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segunda-feira, 22 de julho de 2013

Obra de arte e verdade em Heidegger


Introdução

            Desde o seu surgimento enquanto disciplina filosófica, a Estética tem sido, geralmente, abordada a partir de uma perspectiva subjetivista. Após a revolução copernicana operada por Kant no campo da metafísica, o sujeito ganha expressão e passa a ser considerado o centro na manifestação artística, colocando a arte numa posição de subserviência relativa ao estado sentimental do homem em sua relação com o belo.
            Reagindo a esse antropocentrismo moderno exacerbado, Heidegger propõe a construção de outra via de reflexão sobre a arte, que tem como raiz orientadora fundamental uma indagação mais básica: o que é a obra de arte? Essa brevíssima reflexão procurará, assim, abordar alguns aspectos do pensamento heideggeriano que ajudam a responder esse questionamento e, nesse contexto, discutirá a relação entre a obra de arte e o aparecimento da verdade.

O resgate ontológico

            O principal propósito de Heidegger em A Origem da Obra de Arte parece ser fugir de um tipo de discussão reducionista que deixa a arte circunscrita apenas ao âmbito estético. Para ele, a arte pertence também à outra esfera: a ontológica.
            Segundo Heidegger, a contribuição que a metafísica ocidental ofereceu à filosofia, através de seu enfoque ôntico, foi a criação de um modelo formal onde o próprio ser só pode ser compreendido a partir do ente. Uma espécie de ser já previamente entificado. Essa circularidade decorrente da pressuposição do ser como ente teria sido, inclusive, responsável pela identidade muitas vezes encontrada entre ser e ente na história da filosofia.
            O que Heidegger pretende, portanto, é marcar claramente a distinção entre ser e ente e, por fim, afirmar o estatuto ontológico da obra de arte. Nesse sentido, ele entende que o questionamento pelo ser se manifesta através de uma abertura do próprio ser que já estaria dada.

Na cotidianidade se revela desde sempre e já um comportamento para com o ser que, embora possa aparecer inicialmente isento de uma autenticidade (Eingentlichkeit), compete a um ente que abriga a possibilidade de tornar radical essa relação com o ser. Este ente a que é dado a possibilidade de um “reportar-se” autêntico ao ser, Heidegger o chama Dasein. O Dasein é isso que no seu mais variado modo de “dispor-se” aponta, sempre, para um relacionamento com o ser, mesmo que mediado pelo ente, neste sentido, uma entidade desta maneira “determinada” assume no seu “ser-dado” o elemento de transcendência que faz dela um  ultrapassar-a-si-mesmo enquanto mero ente, isto é, não é absolutamente um “ser-dado”, uma simples presença, onde se recolhe a “inércia” da Vorhendenheit  (ALMEIDA, 2007, p. 4) [1].

            Dessa forma, pode-se compreender o Dasein como um ente que possui uma constituição ontológica. Ou, em outras palavras, a sua própria estrutura ôntica como abertura. E, a importância fundamental dessa abertura é que ela não só o distingue do ente enquanto ser-simplesmente-dado, como é ela quem lhe confere existência, entendendo existência aqui em seu sentido etimológico: voltar-se para fora.
            Assim, o que Heiddeger está demonstrando através da transcendência do ser que constitui o Desein é a própria transitividade da existência. Ao realçar o caráter ontológico dessa transitividade para o ser, o filósofo alemão consegue deixar clara a diferença entre o ente existente e o ente em seu modo de simples presença, ou, de outro modo, como imediatidade dada. É somente através dessa distinção que o Dasein poderá liberar o espaço para o aparecimento da verdade.

Arte e verdade

            O conceito de mímeses predominante na metafísica tradicional certamente não é fruto do acaso, mas – antes – decorre de uma maneira peculiar de interpretar a verdade do ente como conformidade e adequação. Para Heidegger, entretanto, essa dinâmica é bastante diferente. “Na obra, não é de uma reprodução do ente singular que de cada vez está aí presente, que se trata, mas sim da reprodução da essência geral das coisas” (HEIDEGGER, 2005, p. 28) [2], afirma ele.
            Utilizando o exemplo do quadro de Van Gogh, ele mostra que a autenticidade artística da obra reside não na perfeição da representação pictórica, mas naquilo que nela aparece iluminado. O sapato, portanto, deixa de ser apenas um sapato, um ser-utensílio corriqueiro do dia-a-dia, e torna-se – enquanto obra – a própria ocasião da verdade.
            O fascínio produzido pela arte estaria, justamente, nesse processo de iluminação. Algo do sapato aparece na obra e esse algo – submerso no cotidiano desgastante do mundo da utilidade – acaba por mostrar-se essencial ao ente. É o que Heidegger entende como “a abertura do ente ao seu ser: o acontecimento da verdade”. (Ibidem, p. 29)
            Aqui, Heidegger opta por recorrer ao sentido grego de alétheia, cuja origem remonta ao passado mítico do rio Léthe, o rio do esquecimento. Para ele, dessa forma, o processo artístico de iluminação do ente seria um não-esquecer, ou melhor, um des-esquecer, um des-ocultar.

