Introdução
Desde
o seu surgimento enquanto disciplina filosófica, a Estética tem sido,
geralmente, abordada a partir de uma perspectiva subjetivista. Após a revolução
copernicana operada por Kant no campo da metafísica, o sujeito ganha expressão
e passa a ser considerado o centro na manifestação artística, colocando a arte
numa posição de subserviência relativa ao estado sentimental do homem em sua relação
com o belo.
Reagindo a esse antropocentrismo
moderno exacerbado, Heidegger propõe a construção de outra via de reflexão
sobre a arte, que tem como raiz orientadora fundamental uma indagação mais
básica: o que é a obra de arte? Essa brevíssima reflexão procurará, assim,
abordar alguns aspectos do pensamento heideggeriano que ajudam a responder esse
questionamento e, nesse contexto, discutirá a relação entre a obra de arte e o aparecimento da verdade.
O resgate ontológico
O principal propósito de Heidegger
em A Origem da Obra de Arte parece
ser fugir de um tipo de discussão reducionista que deixa a arte circunscrita
apenas ao âmbito estético. Para ele, a arte pertence também à outra esfera: a
ontológica.
Segundo Heidegger, a contribuição
que a metafísica ocidental ofereceu à filosofia, através de seu enfoque ôntico,
foi a criação de um modelo formal onde o próprio ser só pode ser compreendido a partir do ente. Uma espécie de ser já previamente entificado. Essa
circularidade decorrente da pressuposição do ser como ente teria sido,
inclusive, responsável pela identidade muitas vezes encontrada entre ser e ente
na história da filosofia.
O que Heidegger pretende, portanto,
é marcar claramente a distinção entre ser e ente e, por fim, afirmar o estatuto
ontológico da obra de arte. Nesse sentido, ele entende que o questionamento
pelo ser se manifesta através de uma abertura
do próprio ser que já estaria dada.
Na
cotidianidade se revela desde sempre e já um comportamento para com o ser que,
embora possa aparecer inicialmente isento de uma autenticidade (Eingentlichkeit), compete a um ente que
abriga a possibilidade de tornar radical essa relação com o ser. Este ente a que
é dado a possibilidade de um “reportar-se” autêntico ao ser, Heidegger o chama Dasein. O Dasein é isso que no seu mais variado modo de “dispor-se” aponta,
sempre, para um relacionamento com o ser, mesmo que mediado pelo ente, neste
sentido, uma entidade desta maneira “determinada” assume no seu “ser-dado” o
elemento de transcendência que faz dela um
ultrapassar-a-si-mesmo enquanto mero ente, isto é, não é absolutamente
um “ser-dado”, uma simples presença, onde se recolhe a “inércia” da Vorhendenheit (ALMEIDA, 2007, p. 4) [1].
Dessa forma, pode-se compreender o Dasein como um ente que possui uma
constituição ontológica. Ou, em outras palavras, a sua própria estrutura ôntica
como abertura. E, a importância fundamental dessa abertura é que ela não só o
distingue do ente enquanto ser-simplesmente-dado,
como é ela quem lhe confere existência, entendendo existência aqui em seu
sentido etimológico: voltar-se para fora.
Assim, o que Heiddeger está
demonstrando através da transcendência do ser que constitui o Desein é a própria transitividade da
existência. Ao realçar o caráter ontológico dessa transitividade para o ser, o
filósofo alemão consegue deixar clara a diferença entre o ente existente e o
ente em seu modo de simples presença, ou, de outro modo, como imediatidade
dada. É somente através dessa distinção que o Dasein poderá liberar o espaço para o aparecimento da verdade.
Arte e verdade
O conceito de mímeses predominante na metafísica tradicional certamente não é
fruto do acaso, mas – antes – decorre de uma maneira peculiar de interpretar a
verdade do ente como conformidade e adequação. Para Heidegger, entretanto,
essa dinâmica é bastante diferente. “Na obra, não é de uma reprodução do ente
singular que de cada vez está aí presente, que se trata, mas sim da reprodução
da essência geral das coisas” (HEIDEGGER, 2005, p. 28) [2], afirma
ele.
Utilizando o exemplo do quadro de
Van Gogh, ele mostra que a autenticidade artística da obra reside não na
perfeição da representação pictórica, mas naquilo que nela aparece iluminado. O sapato, portanto, deixa de
ser apenas um sapato, um ser-utensílio
corriqueiro do dia-a-dia, e torna-se – enquanto obra – a própria ocasião da
verdade.
O fascínio produzido pela arte
estaria, justamente, nesse processo de iluminação. Algo do sapato aparece na
obra e esse algo – submerso no cotidiano desgastante do mundo da utilidade –
acaba por mostrar-se essencial ao ente. É o que Heidegger entende como “a
abertura do ente ao seu ser: o acontecimento da verdade”. (Ibidem, p. 29)
Aqui, Heidegger opta por recorrer ao
sentido grego de alétheia, cuja
origem remonta ao passado mítico do rio Léthe, o rio do esquecimento. Para ele,
dessa forma, o processo artístico de iluminação do ente seria um não-esquecer,
ou melhor, um des-esquecer, um des-ocultar.
