está, certamente, a libertação do divino das amarras institucionais. Deus, em suas muitas manifestações, nunca esteve, digamos assim, tão acessível ao homem. E este, por sua vez, transpondo as barreiras das religiões, vem encontrando a oportunidade de experienciar o sagrado com uma riqueza e amplitude jamais imaginadas.
Entretanto, como nem tudo são flores no samsara, não podemos cair na armadilha de imaginar que esse maravilhoso processo que ora vivenciamos não esteja trazendo também consigo questões delicadas e dignas de nossa atenção. Como grande apaixonado pelo fenômeno humano, com todas as suas faces - luzidias e trevosas -, reconheço no homem aquilo que, talvez, constitua um dos espetáculo mais belos do Universo: sua capacidade de transmutar energias. Porém, da mesma forma que há em nós o dom de lançarmos luz sobre trevas, nossa condição de ignorância - característica que, num certo sentido, une e iguala a todos que por essas bandas caminham - faz de nós, também, uma espécie de Midas às avessas em potencial, tornando-nos igualmente capazes de transformar em merda todo o ouro que em nossas mãos é colocado.
Assim é que, tão logo as igrejas e outras institições religiosas formais foram perdendo o monopólio sobre o mundo espiritual, sem tempo nem ao menos para respirar, o “livre” - e agora cobiçado - Reino do Espírito passou a ser assediado por novas estruturas de poder, que, disfarçadas debaixo de uma nova roupagem, sob a bandeira de um discurso laico, libertário e com tom cientificista, tomaram-no de assalto e o incorporaram ao velho e batido Império do Capital.
O que antes era controlado pelo poder autoritário e centralizador da religião, agora parece ter encontrado a liberdade perfeita para que, obedecendo às leis do mercado, o Reino dos Céus possa, finalmente, alcançar um número maior de almas, que, de outra maneira, a ele jamais chegariam. Um altruísmo de verter lagriminhas dos olhos do próprio Satanás.
Altruísmo, aliás, que costuma frequentar assiduamente consciências nebulosas, que, incapazes de  reconhecerem-se a si mesmas, projetam sobre o outro toda sorte de ansiedade salvadora. O que se percebe, contudo, é que quando digo ao outro que ele necessita de algo fora dele para realizar sua própria “salvação”, o que está subjacente nesta fala é que o outro, com os instrumentos que possui, não é capaz. Ou seja, Deus errou. E mais: se  indivíduo quiser corrigir a cagada divina, terá de coçar o bolso para que eu - íntimo do Homem e conhecedor do caminho das pedras - lhe forneça os subsídios sem os quais seu caminho será, indubitavelmente, pior.
Esses mecanismos egóicos de pilantragem existencial, todavia, se reconhecem com muita facilidade. Basta olhar os grandes e verdadeiros mestres espirituais que a humanidade já conheceu - e continua conhecendo - e, com eles, em humildade, aprender um pouquinho. Além do fato de, até onde me parece, suas demandas serem bem distintas das que compartilha nossa classe média espiritualizada e seus empreendedores de sucesso, todos eles demonstram com bastante clareza que o estado existencial do qual desfrutam não se alcança pela via do dinheiro ou de qualquer outra lógica pertencente a este mundo.
Neste ponto, tenho que ter especial cuidado para que, com isso, não pensem que estou afirmando qualquer espécie de dualidade. Quando refiro-me à lógica deste mundo, ou aos valores deste mundo, pego emprestado o sentido atribuído por Jesus à expressão. Certamente, o mestre não acreditava na existência de dois mundos ou duas realidades, sendo uma de natureza sagrada e outra profana. Como ser realizado, ele bem sabia que a realidade é una, não havendo qualquer tipo de oposição a ela. Portanto, quando Jesus fala do mundo utilizando essa  conotação pecaminosa, o que ele está nos trazendo é, na verdade, o entendimento de que, apesar da realidade constituir-se de um todo harmônico, há, em nós, sim, a possibilidade de a percebermos de maneira equivocada. É, justamente, esse equívoco que produz, em nós - não na realidade! -, toda uma miríade de distorções.
Assim, quando invocamos a noção de integralidade da existência para legitimar não só nosso gosto pelo dinheiro, como a sustentação de toda uma estrutura econômica que funciona como uma moderna bolsa de valores de indulgências celestiais, o que estamos fazendo - além de uma deselegância existencial para conosco mesmos - é fruto de uma má compreensão - e, quem sabe, de uma má vontade - da nossa própria dinâmica interior de luz e sombra. Muitas vezes, esquecendo-nos de que, por sua própria natureza, luz e trevas não se misturam, acabamos caindo numa sutil armadilha que nos leva a chamar urubu de meu louro. Afinal, acolher nossas sombras é parte fundamental de qualquer processo de integração. Contudo, não podemos ignorar que a principal evidência do acolhimento verdadeiro de nossas sombras é, justamente, sua transmutação em luz. Essa é a lei.
O próprio Paulo de Tarso, em um dos momentos em que não está vomitando seu moralismo, escreve uma passagem aos coríntios - passagem que, por sinal, me acompanha já há muitos anos! - onde os adverte a não ficarem maravilhados com tudo o que vissem pela frente, visto que até mesmo o diabo, astuto como é, tem o poder de se transfigurar em anjo de luz, e seus ministros, em ministros de justiça.. Deixando de lado a atormentadora figura mitológica do capiroto vestido de vermelho e tridente na mão, e fazendo uma leitura mais existencial do texto, fica claro que Paulo está se referindo, justamente, ao ego e sua surpreendente capacidade de criação de artimanhas que, disfarçando-se em vestes de luz, tornam-se as grandes patrocinadoras de nossas trevas interiores.

