“Era
manhã. Uma criançada pequena estava tendo aulas de circo. Praticavam
cambalhotas num colchão. E com que prazer o faziam! Não havia nenhuma que
parecesse distraída ou aborrecida. No circo não há distração nem aborrecimento.
A distração aparece só quando o que está acontecendo é chato. Quem está
distraído está, na realidade, atraído por outra coisa...” (ALVES, 2004, p. 51).
A beleza das palavras de Rubem Alves
e sua sensibilidade crítica em relação à educação podem ser encontradas ao
longo de, praticamente, toda sua obra. Entretanto, é nas páginas de Aprendiz de mim – um bairro que virou escola
que o filósofo, teólogo e educador mineiro, a partir da análise de um caso
concreto, nos inspira de maneira lúcida e consciente a pensar ambientes e modos
de aprendizagem que se constituam, verdadeiramente, como alternativas ao nosso
antigo e falido modelo escolar herdado do século das Luzes.
O livro é um mergulho poético na
experiência realizada por uma ONG que decidiu transformar o caótico ambiente
urbano de um bairro paulista marcado por sérios problemas sociais em uma escola
a céu aberto. Nele já não havia fronteira entre comunidade e escola e o
aprender voltou a ser parte integrante da vida, sendo possível a qualquer
momento e em qualquer canto: nas praças, cinemas, becos, livrarias, etc. A
própria interação com o espaço e com as pessoas constituía, de forma
natural, ambiente e método de
aprendizagem, que, organicamente, iam sendo construídos.
O ponto alto do projeto Aprendiz está na percepção acertada de
que o ato de aprender é parte integrante da vida e, portanto, não pode ser
realizado apartado dela, como, de maneira artificial, as instituições
monopolizadoras e legitimadoras do ensino e do saber costumam fazer. Segundo
Rubem Alves:
“É
comum dizer que a função das escolas é preparar as crianças e os adolescentes
para a vida. Como se a vida fosse algo que irá acontecer em algum ponto do
futuro, depois da formatura, depois de entrar no mercado de trabalho [...]. Mas
a vida não acontece no futuro. Ela só acontece no aqui e no agora. O objetivo
da aprendizagem é viver, não é preparar para um futuro a ser vivido.
Frequentemente esse futuro não acontece. O aprendiz morre antes. Então a
aprendizagem foi tempo perdido? Não terá valido para nada? Aprender não é
preparar-se para a vida. É viver no lugar e no momento em que se está vivendo.
Viver é aprender. É nisso que está a excitação do viver. Caso contrário a vida
é um tédio insuportável. Então a aprendizagem só pode acontecer no espaço-tempo
em que a vida está sendo vivida.” (Ibidem,
p.89)
Em direção semelhante, já na década
de 70, o filósofo francês Jean-François Lyotard, ao identificar a descrença
generalizada nos metarrelatos que sustentaram a modernidade e a mudança da
natureza do próprio saber advinda da revolução técnico-científica, profetizava
o fim da era do professor e uma nova era que seria marcada justamente pela
intensidade dos fluxos de informação. “Eis o que distingue a nossa época: a
incerteza em que nos encontramos quanto à possibilidade de pensar os nossos
objectivos. O mal estar dos docentes provém, em parte, daí: eles já não sabem
qual é a finalidade da sua actividade.” (LYOTARD apud KECHIKIAN, 1993, p. 50), afirmou Lyotard em entrevista a Anita
Kechikian.
“É
muito bonito descrever o que deve ser a transmissão de um saber rigoroso, sem
concessão, mas é necessário igualmente ter em conta a situação presente nas
aulas. Não podemos proceder como se estivéssemos em plena época das Luzes.
Enviava-se o pequeno camponês de Auverne à escola para que ele progredisse no
saber, na sociedade, na liberdade. Ele queria-o. Quem é que hoje deseja a
escola?” (Ibidem, p. 53).
Na perspectiva lyotardiana, se fosse
possível atribuir uma finalidade à educação, sua hipótese é a de que esta seria
a de “tornar as pessoas mais sensíveis às diferenças, de fazê-las sair do
pensamento massificante. É preciso educar, instruir, nutrir o espírito de
discernimento, formar para a complexidade” (Ibidem,
p.50), declara o francês.
Compartilhando destes mesmos
valores, penso que a criação de ambientes saudáveis que favoreçam o fluxo dos
saberes é a missão de qualquer pessoa que, de fato, esteja comprometida não só com
questões relativas à educação, mas com a construção de um mundo mais igualitário
– do ponto de vista das relações de poder – e, consequentemente, mais humano.
Assim é que, portanto, não apresentarei aqui uma proposta de aula ou
discorrerei sobre o papel do professor. Assim como Lyotard, já não acredito em
ambos. Não no século XXI.
