A boca fala do que o coração tá cheio

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

É chegado o reino dos céus...



– Escuta, não te assustes: lembra-te que eu comi do fruto proibido e no entanto não fui fulminada pela orgia de ser. Então, ouve: isso quer dizer que me salvarei ainda mais do que eu me salvaria se não tivesse comido da vida... Ouve, por eu ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita. A identidade pode ser perigosa por causa do intenso prazer que se tornasse apenas prazer. Mas agora estou aceitando amar a coisa!
E não é perigoso, juro que não é perigoso.
Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos. Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente.
- Escuta. Eu estava habituada somente a transcender. Esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe que adiava a atualidade para uma promessa e para um futuro.
Mas descubro que não é sequer necessário ter esperança.
É muito mais grave. Ah, sei que estou de novo mexendo no perigoso e que deveria calar-me para mim mesma. Não se deve dizer que a esperança não é necessária, pois isto poderia vir a se transformar, já que sou fraca, em arma destruidora. E para ti mesmo, em arma utilitária de destruição.
Eu poderia não entender e tu poderias não entender que prescindir da esperança - na verdade significa ação, e hoje. Não, não é destruidor, espera, deixa eu nos entender. Trata-se de assunto proibido não porque é ruim mas porque nós nos arriscamos.
Sei que se eu abandonar o que foi uma vida toda organizada pela esperança, sei que abandonar tudo isso - em prol dessa coisa mais ampla que é estar vivo - abandonar tudo isso dói como separar-se de um filho ainda não nascido. A esperança é um filho ainda não nascido, só prometido, e isso machuca.
Mas sei que ao mesmo tempo quero e não quero mais me conter. É como na agonia da morte: alguma coisa na morte quer se libertar e tem ao mesmo tempo medo de largar a segurança do corpo. Sei que é perigoso falar na falta de esperança, mas ouve - está havendo em mim uma alquimia profunda, e foi no fogo do inferno que ela se forjou. E isso me dá o direito maior: o de errar.
Escuta sem susto e sem sofrimento: o neutro do Deus é tão grande e vital que eu, não agüentando a célula do Deus, eu a tinha humanizado. Sei que é horrivelmente perigoso descobrir agora que o Deus tem a força do impessoal - porque sei, oh eu sei! que é como se isso significasse a destruição do pedido!
E é como se o futuro parasse de vir a existir. E nós não podemos, nós somos carentes.
Mas ouve um instante: não estou falando do futuro, estou falando de uma atualidade permanente. E isto quer dizer que a esperança não existe porque ela não é mais um futuro adiado, é hoje. Porque o Deus não promete. Ele é muito maior que isso: Ele é, e nunca pára de ser. Somos nós que não agüentamos esta luz sempre atual, e então a prome temos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já. O presente é a face hoje do Deus. O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com os olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte - é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo.
Sei que o que estou sentindo é grave e pode me destruir. Porque - porque é como se eu estivesse me dando a notícia de que o reino dos céus já é.
E eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só agüento a sua promessa! A notícia que estou recebendo de mim mesma me soa cataclísmica, e de novo perto do demoníaco. Mas é só por medo. É medo. Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a me prometer a vida. E este é o maior susto que eu posso ter. Antes eu esperava. Mas o Deus é hoje: seu reino já começou.
E seu reino, meu amor, também é deste mundo. Eu não tinha coragem de deixar de ser uma promessa, e eu me prometia, assim como um adulto que não tem coragem de ver que já é adulto e continua a se prometer a maturidade.