Portanto, abramos nossos olhos e, acima de tudo, sondemos nosso coração. Não creio que o dinheiro seja um mal. Aliás, não creio que o dinheiro seja nada. Não acredito na existência das coisas, apenas nas relações que nós, enquanto seres viventes, estabelecemos com elas. Porém, não permitamos que ninguém nos convença de que temos uma necessidade real de algo que só nos será ofertado mediante dinheiro. A perspectiva da falta, além de funcionar como uma usina interior de sofrimento, é a condição sine qua non da nossa sociedade de consumo e de seu marketing perverso. Aprendendo uma vez mais com o mestre, não ignoremos que quando o "lugar santo" - o próprio sagrado! - se transforma em feira de negócios, aí, nesse momento, o chicote canta!

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Nossos versos


Nesse universo de nós todos
Eu sou você
Você sou eu
E nossos versos se unem
Nesse verbo mais fundamental

Desfaço o tempo
Atravesso o espaço
Transponho o mar da minha guanabara
Só para aqui dentro
Te encontrar

Quando a noite cai
E teu rosto em agonia
Toca o travesseiro
Desperto nesse não-lugar
Velo seu sono
Esperando do novo dia
O alvorecer da alegria

Embalado em ondas de luz
Que me levam e me trazem
Num balanço interior
No instante de um repente
Vejo um clarão de muitas cores
Transformando o que era dor
Numa aquarela reluzente

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Oferenda


No barro do alguidar
Acomodo minha vontade e minha razão
Meu sentimento e emoção
Meu amor
Minha paixão...


Invoco o orixá
Clamando que do céu
Envie fogo
O fogo santo
Que incendeie o meu altar

A chama ígnea
Que fenda o firmamento
Consuma o meu ser
Fazendo arder no interior
O calor do discernimento

Nesse altar de mim mesmo
Eu sou a oferenda
E entregando aos céus a minha senda
Recebo de lá em outro tom
A completude da existência como dom

