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segunda-feira, 8 de julho de 2013

Filosofia sem escolas


“Era manhã. Uma criançada pequena estava tendo aulas de circo. Praticavam cambalhotas num colchão. E com que prazer o faziam! Não havia nenhuma que parecesse distraída ou aborrecida. No circo não há distração nem aborrecimento. A distração aparece só quando o que está acontecendo é chato. Quem está distraído está, na realidade, atraído por outra coisa...” (ALVES, 2004, p. 51).

            A beleza das palavras de Rubem Alves e sua sensibilidade crítica em relação à educação podem ser encontradas ao longo de, praticamente, toda sua obra. Entretanto, é nas páginas de Aprendiz de mim – um bairro que virou escola que o filósofo, teólogo e educador mineiro, a partir da análise de um caso concreto, nos inspira de maneira lúcida e consciente a pensar ambientes e modos de aprendizagem que se constituam, verdadeiramente, como alternativas ao nosso antigo e falido modelo escolar herdado do século das Luzes.
            O livro é um mergulho poético na experiência realizada por uma ONG que decidiu transformar o caótico ambiente urbano de um bairro paulista marcado por sérios problemas sociais em uma escola a céu aberto. Nele já não havia fronteira entre comunidade e escola e o aprender voltou a ser parte integrante da vida, sendo possível a qualquer momento e em qualquer canto: nas praças, cinemas, becos, livrarias, etc. A própria interação com o espaço e com as pessoas constituía, de forma natural,  ambiente e método de aprendizagem, que, organicamente, iam sendo construídos.
            O ponto alto do projeto Aprendiz está na percepção acertada de que o ato de aprender é parte integrante da vida e, portanto, não pode ser realizado apartado dela, como, de maneira artificial, as instituições monopolizadoras e legitimadoras do ensino e do saber costumam fazer. Segundo Rubem Alves:

“É comum dizer que a função das escolas é preparar as crianças e os adolescentes para a vida. Como se a vida fosse algo que irá acontecer em algum ponto do futuro, depois da formatura, depois de entrar no mercado de trabalho [...]. Mas a vida não acontece no futuro. Ela só acontece no aqui e no agora. O objetivo da aprendizagem é viver, não é preparar para um futuro a ser vivido. Frequentemente esse futuro não acontece. O aprendiz morre antes. Então a aprendizagem foi tempo perdido? Não terá valido para nada? Aprender não é preparar-se para a vida. É viver no lugar e no momento em que se está vivendo. Viver é aprender. É nisso que está a excitação do viver. Caso contrário a vida é um tédio insuportável. Então a aprendizagem só pode acontecer no espaço-tempo em que a vida está sendo vivida.” (Ibidem, p.89)

            Em direção semelhante, já na década de 70, o filósofo francês Jean-François Lyotard, ao identificar a descrença generalizada nos metarrelatos que sustentaram a modernidade e a mudança da natureza do próprio saber advinda da revolução técnico-científica, profetizava o fim da era do professor e uma nova era que seria marcada justamente pela intensidade dos fluxos de informação. “Eis o que distingue a nossa época: a incerteza em que nos encontramos quanto à possibilidade de pensar os nossos objectivos. O mal estar dos docentes provém, em parte, daí: eles já não sabem qual é a finalidade da sua actividade.” (LYOTARD apud KECHIKIAN, 1993, p. 50), afirmou Lyotard em entrevista a Anita Kechikian.

“É muito bonito descrever o que deve ser a transmissão de um saber rigoroso, sem concessão, mas é necessário igualmente ter em conta a situação presente nas aulas. Não podemos proceder como se estivéssemos em plena época das Luzes. Enviava-se o pequeno camponês de Auverne à escola para que ele progredisse no saber, na sociedade, na liberdade. Ele queria-o. Quem é que hoje deseja a escola?” (Ibidem, p. 53).

            Na perspectiva lyotardiana, se fosse possível atribuir uma finalidade à educação, sua hipótese é a de que esta seria a de “tornar as pessoas mais sensíveis às diferenças, de fazê-las sair do pensamento massificante. É preciso educar, instruir, nutrir o espírito de discernimento, formar para a complexidade” (Ibidem, p.50), declara o francês.
            Compartilhando destes mesmos valores, penso que a criação de ambientes saudáveis que favoreçam o fluxo dos saberes é a missão de qualquer pessoa que, de fato, esteja comprometida não só com questões relativas à educação, mas com a construção de um mundo mais igualitário – do ponto de vista das relações de poder – e, consequentemente, mais humano. Assim é que, portanto, não apresentarei aqui uma proposta de aula ou discorrerei sobre o papel do professor. Assim como Lyotard, já não acredito em ambos. Não no século XXI.
            Pegando carona na esteira do pensamento do filósofo austríaco Ivan Illich – grande crítico da institucionalização da vida experimentada pelas sociedades modernas – penso que, antes de tudo, é preciso estabelecer os termos nos quais os processos de aprendizagem podem se dar. Segundo ele:

“A escolaridade não promove nem a aprendizagem e nem a justiça, porque os educadores insistem em embrulhar a instrução com diplomas. Misturam-se, na escola, aprendizagem e atribuição de funções sociais. Aprender significa adquirir nova habilidade ou compreensão, enquanto que a promoção depende da opinião formada dos outros. A aprendizagem é, muitas vezes, resultado de instrução, ao passo que a escolha para uma função ou categoria no mercado de trabalho depende, sempre mais, do número de anos de frequência à escola” (ILLICH, 1973, p. 36).

            Portanto, se realmente se pretende discutir propostas de educação que tenham – pelo menos em algum sentido – um caráter libertador para o indivíduo e para a sociedade, é mister que essas propostas sejam elas mesmas – em sua concepção – alicerçadas sobre a liberdade advinda do amor, sem a qual verdade alguma se estabelece.
            Nesse sentido, todo e qualquer instrumento de controle, coerção e legitimação artificial deve ser removido. Não há espaço para certificados – que, como demonstra Illich, serve apenas à fragmentação da sociedade, criando um mar de excluídos –; para obrigatoriedade de presença – pelo simples fato de que só se faz obrigado o que é chato e, por motivos óbvios, o chato não se aprende –; e, especialmente, para sistemas de avaliação tacanhos e ilusórios, que, no final das contas, reduzem-se a mecanismos de barganha e, não raras vezes, transformam-se em armas nas mãos de gente que enxerga a diferença como ameaça a sua própria configuração existencial.
            Dessa maneira, já que os modelos de educação formal – de uma forma ou de outra – são, praticamente, todos construídos sobre esses mecanismos de controle, a opção por uma alternativa não formal torna-se imperativa. Como já foi dito, o ensino e o aprendizado dependem de ambientes que o favoreçam e, nesse sentido, o papel do educador deve se concentrar mais em propiciar a ocorrência destes ambientes, onde o aprendizado se dá de forma natural e orgânica, do que em ficar inventando metodologias e “pedagogismos” – utilizando a expressão de Lyotard – para transmissão de conteúdos pouco ou nada significativos.
            Além disso, se Rubem Alves está certo quando afirma que o destino de todos nós é voltar a ser criança, também já não faz mais sentido – ou nunca fez – a separação por faixa etária no processo educativo. Por isso, sempre que penso a tarefa da educação, invade a minha mente não a imagem fria e sombria dos corredores de uma escola com seus alunos subdivididos por idade em suas celas, mas, sim, os lugares comuns da cidade frequentados por gente de todas as idades, classes sociais, religiões, etc. e que se encontram em torno de um interesse comum compartilhado.
            Um encontro filosófico como esse – que nada tem a ver com uma aula – já me parece, em si mesmo, um bom tema para reflexão. Encontro – e não aula – porque o encontro, ao contrário da aula – marcada pela clara distinção entre a ofuscante luz do professor e densidade da treva do aluno – traz em si as marcas da igualdade. Só em um encontro pode haver diálogo. Jamais em uma aula. Isso porque, conforme ouvi certa vez de um educador com o qual me encontrei: o diálogo só é possível entre seres humanos; jamais entre papéis sociais.
            Assim, pouco importa se o local é uma praça, uma galeria de arte, a sombra de uma árvore ou a mesa do bar. Importa, sim, que o ambiente criado entre os participantes seja um ambiente de confiabilidade e respeito. Somente a partir daí se pode começar a pensar em qualquer troca humana sem que haja violência de uma ou ambas as partes.
            Num contexto como esse, por exemplo, imaginando um grupo heterogêneo de pessoas voluntárias que se organizaram tendo em vista apenas o interesse comum pela filosofia, penso que a investigação poderia partir – intermediada, ou não, pelo auxílio de algum texto filosófico – da própria situação concreta e existente, a saber: o encontro em si e sua finalidade.
            Segundo o filósofo francês Edgar Morin, “a educação deve mostrar que não há conhecimento que não esteja, em algum grau, ameaçado pelo erro e pela ilusão” (MORIN, 2011, p.19). Dessa maneira, a mola propulsora da conversa – que deve ser resguardada como conversa para que não se perverta em disputa de egos – poderia ser a própria natureza do conhecimento filosófico e sua possibilidade de comunicação.
            Segundo Morin, toda mente é dotada de um potencial de mentira para si própria (self-deception), que constituiria uma fonte permanente de erros e ilusões. Mais do que isso, nossos sistemas de ideias estariam não apenas sujeitos ao erro, como também protegeriam esses erros e ilusões toda vez que fossem confrontados com informações que não lhes conviessem ou que não estivessem preparados para assimilar. Nesse sentido, a grande responsável pela correta distinção entre o imaginário e o real seria a racionalidade. Porém, não qualquer racionalidade.