Ao promover o desocultamento da verdade do ente, a obra “inaugura” um mundo no qual o ente doravante revelado se encerrava. O “mundanizar” da obra, Heidegger diz que é efetuado pelo instituir, mediante o qual o ente aparece inscrito numa totalidade referencial de sentido. A obra, por conseguinte, descobre a essência do ente ao situá-lo na sua verdadeira mundanidade. Essa “mundividência”, que a arte ao se pôr em obra proporciona, se remete necessariamente à dimensão elementar do telúrico, da terra, que, por sua vez, emerge no “interior” do mundo (ALMEIDA, Op. Cit. p. 12).

            Aparentemente, o que Heideger chama de terra aqui seria, justamente, esse meio “material-imaterial” que encontra a realidade da obra enquanto obra de arte. Na transfiguração dos elementos que compõem a obra – a cor, a pedra, o som, a palavra, etc. –, esses mesmos elementos apontam para o in-surgir da terra através da obra. Em outras palavras: “Aquilo que está obscurecido na terra é justamente o que é iluminado na arte, fazendo com que a terra apareça na abertura do mundo”. (Ibidem, p.13)
            Por outro lado, o que se observa é que mesmo na abertura que a arte promove, a terra não deixa de se esconder completamente. Se por uma via ela se revela – e, em certo sentido, é transformada pela obra de arte –, por outra, ela permanece a se ocultar num mundo que permanece como abertura. Ao mesmo tempo em que ganha realidade a partir da abertura do ser ao ente, ela fecha-se em si mesma, visto que tudo o que se ilumina pressupõe de antemão o próprio ambiente de iluminação.

Conclusão

            Ao unir desvelamento e ocultação em um processo indissociável, Heidegger consegue conferir unidade à compreensão de verdade que procura sustentar. Para ele, todo desvelamento implica, por outro lado, um velamento correspondente a que chama dissimulação. Por isso, é importante notar que ao conceito de alétheia corresponde não só esse aparecimento da verdade, mas, também, a permanência da não-verdade como ocultação dissimuladora.
            Na medida em que a verdade está dada nessa unidade de desvelamento e ocultação, esse pôr-se-em-obra da verdade deve ser visto não só como o produzir da verdade, mas – de forma ainda mais radical – como a própria verdade sendo fonte dessa produção.
            Portanto, mesmo sendo a obra de arte um fruto da fabricação humana, com seu suporte coisal aparentemente manifesto como algo produzido, o ser-criado verdadeiro da obra não pode ser reduzido a esse resultado do simples fazer. Nas palavras de Almeida:

Toda mundanidade se estabelece na oposição beligerante à retração-a-si da terra. Todo povo histórico, enquanto situado num mundo, portanto, numa decisão e numa abertura, apresenta um modo determinado onde se encontra resolvido este conflito estrutural, que no fundo diz respeito àquilo que se abre e se oferece, o ser, e aquilo que é posto em evidência no interior da abertura, o ente. Assim, em toda abertura o que está em evidência é o ente, é por meio da manifestação do ente que a verdade se resguarda ao se ocultar. Por mais que a “veiculação” do ser pelo ente seja a dignidade daquilo que a arte evidencia e traz à luz, ao se constituir num modo em que o ente em sua totalidade emerge, isto é, em que ocorre a apresentação do ser do ente, a criação artística nunca esgota, ou melhor, nunca pode significar um total desvelamento da verdade, pois que o ser do ente aparecerá sempre na forma da oferta e da  presentação. Esta doação imediata do ser do ente é fundada, em cada abertura, em cada mundo decidido, numa compreensão histórica do acontecimento da verdade (Ibidem, p. 15).

            Dessa maneira, a obra de arte – apesar de compartilhar desse aspecto de fabricação humana, assim como os utensílios – difere-se dessas outras manufaturas justamente por seu poder de romper com o olhar habitual do ente ao enxergá-lo em sua totalidade. Assim, não é de se espantar, portanto, que, chamando atenção para esse poder de instituição do mundo através da renovação constante desse relacionamento do ser com o ente, Heidegger venha a afirmar que a própria história encontra suas raízes mais profundas na esfera da arte.

Referências bibliográficas

- ALMEIDA, Patrick de Oliveira. Existência e Arte - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano III – Número III – janeiro a dezembro de 2007.
- HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. [Trad.: Maria da Conceição Costa] – Edições 70: Lisboa, 2005.





[1] ALMEIDA, Patrick de Oliveira. Existência e Arte - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano III – Número III – janeiro a dezembro de 2007.

[2] HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. [Trad.: Maria da Conceição Costa] – Edições 70: Lisboa, 2005.


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