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O caminho espiritual

Muito se fala sobre o “caminho espiritual”. Seja lá o que se queira dizer com isso, deixa-me sempre a impressão de um alvo ou uma meta distante, onde nunca estamos - ou, pelo menos, não de maneira suficiente - e aonde devemos chegar. Geralmente, por meio de disciplinas, esforços, renúncias e sacrífícios. Durante bastante tempo, também eu existi debaixo dessa perspectiva.
Contudo, a inexorabilidade da própria vida, muitas vezes - e ela parece gostar disso! -, joga por terra nossas certezas e, invariavelmente, torna-nos mais leves e flexíveis. Afinal, nada mais cansativo do que ter muitas opiniões e certezas a sustentar.
Depois de muitas, muitas e muitas vezes ter acreditado, de todo o coração, ter encontrado o caminho, descobri que essa misteriosa entidade espiritual por que tanto procurava é, talvez, a maior cilada existencial em que podemos nos meter. Compreendi, finalmente - ou não -, as palavras do carpinteiro de Nazaré: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim”.
Percebi, enfim, que é somente quando enxergo a mim mesmo como o próprio caminho, deixando de buscá-lo em qualquer espécie de externalidade, que posso, então, conhecer o Pai - Mãe, Eu superior, Atman ou seja lá o que for - e, com Ele, tornar-me um. Enquanto o caminho estiver fora, não há esperança de unidade. Apenas luta, desespero e toda sorte de neuroses.
Compreender-se como caminho implica receber a si mesmo. É, antes de tudo, um ato de entrega. Uma entrega-recebimento. É quando, abrindo mão de todo julgamento moral e de toda ética de comparação, exorcizamos a nós mesmos e, acolhendo tudo o que somos, temos a oportunidade de tocar e participar do fluxo cósmico. É, em outras palavras, perceber-se como canal atravessado por forças muito maiores, que, a todo instante, compõem uma harmônica, linda e perfeita dança universal.
Não por acaso, boa parte das angústias humanas têm origem, justamente, quando, nos deixamos distrair dessa dinâmica que nos é tão natural. Nesse processo de distanciamento, surge aquilo a que nos acostumamos chamar de identidade. Não só construímos uma personalidade, como acreditamos que nosso Ser identifica-se a ela. Assim, a questão “quem sou eu?”, sub-repticiamente, induz-nos a uma definição, que, cristalizada de maneira identitária, acaba por por limitar-nos e imobilizar-nos em nossa própria fantasia. Somos, entretanto, muito mais e muito menos do que pensamos.
Eis a armadilha da razão. Embora tenha grande apreço pela filosofia e por sua tara conceitual, não posso negar que, muitas vezes, as limitações de seus próprios instrumentos nos conduz a falsas questões, que, por conseguinte, devolvem-nos respostas ilusórias. Nesse sentido, sigo de mãos dadas aos poetas. Livres da necessidade de defender suas ideias - e até mesmo de se fazerem compreendidos! -, ludibriam a razão e mantêm a salvo a existência com todas as suas cores e sabores.
Quando, como eles, conseguimos libertar-nos dos conceitos que criamos para fazer-nos reféns de nós mesmos - ainda que em cativeiro espiritual -, e somos capazes de encontrar essa poesia viva em nosso próprio existir, deparamo-nos com a assombrosa constatação de que aquela velha estrada cinza de asfalto liso que projetávamos como caminho espiritual, simplesmente, não existe. Quando dentro de nós mesmos começamos a ouvir o canto dos pássaros, o tremular das folhas e o barulho das águas; encontramos nossas feras, visitamos nossos vales e nos banhamos na escuridão da lua nova; subimos nossas montanhas, mergulhamos em nossos mares e cruzamos nossos desertos; só, então, podemos, em nós, ouvir a voz do Cristo: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. E, assim, aproximando-nos um pouco mais dessa consciência interior, tornamo-nos, também, um pouco mais um com o Pai. Eis o caminho: eu sou.

domingo, 7 de setembro de 2014

Castelo da alma


Meu quarto
Meu mundo
Espaço sagrado
Abriga meu ser
Encontro profundo

Gaveta do corpo
Castelo da alma
Ilha de magia
Fadas e duendes
Império da alegria

Ali o menino é rei
A coroa é dourada
Galopando liberdade
Carrega na garupa
Sua donzela encantada

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Mamãe Oxum


Mamãe Oxum desceu na cachoeira
De amarelo
Toda faceira

Sua doçura chegou na frente
Veio perfumando
O ambiente

Em sua mão brilhou o espelho
No seu cabelo
Trazia um pente

Dona das águas mais cristalinas
Das corredeiras
Que nos fascinam

Seu é o ouro e toda riqueza
Orixá do amor
E da beleza

Laroiê Exu!


