A boca fala do que o coração tá cheio

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Aho, pilantragem!




Desde que, há relativamente pouco tempo, comecei a me questionar mais seriamente sobre alternativas para o modo de vida tido como normal pela grande sociedade – de forma bem resumida: trabalhar para pagar contas –, uma série de outros questionamentos foi aparecendo pelo caminho. Conforme mais ia conhecendo novas propostas e os ditos outros paradigmas, a impressão que me dava era que estava cada vez mais longe de alcançar a tão falada sustentabilidade. Não demorou muito, porém, para as peças irem começando a se encaixar. Afinal, não há nada de muito novo debaixo do sol.
            Inicialmente perdido, sem saber direito por onde começar, percebi que precisava de conhecimento. A total falta de direção, entretanto, misturada a uma mentalidade ainda bastante mergulhada no tal sistema a que tanto repudiava, fez-me concluir que o primeiro passo dessa jornada seria fazer algum curso que me capacitasse a operar essa transição. Hoje, passado algum tempo – nem tanto, é verdade – rio sozinho de mim mesmo, observando a patetice desse tipo de pensamento. Mas, faz parte. Ainda bem que Deus não depende da nossa genialidade para nos conduzir em seus caminhos.
            Matriculei-me, então, em um curso cuja proposta seria o desenvolvimento de habilidades que capacitassem seus alunos a criar ambientes sustentáveis nos mais variados âmbitos da vida. O cumprimento da grade curricular, com todas as exigências, em tese, faria de nós designers para a sustentabilidade. A ansiedade, misturada com a ingenuidade do início, fizeram com que os dois mil reais necessários de investimento passassem até despercebidos.
            Sou fodido. Sempre fui. Depois ainda que descobri que Roberto DaMatta – antropólogo brasileiro de quem gosto muito –, em sua obra clássica Carnavais, Malandros e Heróis, transformou o fodido em categoria sociológica, não fico nem mais constrangido com isso. Acho até cool. Como disse a um grande amigo outro dia: não tenho dinheiro e, como não me esforço nenhum pouco para ter, sei que, provavelmente, nunca terei. Apesar disso, nunca me faltou nada. Nunca. Nada. Das menores às maiores coisas; das que dependiam de dinheiro ou das que não dependiam. Não, também não nasci em família rica. Aliás, fodidos são meus pais. Eu sou só um fodidinho.
            A questão é que, obviamente, não tinha essa quantia para realizar o curso. Mas, como queria muito, dei meu jeito. Fodido não tem dinheiro, mas, geralmente, tem amigo. Estava para começar a ganhar uma bolsa de iniciação científica e decidi que iria usar, praticamente, metade dela para custear o tal do curso. Como, entretanto, ainda não tinha começado a receber a bolsa, peguei um adiantamento com um casal de amigos-irmãos e botei o projeto para frente. Estava, realmente, muito empolgado com tudo.
            O curso começou e, no início, foi um grande impacto. Só de estar ali naquele lugar lindo, reunido só com gente boa, pessoas maravilhosas e com consciências elevadíssimas, vivenciando quase que o próprio reino de Deus na Terra, foi, de fato, uma experiência muito deliciosa. Experimentei vários momentos singulares que me proporcionaram sensações comparáveis somente àquelas proporcionadas pelos brinquedinhos entorpecentes. Como sempre tive afinidade com os entorpecentes, não posso negar que gostei muito.
            Entretanto, também assim como toda onda, tudo o que sobe, desce. E não demorou muito para o encanto inicial, aos poucos, ir abrindo espaço para a realidade. Comecei a me sentir extremamente desconfortável de saber que se eu não possuísse dois mil reais, como vários amigos meus não possuem, eu não poderia estar ali desfrutando daqueles momentos tão especiais e daqueles “aprendizados” (a não ser que fosse um dos meia dúzia dos agraciados bolsistas que compunham o universo de 70 participantes). Começou a me incomodar muito perceber o fato de que a grande heterogeneidade que eu percebia no início, revelava-se, na verdade, bem mais homogênea do que parecia. Em pouco tempo, sentia-me como em qualquer outro desses ambientes plastificados que adoramos construir para viver nosso conforto existencial.
            Qualquer outro, não. Vamos falar a verdade. Quem me conhece pelo menos um pouco, sabe que sempre tive uma relação muito forte com religião, espiritualidade, ou seja lá qual o nome que você queira dar àquilo que eu chamo de relacionamento com Deus. Obviamente, ao longo da caminhada, já frequentei muitos ambientes eclesiásticos, ou, num português mais claro: igreja. E, inevitavelmente, aquele ambiente me recordava muito a vibe da ekklesia. Infelizmente, porém, não em sua idealidade discursiva, mas na rarefeita realidade da sua carência de verdade. Mas, se a ideia de igreja te deixa desconfortável, pode ficar à vontade para usar a imagem de uma terapia de grupo para ricos com crise de consciência, se preferir. No fundo, dá quase no mesmo. Com a diferença, é claro, de que na igreja tem pobre. E preto.
            Quando falo de falta de verdade, não falo, no entanto, de uma verdade conceitual e abstrata. Apesar de estudar e gostar de filosofia, não acredito nesse tipo de verdade. Como bem me ensinou meu irmão dinamarquês do século XIX – Søren Kierkegaard –, verdade só é verdade se tiver alguém que a viva. É, portanto, algo de cunho existencial a que me refiro quando falo de verdade. E, nesse sentido, começou a ficar tudo bem estranho e difícil. Na sequência, contudo, como é comum após toda dificuldade, as coisas começaram a clarear.