Pegando carona na esteira do
pensamento do filósofo austríaco Ivan Illich – grande crítico da
institucionalização da vida experimentada pelas sociedades modernas – penso
que, antes de tudo, é preciso estabelecer os termos nos quais os processos de
aprendizagem podem se dar. Segundo ele:
“A
escolaridade não promove nem a aprendizagem e nem a justiça, porque os
educadores insistem em embrulhar a instrução com diplomas. Misturam-se, na
escola, aprendizagem e atribuição de funções sociais. Aprender significa
adquirir nova habilidade ou compreensão, enquanto que a promoção depende da
opinião formada dos outros. A aprendizagem é, muitas vezes, resultado de
instrução, ao passo que a escolha para uma função ou categoria no mercado de
trabalho depende, sempre mais, do número de anos de frequência à escola”
(ILLICH, 1973, p. 36).
Portanto, se realmente se pretende
discutir propostas de educação que tenham – pelo menos em algum sentido – um
caráter libertador para o indivíduo e para a sociedade, é mister que essas
propostas sejam elas mesmas – em sua concepção – alicerçadas sobre a liberdade
advinda do amor, sem a qual verdade alguma se estabelece.
Nesse sentido, todo e qualquer
instrumento de controle, coerção e legitimação artificial deve ser removido.
Não há espaço para certificados – que, como demonstra Illich, serve apenas à
fragmentação da sociedade, criando um mar de excluídos –; para obrigatoriedade
de presença – pelo simples fato de que só se faz obrigado o que é chato e, por
motivos óbvios, o chato não se aprende –; e, especialmente, para sistemas de
avaliação tacanhos e ilusórios, que, no final das contas, reduzem-se a
mecanismos de barganha e, não raras vezes, transformam-se em armas nas mãos de
gente que enxerga a diferença como ameaça a sua própria configuração
existencial.
Dessa maneira, já que os modelos de
educação formal – de uma forma ou de outra – são, praticamente, todos
construídos sobre esses mecanismos de controle, a opção por uma alternativa não
formal torna-se imperativa. Como já foi dito, o ensino e o aprendizado dependem
de ambientes que o favoreçam e, nesse sentido, o papel do educador deve se
concentrar mais em propiciar a ocorrência destes ambientes, onde o aprendizado
se dá de forma natural e orgânica, do que em ficar inventando metodologias e
“pedagogismos” – utilizando a expressão de Lyotard – para transmissão de
conteúdos pouco ou nada significativos.
Além disso, se Rubem Alves está
certo quando afirma que o destino de todos nós é voltar a ser criança, também
já não faz mais sentido – ou nunca fez – a separação por faixa etária no
processo educativo. Por isso, sempre que penso a tarefa da educação, invade a
minha mente não a imagem fria e sombria dos corredores de uma escola com seus
alunos subdivididos por idade em suas celas, mas, sim, os lugares comuns da
cidade frequentados por gente de todas as idades, classes sociais, religiões,
etc. e que se encontram em torno de um interesse comum compartilhado.
Um encontro filosófico como esse –
que nada tem a ver com uma aula – já me parece, em si mesmo, um bom tema para
reflexão. Encontro – e não aula – porque o encontro, ao contrário da aula –
marcada pela clara distinção entre a ofuscante luz do professor e densidade da
treva do aluno – traz em si as marcas da igualdade. Só em um encontro pode
haver diálogo. Jamais em uma aula. Isso porque, conforme ouvi certa vez de um educador
com o qual me encontrei: o diálogo só é possível entre seres humanos; jamais
entre papéis sociais.
Assim, pouco importa se o local é
uma praça, uma galeria de arte, a sombra de uma árvore ou a mesa do bar.
Importa, sim, que o ambiente criado entre os participantes seja um ambiente de
confiabilidade e respeito. Somente a partir daí se pode começar a pensar em
qualquer troca humana sem que haja violência de uma ou ambas as partes.
Num contexto como esse, por exemplo,
imaginando um grupo heterogêneo de pessoas voluntárias que se organizaram tendo
em vista apenas o interesse comum pela filosofia, penso que a investigação
poderia partir – intermediada, ou não, pelo auxílio de algum texto filosófico –
da própria situação concreta e existente, a saber: o encontro em si e sua
finalidade.
Segundo o filósofo francês Edgar Morin,
“a educação deve mostrar que não há conhecimento que não esteja, em algum grau,
ameaçado pelo erro e pela ilusão” (MORIN, 2011, p.19). Dessa maneira, a mola
propulsora da conversa – que deve ser resguardada como conversa para que não se
perverta em disputa de egos – poderia ser a própria natureza do conhecimento
filosófico e sua possibilidade de comunicação.