Laroiê Exu, Exu é Mojubá
Laroiê Exu, Exu é Mojubá

Vem dançando em luz
Vem na força de Odara 

Laroiê Exu, Exu é Mojubá
Laroiê Exu, Exu é Mojubá

Recebe tua oferenda
Guarda a minha tenda

Laroiê Exu, Exu é Mojubá
Laroiê Exu, Exu é Mojubá

Abre meu caminho
Mal nenhum me tocará

Laroiê Exu, Exu é Mojubá
Laroiê Exu, Exu é Mojubá

Prospera meu negócio
Vem meu ócio inspirar

Laroiê Exu, Exu é Mojubá
Laroiê Exu, Exu é Mojubá

Teu fogo é o combustível
Que faz a roda girar

Laroiê Exu, Exu é Mojubá
Laroiê Exu, Exu é Mojubá

Senhor do movimento
Mensageiro orixá

Laroiê Exu, Exu é Mojubá
Laroiê Exu, Exu é Mojubá

Conduz o caminhante
Na paz do pai Oxalá

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Resgatando a infantilidade

 O desprezível é a morada do divino. Não por acaso, enquanto andou por essa Terra, Jesus circulava pelos mais diversos tipos de ambientes, mas era em meio à fina flor da mulambada que o mestre parecia sentir-se mais à vontade. Cobradores de impostos, prostitutas e leprosos eram os seus amigos. Aliás, nem na hora da partida dispensou tão honradas companhias. Sem o toque dos clarins, pregado na cruz entre dois ladrões, ali, entregou o seu espírito.
Entretanto, dentre todos esses tipos marginalizados, um parecia cativar especialmente a atenção do nazareno: as crianças. E, aproveitando esse irromper do mês de setembro - com a criançada solta, solta! - nada melhor do que descer um pouco do salto e aprender um pouquinho com elas. Oni Ibejada!

Que nós, enquanto humanidade - mesmo que estejamos começando a vislumbrar um período de transição -, ainda vivemos uma época de nossa história bastante marcada pelo patriarcado e por uma visão adultocêntrica da realidade não é muito novidade para ninguém. Mesmo que não haja um olhar mais analítico para a questão, a experiência, contudo, não deixa negar.

Embora nos últimos anos já venhamos observando um resgate até significativo - mas ainda muito incipiente - do feminino na nossa cultura, o mesmo ainda não chegou a acontecer em relação ao universo infantil. Obviamente, a referência aqui não é em relação a questões de garantias jurídicas e legislativas que têm por objetivo oferecer proteção a essa identidade socialmente construída à que chamamos criança. Não refiro-me, portanto, à instituição criança, mas à criança enquanto ser existente. E, como tal, digno, por si só, de legitimidade. Nessa outra perspectiva, parece-me, estamos ainda bastante imobilizados.

Por que será, então, que ainda hoje, nessa época que alguns chamam de pós-moderna - onde acredita-se que as metanarrativas garantidoras de um sentido mais amplo para a vida vêm perdendo sua força - o “infantil” ainda é visto em termos tão pejorativos?