            Ora, como pode um curso que se propõe a falar – a falar, não, a formar designers – de sustentabilidade no Brasil – uma realidade onde mais de 80% das pessoas não ganha dois mil reais nem para passar o mês – custar dois mil reais (no valor “solidário”)? Não, mas olha bem, amado, você tem que entender que tudo isso tem um custo e esse custo precisa ser compartilhado. Sim, isso eu já entendi. E é exatamente nisso em que a proposta absorve e se iguala à mentalidade de mercado de qualquer empresa convencional. Aliás, a relação de alguns desses líderes com as principais escolas de business do país talvez não seja mera coincidência.
            A questão não é se os custos devem ou não ser compartilhados. Acho que isso é bastante claro para todo mundo. Insistir nesse ponto acaba sendo só uma forma de deslocar o foco do problema. A questão é que um curso de sustentabilidade (seja ele qual for; esse é só um exemplo em um universo bastante vasto de um mercado bem movimentado) que custa dois mil reais – ou mil, ou seja lá quanto for o valor estipulado para a exclusão e determinação daqueles que terão ou não acesso – é, em si, insustentável. Ou é, no mínimo, uma sustentabilidade exclusivista. E, sim, carinha para caceta.
            No final das contas, o jogo é bem simples e em quase nada se difere das já bem conhecidas e batidas fraudes que temos inventado ao longo do tempo para sobreviver em um mundo onde o dinheiro é o bem supremo: um grupo de pessoas desesperadas por sobrevivência – e, certamente, não estou falando do suprimento de necessidades básicas, mas da alimentação das demandas de um mundo que as produz incessantemente – se reúne e decide ensinar outras pessoas, também desesperadas por sobrevivência, a sobreviver. Em troca de dinheiro, é claro. Afinal, essa é uma energia muito importante e ninguém está propondo uma ruptura com o mundo, mas uma transição para um novo paradigma. Enquanto isso, sabe como é, né...? É melhor encostar o bumbum na parede.
            Ao contrário do que possa parecer, entretanto, não estou sugerindo que isso tudo seja pilantragem. Quer dizer: que é pilantragem é óbvio, mas não pura pilantragem. Sinceramente não acho que seja aquele tipo de pilantragem que nasce da maldade de uma índole perversa. Até agora, pelo menos, não esbarrei com ninguém assim. Ninguém, não. Sempre tem um filho da puta. Tomei – junto com um amigo – uma volta de 800 reais de um desses pilantrinhas pseudo-zen, que sumiu com o dinheiro e não fez o trabalho combinado. Não é que tenha deixado de fazer uma parte. Não. Não fez nada mesmo. Mas, deixa para lá. Isso é problema dele.
            O tipo de pilantragem a que me refiro é outra, de tipo bem mais sutil: aquela que se constrói à custa de muito autoestelionato. Aquela que vem com uma roupa bem bonita e recheada com bastante altruísmo e um desejo enorme de salvar o mundo. Infelizmente – ou não –, desejos como esse só encontram abrigo no desespero de vidas fragmentadas e incapazes de compreender que o mundo sou eu e eu sou o mundo e que, consequentemente, mudá-lo é mudar a mim mesmo e mudar a mim mesmo é mudá-lo. Essa revolução interior, entretanto, dado o seu caráter radical e inconciliável com nossos joguetezinhos e barganhas existenciais, já não desperta tantos adeptos. Embora , é verdade, também esteja vendendo bastante.
            Com isso tudo, acho, honestamente, que foi bom ter tido esse tipo de experiência logo no início da jornada. Embora, evidentemente, tudo isso tenha feito com que me sentisse um tremendo idiota, confesso que é disso que eu mais gosto na vida. Não descobri ainda sensação melhor do que me sentir com cara de idiota diante de um novo aprendizado: aquele momento em que, com as calças na mão e a bunda no chão, a vida te olha cheia de graça e te deixa como única opção aquela risadinha cheia de gratidão. Aprender é sempre muito bom.
            Por isso, quero terminar esse texto agradecendo – de coração – a todas os pilantrinhas e as pilantrinhas – vocês são lindas, por sinal! – que estão aí na correria atrás de dinheiro para sustentar suas vidas maneiríssimas. Desejo que vocês vendam muitos cursos, viajem bastante, conheçam os lugares mais paradisíacos do planeta, comam nos restaurantes veganos mais caros da cidade, comprem e vendam muitos produtos orgânicos e ecológicos a preços estratosféricos e, acima de tudo, muita, mas muita, luz e energia positiva nessa caminhada rumo à nova era. Aho, pilantragem!



P.S.: Brincadeiras à parte – confesso que a ironia ainda é o maior dos meus vícios –, que possamos prosseguir – juntos uns com os outros, com sinceridade e honestidade diante da vida – no caminho da transformação pessoal que cada um deve realizar, e para a qual, felizmente, não há alternativa. Se o estabelecimento de uma nova era, definitivamente, não está ao nosso alcance, concentremo-nos na concretização de novas vidas. Que a abundante graça de Deus nos conduza!
           
            

2 comentários:

  1. kkkk Salve Rodrigo, mandando a verdade nua e crua de cursos loucos altruístas de/para um grupo seleto.

    Que a consciência dessas pessoas que pelo menos em nível mental estão buscando o altruísmo e a luz despertem para a prática a e realidade desse altruísmo e amor ao próximo.

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  2. Que as nossas consciências despertem a cada dia. É todo mundo junto!

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