Segundo Morin, toda mente é dotada
de um potencial de mentira para si própria (self-deception),
que constituiria uma fonte permanente de erros e ilusões. Mais do que isso,
nossos sistemas de ideias estariam não apenas sujeitos ao erro, como também
protegeriam esses erros e ilusões toda vez que fossem confrontados com
informações que não lhes conviessem ou que não estivessem preparados para
assimilar. Nesse sentido, a grande responsável pela correta distinção entre o
imaginário e o real seria a racionalidade. Porém, não qualquer racionalidade.
“A
verdadeira racionalidade, aberta por natureza, dialoga com o real que lhe
resiste. Opera o ir e vir incessante entre a instância lógica e a instância
empírica; é o fruto do debate argumentado das ideias, e não a propriedade de um
sistema de ideias. O racionalismo que ignora os seres, a subjetividade, a
afetividade e a vida é irracional. A racionalidade deve reconhecer a parte de
afeto, de amor e de arrependimento. A verdadeira racionalidade conhece os
limites da lógica, do determinismo e do mecanicismo; sabe que a mente humana
não poderia ser onisciente, que a realidade comporta o mistério. Negocia com a
irracionalidade, o obscuro, o irracionalizável. É não só crítica, mas autocrítica.
Reconhece-se a verdadeira racionalidade pela capacidade de identificar suas
insuficiências.” (Ibidem, p.23)
A
partir do suporte teórico desse pequeno fragmento, temos tudo o que
necessitamos para mergulhar no problema do conhecimento. Essa incursão,
obviamente, não pode ser planejada, visto que – se realmente pretende ser
dialogal – dependerá totalmente da escuta ativa dos participantes, com suas
contribuições singulares e imprevisíveis.
De
qualquer forma, o que deve não só ser levado em consideração, mas ressaltado, é
que “não se joga o jogo da verdade e do erro somente na verificação empírica e
na coerência lógica das teorias. Joga-se também, profundamente, na zona
invisível dos paradigmas.” (Ibidem,
p.24) Qualquer proposta educativa que ignore essa perspectiva já nasce fadada
ao fracasso justamente devido a esse caráter fundante do paradigma. Para Morin:
“O
paradigma desempenha um papel, ao mesmo tempo, subterrâneo e soberano em
qualquer teoria, doutrina ou ideologia. O paradigma é inconsciente, mas irriga
o pensamento consciente, controla-o e, nesse sentido, é também supraconsciente.
Em resumo, o paradigma instaura relações primordiais, que constituem axiomas,
determina conceitos, comanda discursos e/ou teorias. Organiza a organização
deles e gera a geração ou a regeneração” (Ibidem,
p. 25).
Assim,
o que o filósofo francês pretende chamar atenção – e que é tanto nosso objeto
de estudo, quanto seu modus operandi
– é que, em qualquer proposta de educação, são as interrogações a respeito da
possibilidade do conhecimento que constituem o próprio oxigênio dessas
propostas. Para ele, “o conhecimento do conhecimento, que comporta a integração
do conhecedor em seu conhecimento, deve ser, para a educação, um princípio e
uma necessidade permanentes” (Ibidem,
p. 29). No contexto da busca da verdade, as atividades observadoras não podem
ser dissociadas das atividades auto-observadoras, assim como a crítica não deve
se separar da auto-crítica ou os processos reflexivos dos processos de
objetivação.
Esse
tipo de pensamento apresentado por Morin é o que ficou conhecido como
pensamento complexo. Nele, ao contrário das teorias marcadas pelos diversos
mecanismos de simplismificação (no sentido não de tornar simples, mas simplista)
da razão, o pensamento é trabalhado levando-se em consideração sua
complexidade, buscando-se sempre a compreensão dos contextos, da relação entre
o todo e as partes, a multidimensionalidade e, especialmente, a condição
humana.
Aliás,
para Morin, “a educação do futuro deverá ser o ensino primeiro e universal,
centrado na condição humana” (Ibidem,
p.43). O que a educação tradicional tem feito até aqui, seja a partir do seu
pensamento disjuntivo – que concebe nossa humanidade de maneira insular, fora
do cosmos que a rodeia, da matéria física e do espírito do qual somos
constituídos – ou do seu pensamento redutor – que restringe a humanidade a um
substrato puramente bioanatômico – impede qualquer possibilidade de concepção
do homem como unidade complexa (Cf. Ibidem, p 43). E conhecer o ser humano
é, antes de tudo, “situá-lo no universo, e não separá-lo dele”. (Ibidem, p. 43). Daí a necessidade
urgente de se questionar, teórica e existencialmente, não mais ideias, mas
paradigmas.
Referências
Bibliográficas:
-
ALVES, Rubem. Aprendiz de mim – um bairro que virou escola. Campinas, SP:
Papirus, 2004.
-
ILLICH, Ivan: Sociedade sem Escolas. Petrópolis, RJ: Vozes, 1973.
- LYOTARD, François: Entrevista, in
KECHIKIAN, Anita. Os Filósofos e a
Educação – entrevistas. Edições Colibri, Lisboa, 1993.
-
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo:
Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2011.
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