Desde
que, há relativamente pouco tempo, comecei a me questionar mais seriamente
sobre alternativas para o modo de vida tido como normal pela grande sociedade –
de forma bem resumida: trabalhar para pagar contas –, uma série de outros
questionamentos foi aparecendo pelo caminho. Conforme mais ia conhecendo novas
propostas e os ditos outros paradigmas, a impressão que me dava era que estava
cada vez mais longe de alcançar a tão falada sustentabilidade. Não demorou
muito, porém, para as peças irem começando a se encaixar. Afinal, não há nada
de muito novo debaixo do sol.
Inicialmente perdido, sem saber
direito por onde começar, percebi que precisava de conhecimento. A total falta
de direção, entretanto, misturada a uma mentalidade ainda bastante mergulhada
no tal sistema a que tanto repudiava, fez-me concluir que o primeiro passo
dessa jornada seria fazer algum curso que me capacitasse a operar essa
transição. Hoje, passado algum tempo – nem tanto, é verdade – rio sozinho de
mim mesmo, observando a patetice desse tipo de pensamento. Mas, faz parte.
Ainda bem que Deus não depende da nossa genialidade para nos conduzir em seus
caminhos.
Matriculei-me, então, em um curso
cuja proposta seria o desenvolvimento de habilidades que capacitassem seus
alunos a criar ambientes sustentáveis nos mais variados âmbitos da vida. O
cumprimento da grade curricular, com todas as exigências, em tese, faria de nós
designers para a sustentabilidade. A
ansiedade, misturada com a ingenuidade do início, fizeram com que os dois mil
reais necessários de investimento passassem até despercebidos.
Sou fodido. Sempre fui. Depois ainda
que descobri que Roberto DaMatta – antropólogo brasileiro de quem gosto muito –,
em sua obra clássica Carnavais, Malandros
e Heróis, transformou o fodido em categoria sociológica, não fico nem mais
constrangido com isso. Acho até cool.
Como disse a um grande amigo outro dia: não tenho dinheiro e, como não me
esforço nenhum pouco para ter, sei que, provavelmente, nunca terei. Apesar
disso, nunca me faltou nada. Nunca. Nada. Das menores às maiores coisas; das
que dependiam de dinheiro ou das que não dependiam. Não, também não nasci em
família rica. Aliás, fodidos são meus pais. Eu sou só um fodidinho.
A questão é que, obviamente, não
tinha essa quantia para realizar o curso. Mas, como queria muito, dei meu
jeito. Fodido não tem dinheiro, mas, geralmente, tem amigo. Estava para começar
a ganhar uma bolsa de iniciação científica e decidi que iria usar,
praticamente, metade dela para custear o tal do curso. Como, entretanto, ainda
não tinha começado a receber a bolsa, peguei um adiantamento com um casal de amigos-irmãos e
botei o projeto para frente. Estava, realmente, muito empolgado com tudo.
O curso começou e, no início, foi um
grande impacto. Só de estar ali naquele lugar lindo, reunido só com gente boa,
pessoas maravilhosas e com consciências elevadíssimas, vivenciando quase que o
próprio reino de Deus na Terra, foi, de fato, uma experiência muito deliciosa. Experimentei
vários momentos singulares que me proporcionaram sensações comparáveis somente àquelas
proporcionadas pelos brinquedinhos entorpecentes. Como sempre tive afinidade com
os entorpecentes, não posso negar que gostei muito.
Entretanto, também assim como toda
onda, tudo o que sobe, desce. E não demorou muito para o encanto inicial, aos
poucos, ir abrindo espaço para a realidade. Comecei a me sentir extremamente
desconfortável de saber que se eu não possuísse dois mil reais, como vários
amigos meus não possuem, eu não poderia estar ali desfrutando daqueles momentos
tão especiais e daqueles “aprendizados” (a não ser que fosse um dos meia dúzia
dos agraciados bolsistas que compunham o universo de 70 participantes). Começou
a me incomodar muito perceber o fato de que a grande heterogeneidade que eu
percebia no início, revelava-se, na verdade, bem mais homogênea do que parecia.
Em pouco tempo, sentia-me como em qualquer outro desses ambientes plastificados
que adoramos construir para viver nosso conforto existencial.
Qualquer outro, não. Vamos falar a
verdade. Quem me conhece pelo menos um pouco, sabe que sempre tive uma relação
muito forte com religião, espiritualidade, ou seja lá qual o nome que você
queira dar àquilo que eu chamo de relacionamento com Deus. Obviamente, ao longo
da caminhada, já frequentei muitos ambientes eclesiásticos, ou, num português
mais claro: igreja. E, inevitavelmente, aquele ambiente me recordava muito a vibe da ekklesia. Infelizmente, porém, não em sua idealidade discursiva,
mas na rarefeita realidade da sua carência de verdade. Mas, se a ideia de
igreja te deixa desconfortável, pode ficar à vontade para usar a imagem de uma
terapia de grupo para ricos com crise de consciência, se preferir. No fundo, dá
quase no mesmo. Com a diferença, é claro, de que na igreja tem pobre. E preto.
Quando falo de falta de verdade, não
falo, no entanto, de uma verdade conceitual e abstrata. Apesar de estudar e
gostar de filosofia, não acredito nesse tipo de verdade. Como bem me ensinou
meu irmão dinamarquês do século XIX – Søren Kierkegaard –, verdade só é verdade
se tiver alguém que a viva. É, portanto, algo de cunho existencial a que me
refiro quando falo de verdade. E, nesse sentido, começou a ficar tudo bem
estranho e difícil. Na sequência, contudo, como é comum após toda dificuldade, as
coisas começaram a clarear.