E eis que eu estava sabendo que a promessa divina de vida já está se cumprindo, e que sempre se cumpriu. Anteriormente, só de vez em quando, eu era lembrada, numa visão instantânea e logo afastada, de que a promessa não é somente para o futuro, é ontem e é permanentemente hoje: mas isso me era chocante. Eu preferia continuar pedindo, sem ter a coragem de já ter.
E eu tenho. Eu sempre terei. É só precisar, que eu tenho. Precisar não acaba nunca pois precisar é a inerência de meu neutro. Aquilo que eu fizer do pedido e da carência esta será a vida que terei feito de minha vida. Não se colocar em face da esperança não é a destruição do pedido! e não é abster-se da carência. Ah, é aumentá-la, é aumentar infinitamente o pedido que nasce da carência.
[...] O leite da vaca, nós o bebemos. E se a vaca não deixa, usamos de violência. (Na vida e na morte tudo é lícito, viver é sempre questão de vida-e-morte.) Com Deus a gente também pode abrir caminho pela violência. Ele mesmo, quando precisa mais especialmente de um de nós, Ele nos escolhe e nos violenta.
Só que minha violência para com Deus tem que ser comigo mesma. Tenho que me violentar para precisar mais. Para que eu me torne tão desesperadamente maior que eu fique vazia e necessitada. Assim terei tocado na raiz do precisar. O grande vazio em mim será o meu lugar de existir; minha pobreza extrema será uma grande vontade. Tenho que me violentar até não ter nada, e precisar de tudo; quando eu precisar, então eu terei, porque sei que é de justiça dar mais a quem pede mais, minha exigência é o meu tamanho, meu vazio é a minha medida. Também se pode violentar Deus diretamente, através de um amor cheio de raiva.
E Ele compreenderá que essa nossa avidez colérica e assassina é na verdade a nossa cólera sagrada e vital, a nossa tentativa de violentação de nós mesmos, a tentativa de comer mais do que podemos para aumentarmos artificialmente a nossa fome - na exigência de vida tudo é lícito, mesmo o artificial, e o artificial é às vezes o grande sacrifício que se faz para se ter o essencial.
Mas, já que somos pouco e, portanto só precisamos de pouco, por que então não nos basta o pouco? É que adivinhamos o prazer. Como cegos que tateiam, nós pressentimos o intenso prazer de viver.
E se pressentimos, é também porque nós nos sentimos inquietamente usados por Deus, sentimos inquietantemente que estamos sendo usados com um prazer intenso e ininterrupto - aliás, a nossa salvação por enquanto tem sido a de pelo menos sermos usados, não somos inúteis, somos intensamente aproveitados por Deus; corpo e alma e vida são para isso: para a intertroca e o êxtase de alguém. Inquietos, sentimos que estamos sendo usados a cada instante - mas isso acorda em nós o inquietante desejo de também usar.
E Ele não só deixa, como necessita ser usado, ser usado é um modo de ser compreendido. (Em todas as religiões Deus exige ser amado.) Para termos, falta-nos apenas precisar. Precisar é sempre o momento supremo. Assim como a mais arriscada alegria entre um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar é tanta que se sente em agonia e espanto: sem ti eu não poderia viver. A revelação do amor é uma revelação de carência - bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o dilacerante reino da vida.
Se abandono a esperança, estou celebrando a minha carência, e esta é a maior gravidade do viver. E, porque assumi a minha falta, então a vida está à mão. Muitos foram os que abandonaram tudo o que tinham, e foram em busca da fome maior.
Ah perdi a timidez: Deus já é. Nós já fomos anunciados, e foi a minha própria vida errada quem me anunciou para a certa. A beatitude é o prazer contínuo da coisa, o processo da coisa é feito de prazer e de contato com aquilo de que se precisa gradualmente mais. Toda a minha luta fraudulenta vinha de eu não querer assumir a promessa que se cumpre: eu não queria a realidade.
Pois ser real é assumir a própria promessa: assumir a própria inocência e retomar o gosto do qual nunca se teve consciência: o gosto do vivo.