Ao
promover o desocultamento da verdade do ente, a obra “inaugura” um mundo no
qual o ente doravante revelado se encerrava. O “mundanizar” da obra, Heidegger
diz que é efetuado pelo instituir, mediante o qual o ente aparece inscrito numa
totalidade referencial de sentido. A obra, por conseguinte, descobre a essência
do ente ao situá-lo na sua verdadeira mundanidade. Essa “mundividência”, que a
arte ao se pôr em obra proporciona, se remete necessariamente à dimensão
elementar do telúrico, da terra, que, por sua vez, emerge no “interior” do
mundo (ALMEIDA, Op. Cit. p. 12).
Aparentemente, o que Heideger chama
de terra aqui seria, justamente, esse meio “material-imaterial” que encontra a
realidade da obra enquanto obra de arte. Na transfiguração dos elementos que
compõem a obra – a cor, a pedra, o som, a palavra, etc. –, esses mesmos
elementos apontam para o in-surgir da
terra através da obra. Em outras palavras: “Aquilo que está obscurecido na
terra é justamente o que é iluminado na arte, fazendo com que a terra apareça
na abertura do mundo”. (Ibidem, p.13)
Por outro lado, o que se observa é
que mesmo na abertura que a arte promove, a terra não deixa de se esconder
completamente. Se por uma via ela se revela – e, em certo sentido, é
transformada pela obra de arte –, por outra, ela permanece a se ocultar num
mundo que permanece como abertura. Ao mesmo tempo em que ganha realidade a
partir da abertura do ser ao ente, ela fecha-se em si mesma, visto que tudo o
que se ilumina pressupõe de antemão o próprio ambiente de iluminação.
Conclusão
Ao unir desvelamento e ocultação em
um processo indissociável, Heidegger consegue conferir unidade à compreensão de
verdade que procura sustentar. Para ele, todo desvelamento implica, por outro
lado, um velamento correspondente a que chama dissimulação. Por isso, é importante notar que ao conceito de alétheia corresponde não só esse
aparecimento da verdade, mas, também, a permanência da não-verdade como
ocultação dissimuladora.
Na medida em que a verdade está dada
nessa unidade de desvelamento e ocultação, esse pôr-se-em-obra da verdade deve
ser visto não só como o produzir da verdade, mas – de forma ainda mais radical
– como a própria verdade sendo fonte dessa produção.
Portanto, mesmo sendo a obra de arte
um fruto da fabricação humana, com seu suporte coisal aparentemente manifesto
como algo produzido, o ser-criado verdadeiro da obra não pode ser reduzido a
esse resultado do simples fazer. Nas palavras de Almeida:
Toda
mundanidade se estabelece na oposição beligerante à retração-a-si da terra.
Todo povo histórico, enquanto situado num mundo, portanto, numa decisão e numa
abertura, apresenta um modo determinado onde se encontra resolvido este
conflito estrutural, que no fundo diz respeito àquilo que se abre e se oferece,
o ser, e aquilo que é posto em evidência no interior da abertura, o ente.
Assim, em toda abertura o que está em evidência é o ente, é por meio da
manifestação do ente que a verdade se resguarda ao se ocultar. Por mais que a
“veiculação” do ser pelo ente seja a dignidade daquilo que a arte evidencia e
traz à luz, ao se constituir num modo em que o ente em sua totalidade emerge,
isto é, em que ocorre a apresentação do ser do ente, a criação artística nunca esgota,
ou melhor, nunca pode significar um total desvelamento da verdade, pois que o
ser do ente aparecerá sempre na forma da oferta e da presentação. Esta doação imediata do ser do
ente é fundada, em cada abertura, em cada mundo decidido, numa compreensão
histórica do acontecimento da verdade (Ibidem,
p. 15).
Dessa maneira, a obra de arte –
apesar de compartilhar desse aspecto de fabricação humana, assim como os
utensílios – difere-se dessas outras manufaturas justamente por seu poder de
romper com o olhar habitual do ente ao enxergá-lo em sua totalidade. Assim, não
é de se espantar, portanto, que, chamando atenção para esse poder de
instituição do mundo através da renovação constante desse relacionamento do ser
com o ente, Heidegger venha a afirmar que a própria história encontra suas
raízes mais profundas na esfera da arte.
Referências bibliográficas
-
ALMEIDA, Patrick de Oliveira. Existência e Arte - Revista Eletrônica
do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de
São João Del-Rei – Ano III – Número III – janeiro a dezembro de 2007.
-
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. [Trad.: Maria
da Conceição Costa] – Edições 70: Lisboa, 2005.
[1] ALMEIDA, Patrick de Oliveira. Existência
e Arte - Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e
Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano III – Número III –
janeiro a dezembro de 2007.
[2] HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. [Trad.: Maria da Conceição Costa] –
Edições 70: Lisboa, 2005.
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