Ora, como pode um curso que se
propõe a falar – a falar, não, a formar designers
– de sustentabilidade no Brasil – uma realidade onde mais de 80% das pessoas não
ganha dois mil reais nem para passar o mês – custar dois mil reais (no valor
“solidário”)? Não, mas olha bem, amado,
você tem que entender que tudo isso tem um custo e esse custo precisa ser
compartilhado. Sim, isso eu já entendi. E é exatamente nisso em que a
proposta absorve e se iguala à mentalidade de mercado de qualquer empresa
convencional. Aliás, a relação de alguns desses líderes com as principais
escolas de business do país talvez não seja mera coincidência.
A questão não é se os custos devem
ou não ser compartilhados. Acho que isso é bastante claro para todo mundo. Insistir
nesse ponto acaba sendo só uma forma de deslocar o foco do problema. A questão
é que um curso de sustentabilidade (seja ele qual for; esse é só um exemplo em
um universo bastante vasto de um mercado bem movimentado) que custa dois mil
reais – ou mil, ou seja lá quanto for o valor estipulado para a exclusão e
determinação daqueles que terão ou não acesso – é, em si, insustentável. Ou é,
no mínimo, uma sustentabilidade exclusivista. E, sim, carinha para caceta.
No final das contas, o jogo é bem
simples e em quase nada se difere das já bem conhecidas e batidas fraudes que
temos inventado ao longo do tempo para sobreviver em um mundo onde o dinheiro é
o bem supremo: um grupo de pessoas desesperadas por sobrevivência – e, certamente, não estou falando do suprimento de necessidades básicas, mas da
alimentação das demandas de um mundo que as produz incessantemente – se reúne e
decide ensinar outras pessoas, também desesperadas por sobrevivência, a
sobreviver. Em troca de dinheiro, é claro. Afinal,
essa é uma energia muito importante e ninguém está propondo uma ruptura com o
mundo, mas uma transição para um novo paradigma. Enquanto isso, sabe como
é, né...? É melhor encostar o bumbum na parede.
Ao contrário do que possa parecer,
entretanto, não estou sugerindo que isso tudo seja pilantragem. Quer dizer: que
é pilantragem é óbvio, mas não pura pilantragem. Sinceramente não acho que seja
aquele tipo de pilantragem que nasce da maldade de uma índole perversa. Até
agora, pelo menos, não esbarrei com ninguém assim. Ninguém, não. Sempre tem um
filho da puta. Tomei – junto com um amigo – uma volta de 800 reais de um desses
pilantrinhas pseudo-zen, que sumiu com o dinheiro e não fez o trabalho
combinado. Não é que tenha deixado de fazer uma parte. Não. Não fez nada mesmo.
Mas, deixa para lá. Isso é problema dele.
O tipo de pilantragem a que me
refiro é outra, de tipo bem mais sutil: aquela que se constrói à custa de muito
autoestelionato. Aquela que vem com uma roupa bem bonita e recheada com
bastante altruísmo e um desejo enorme de salvar o mundo. Infelizmente – ou não
–, desejos como esse só encontram abrigo no desespero de vidas fragmentadas e incapazes
de compreender que o mundo sou eu e eu sou o mundo e que, consequentemente,
mudá-lo é mudar a mim mesmo e mudar a mim mesmo é mudá-lo. Essa revolução
interior, entretanto, dado o seu caráter radical e inconciliável com nossos
joguetezinhos e barganhas existenciais, já não desperta tantos adeptos. Embora , é verdade, também esteja vendendo bastante.
Com isso tudo, acho, honestamente,
que foi bom ter tido esse tipo de experiência logo no início da jornada. Embora,
evidentemente, tudo isso tenha feito com que me sentisse um tremendo idiota,
confesso que é disso que eu mais gosto na vida. Não descobri ainda sensação
melhor do que me sentir com cara de idiota diante de um novo aprendizado: aquele
momento em que, com as calças na mão e a bunda no chão, a vida te olha cheia de
graça e te deixa como única opção aquela risadinha cheia de gratidão. Aprender
é sempre muito bom.
Por isso, quero terminar esse texto
agradecendo – de coração – a todas os pilantrinhas e as pilantrinhas – vocês
são lindas, por sinal! – que estão aí na correria atrás de dinheiro para
sustentar suas vidas maneiríssimas. Desejo que vocês vendam muitos cursos, viajem
bastante, conheçam os lugares mais paradisíacos do planeta, comam nos
restaurantes veganos mais caros da cidade, comprem e vendam muitos produtos
orgânicos e ecológicos a preços estratosféricos e, acima de tudo, muita, mas
muita, luz e energia positiva nessa caminhada rumo à nova era. Aho, pilantragem!
P.S.:
Brincadeiras à parte – confesso que a ironia ainda é o maior dos meus vícios –,
que possamos prosseguir – juntos uns com os outros, com sinceridade e
honestidade diante da vida – no caminho da transformação pessoal que cada um
deve realizar, e para a qual, felizmente, não há alternativa. Se o
estabelecimento de uma nova era, definitivamente, não está ao nosso alcance, concentremo-nos
na concretização de novas vidas. Que a abundante graça de Deus nos conduza!
kkkk Salve Rodrigo, mandando a verdade nua e crua de cursos loucos altruístas de/para um grupo seleto.
ResponderExcluirQue a consciência dessas pessoas que pelo menos em nível mental estão buscando o altruísmo e a luz despertem para a prática a e realidade desse altruísmo e amor ao próximo.
Que as nossas consciências despertem a cada dia. É todo mundo junto!
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