“A verdadeira racionalidade, aberta por natureza, dialoga com o real que lhe resiste. Opera o ir e vir incessante entre a instância lógica e a instância empírica; é o fruto do debate argumentado das ideias, e não a propriedade de um sistema de ideias. O racionalismo que ignora os seres, a subjetividade, a afetividade e a vida é irracional. A racionalidade deve reconhecer a parte de afeto, de amor e de arrependimento. A verdadeira racionalidade conhece os limites da lógica, do determinismo e do mecanicismo; sabe que a mente humana não poderia ser onisciente, que a realidade comporta o mistério. Negocia com a irracionalidade, o obscuro, o irracionalizável. É não só crítica, mas autocrítica. Reconhece-se a verdadeira racionalidade pela capacidade de identificar suas insuficiências.” (Ibidem, p.23)

A partir do suporte teórico desse pequeno fragmento, temos tudo o que necessitamos para mergulhar no problema do conhecimento. Essa incursão, obviamente, não pode ser planejada, visto que – se realmente pretende ser dialogal – dependerá totalmente da escuta ativa dos participantes, com suas contribuições singulares e imprevisíveis.
De qualquer forma, o que deve não só ser levado em consideração, mas ressaltado, é que “não se joga o jogo da verdade e do erro somente na verificação empírica e na coerência lógica das teorias. Joga-se também, profundamente, na zona invisível dos paradigmas.” (Ibidem, p.24) Qualquer proposta educativa que ignore essa perspectiva já nasce fadada ao fracasso justamente devido a esse caráter fundante do paradigma. Para Morin:

“O paradigma desempenha um papel, ao mesmo tempo, subterrâneo e soberano em qualquer teoria, doutrina ou ideologia. O paradigma é inconsciente, mas irriga o pensamento consciente, controla-o e, nesse sentido, é também supraconsciente. Em resumo, o paradigma instaura relações primordiais, que constituem axiomas, determina conceitos, comanda discursos e/ou teorias. Organiza a organização deles e gera a geração ou a regeneração” (Ibidem, p. 25).

Assim, o que o filósofo francês pretende chamar atenção – e que é tanto nosso objeto de estudo, quanto seu modus operandi – é que, em qualquer proposta de educação, são as interrogações a respeito da possibilidade do conhecimento que constituem o próprio oxigênio dessas propostas. Para ele, “o conhecimento do conhecimento, que comporta a integração do conhecedor em seu conhecimento, deve ser, para a educação, um princípio e uma necessidade permanentes” (Ibidem, p. 29). No contexto da busca da verdade, as atividades observadoras não podem ser dissociadas das atividades auto-observadoras, assim como a crítica não deve se separar da auto-crítica ou os processos reflexivos dos processos de objetivação.
Esse tipo de pensamento apresentado por Morin é o que ficou conhecido como pensamento complexo. Nele, ao contrário das teorias marcadas pelos diversos mecanismos de simplismificação (no sentido não de tornar simples, mas simplista) da razão, o pensamento é trabalhado levando-se em consideração sua complexidade, buscando-se sempre a compreensão dos contextos, da relação entre o todo e as partes, a multidimensionalidade e, especialmente, a condição humana.
Aliás, para Morin, “a educação do futuro deverá ser o ensino primeiro e universal, centrado na condição humana” (Ibidem, p.43). O que a educação tradicional tem feito até aqui, seja a partir do seu pensamento disjuntivo – que concebe nossa humanidade de maneira insular, fora do cosmos que a rodeia, da matéria física e do espírito do qual somos constituídos – ou do seu pensamento redutor – que restringe a humanidade a um substrato puramente bioanatômico – impede qualquer possibilidade de concepção do homem como unidade complexa (Cf. Ibidem, p 43). E conhecer o ser humano é, antes de tudo, “situá-lo no universo, e não separá-lo dele”. (Ibidem, p. 43). Daí a necessidade urgente de se questionar, teórica e existencialmente, não mais ideias, mas paradigmas.


Referências Bibliográficas:

- ALVES, Rubem. Aprendiz de mim – um bairro que virou escola. Campinas, SP: Papirus, 2004.
- ILLICH, Ivan: Sociedade sem Escolas. Petrópolis, RJ: Vozes, 1973.
LYOTARD, François: Entrevista, in KECHIKIAN, Anita. Os Filósofos e a Educação – entrevistas. Edições Colibri, Lisboa, 1993.
- MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2011.


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