Tenho para mim que isso ocorre porque, geralmente, os discursos de poder encontram-se alicerçados sobre falsas dualidades que, após serem revestidas de um caráter ético, passam a imperar como se grandes verdades fossem. Assim é que, desde nossa mais tenra idade - porra, sempre quis usar essa expressão! -, não só somos, direta e subliminarmente, educados por discursos culturais que estabelecem uma oposição entre aquilo que é “coisa de criança” e aquilo que é “coisa de adulto”, como, para deixar a situação ainda mais delicada, atribuindo-se sentidos de valor a essas duas condições, acabam por enfiar-nos, goela abaixo, a ideia - que, rapidamente, transforma-se em sentimento! - de que comportar-se de maneira adulta é melhor do que comportar-se de maneira infantil. Ora, melhor para quem? É o tipo da ideia que, por melhor encadeamento lógico que tenha, não passa no teste da realidade. Afinal, não sei vocês, mas o universo dos adultos que me cercam não parece ser, assim, tão mais interessante do que o mundo de simplicidade mágica onde habitam as crianças.

E Jesus sabia disso. Não era bobo. Embora seus ensinamentos tenham sido sequestrados e transfigurados pelas próprias estruturas de controle e poder que sua existência tanto ameaçava e colocava em xeque - a cruz não foi à toa! -, seu exemplo vivo continua tendo muito a nos inspirar.

Um relato bastante conhecido conta que, certa vez, enquanto contava parábolas aos discípulos e recebia algumas outras pessoas para que fossem curadas, algumas pessoas trouxeram crianças para perto dele. Os discípulos, porém, não gostaram muito da ideia e tentaram impedir. Atitude bem razoável dentro de uma mentalidade adultocentrada que, diante de um momento considerado muito sério - como, de fato, era -, não permitia espaço para baboseiras infantis. Certamente, eles sabiam que as crianças costumam ter o dom de quebrar a ordem do tão enrijecido mundo adulto e, evidentemente, essa ameaça, dificilmente, é vista com bons olhos.

O adulto já aprendeu o que é certo e errado, o que pode e o que não pode. Já domesticou seu comportamento para conseguir atender à expectativas exteriores do meio em que vive e já está munido de uma quantidade suficiente de máscaras que o permitem interagir num leque razoavelmente amplo de situações que, porventura, se coloquem diante dele. A criança, não. A criança, ainda não tendo passado por seu processo de adulteração, simplesmente existe. Existe com a força da natureza. E isso é perigoso...

Jesus, por sua vez, compartilhando dessa mesma periculosidade infantil, reconhece nos pequeninos a essência do próprio Deus e ordena aos discípulos que abram passagem para que todas as crianças possam chegar até ele. Não satisfeito, subvertendo ainda mais toda uma estrutura mental coletiva extremamente enraizada, olha para as crianças, fita os discípulos nos olhos a atira sua flecha de amor: delas é o Reino dos céus. Aquele que não se fizer como uma delas, nele não entrará.

Com essa atitude, o que Jesus nos apresenta é um Reino dos céus simples como simples é a forma como as crianças concebem o mundo. Mais até do que como concebem, ele nos apresenta um Reino dos céus simples como simples é a forma como as crianças recebem o mundo. Confiando plenamente do poder de seus pais - seus deuses -, elas, com muita tranquilidade, simplesmente, sabem que nada lhes faltará. É essa certeza que faz de seu mundo um infinito parque de diversões e de suas vidas uma eterna hora do recreio. Eis o Reino dos céus! Um lugar existencial, de fato, muito, muito perigoso! Nada ameaça mais a manutenção do status quo do que gente que não tem nada para alcançar. Afinal, quem não tem o que alcançar também não tem o que perder. Tem, diante de si, apenas a liberdade como caminho.

          O convite irrecusável do mestre, portanto, a todos nós, é que resgatemos essa infantilidade que em algum momento da jornada possa ter ficado soterrada em meio aos entulhos que a - também maravilhosa - experiência do amadurecimento nos traz. Afinal, se o Reino de Deus realmente pertence às criancinhas, livres somos para - como elas - querermos tudo! Dessa forma, experienciando a vida de uma maneira mais integral, já não precisaremos ficar na angustiante posição de ter que escolher entre isto ou aquilo, mas - transpondo toda dualidade - estaremos aptos a receber, de braços abertos, tudo o que, de maneira abundante, o Universo tem, tão carinhosamente, nos dado. Que a criançada nos ensine a alegria e a leveza do caminho. Um salve a todas as criancinhas!