Clarice Lispector

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Para de caô, professor!




 “Eu nasci numa favela. Fui maltratado, humilhado e excluído na escola. E eu jurei que nenhum aluno dos meus seria maltratado, humilhado ou excluído. Mas, quando fui trabalhar, não conseguia isso. Muitos reprovavam, apesar de eu dar aulas muito bem dadas. E o que me levou a mudar foi que eu percebi que uma aula não serve para nada. É prejudicial, é inútil. Só que eu não tinha outra forma de trabalhar. O modo como o professor aprende é o modo como o professor ensina; e tinham me ensinado assim e eu reproduzia. Quando eu percebi que eu não conseguia concretizar a minha vingança – digamos assim – de que todos aprendessem, eu comecei a sentir o chão fugindo dos pés porque eu percebia que não era dando aula que eu ia conseguir.” [1]

Como se sabe até mesmo no senso comum, o atual modelo de educação que vigora de maneira hegemônica em praticamente todo o mundo encontra suas raízes no Iluminismo e na já ultrapassada crença no progresso que decorre da acumulação de conhecimento. É, portanto, no contexto moderno de ascensão histórica de acumulação do capital – que propiciou esse tipo de crença – que a escola, na forma em que conhecemos atualmente, surge e se estabelece como essa espécie de redentora do indivíduo e, numa escala maior, da sociedade.
Junto com a escola, percebemos nascer, assim, toda uma crença e uma maneira de ver o mundo que enxerga o conhecimento como salvação. Nada muito diferente das antigas seitas gnósticas. Contudo, os tempos mudaram. E esse, talvez, seja o nosso grande consolo: o tempo – graças a Deus – passa. E, com ele, vêm as transformações.
Já em 1979 – há 33 anos, portanto –, Jean-François Lyotard chamava a atenção do mundo para aquilo que denominou A Condição Pós-Moderna, ou, simplesmente, O Pós-Moderno. No entendimento do filósofo francês, essa nova fase por que passam as sociedades desenvolvidas teria como característica principal justamente o processo de descrença generalizada nos metarrelatos totalizantes que até então tinham sido responsáveis por oferecer legitimação ao conhecimento durante toda a Modernidade.
A análise de Lyotard, como ele bem ressalta, não apresenta a pós-modernidade em sentido cronológico, como apenas um período novo da história do pensamento, mas concentra-se, sobretudo, nas alterações estruturais por que passaram a natureza do saber diante do elevado nível de desenvolvimento tecnológico que tem se observado nos países ricos nos anos recentes.
Nesse sentido, o que o filósofo pós-moderno nos traz é que a revolução técnico-científica – com o desenvolvimento das complexas redes de comunicação e armazenamento de dados –, somada a esse processo já citado da deslegitimação decorrente da perda da força dos grandes relatos unificadores de sentido, fez com que o essencial do transmissível passasse a ser constituído por um estoque organizado de conhecimentos. Num contexto como esse, a previsão de Lyotard foi de que a era do professor não estaria longe de seu fim.
Hoje, passados mais de trinta anos dessa afirmação, diria que a profecia está mais perto do que nunca de se cumprir. Não por concordar plenamente com a perspectiva lyotardiana sobre o pós-moderno, mas por considerar que a essa altura do campeonato, a modernidade não pode continuar a ser considerada um projeto inacabado – como queria Habermas – mas, sim, um projeto falido. Acabou. Simples assim. E embora ainda permaneça uma espécie de resistência nostálgica por parte de alguns, até onde posso perceber, acabará cada dia mais.
Assim, àqueles que se sentem vocacionados e chamados para trabalhar com educação nesse início de século XXI, daria o seguinte conselho: parem de acreditar que repetindo as mesmas estratégias terão resultados diferentes. De fato, essa é sempre uma opção, mas, tenho a impressão de que, na área da educação, já estamos batendo na mesma tecla há muito tempo. Continuar, embora constitua sempre uma opção, seria pura perda de tempo.
Enquanto não nos dispusermos a pensar outro paradigma que contemple as peculiaridades do novo tempo, continuaremos amarrados ao reformismo conservador dos que gostam das mudanças, mas precisam sobreviver. Muitas vezes a impressão que fica é que queremos transformar o mundo, mas no fundo – no fundo mesmo – não queremos tanto assim. Conforto é bom, e todo mundo sabe. O que se pede é só um pouquinho de honestidade. Consigo mesmo, acima de tudo.
Se ainda assim, a vontade for verdadeira, parece que nem tudo está perdido. Sim, é possível. Não porque exista uma tese de doutorado que comprove, mas porque, simplesmente, na vida real, já existem diversos exemplos que podem servir de inspiração. Em outras palavras: alguém já fez!
As palavras entre aspas que abrem esse texto, por exemplo, foram transcritas de uma entrevista do professor José Pacheco – idealizador da Escola da Ponte, em Portugal –, a quem tive o prazer de ouvir pessoalmente no mês passado. Creio que seu ponto de vista, apesar de, certamente, causar estranhamento aos mais tradicionais, deve, no mínimo, ser levado em consideração por todo aquele que diz – em 12/12/2012 – se preocupar com educação.
No entendimento do educador português, a escola [2] é, tradicionalmente, um lugar de humilhação. Tendo conhecido a exclusão na pele durante sua “formação” – como todos nós, diga-se de passagem – Pacheco decidiu fazer diferente de nós. Sem nunca ter se matriculado numa faculdade de filosofia, Pacheco fez Filosofia.
Foi quando percebeu que estava apenas reproduzindo aquilo por que tinha passado quando aluno, que começou a se perguntar pelo sentido do que estava fazendo. Quem disse que é necessário haver uma aula para que alguém aprenda alguma coisa? Não havia resposta. Apenas a realidade afirmando o contrário: apesar das aulas, os alunos não aprendem. Não todos.
E isso incomodava Pacheco. Como pode pessoas tão diferentes, com tantas singularidades, com talentos diferentes, dificuldades diferentes, gostos diferentes serem submetidas a uma única forma de aprender e avaliar? Não apareceu um professor para responder. Pacheco permaneceu sem resposta e prosseguiu em sua busca.
Qual o sentido de se fazer uma prova? – indagava Pacheco já angustiado. Nenhum – ele mesmo respondeu, percebendo que não apareceria nenhum justo. Ora, pois, a prova não serve para nada! Quem sabe o que está sendo perguntado já sabe, e seria melhor que usasse seu tempo com qualquer outra coisa de seu interesse. Quem não sabe, passará uma hora olhando para uma folha de papel em branco e, ao final, continuará sem saber. Seria melhor aproveitar o tempo para aprender.
Não fazia sentido. Pacheco olhava para a escola e via alunos sendo tratados como em uma linha de montagem. Não havia respeito pelas individualidades e a dignidade humana era pisada. Até a realidade era menor. Também, não era para menos. Não havia um que cresse na riqueza da simplicidade que constitui o real. Não fazia sentido. Simplesmente não fazia sentido, foi o que Pacheco concluiu 3 anos antes de Lyotard publicar o livro que “inaugurou” a pós-modernidade.
Hoje, passados mais de trinta anos da reviravolta que Pacheco iniciou em sua própria vida, a Escola da Ponte é referência mundial e acho que posso considerá-lo bem sucedido em sua jornada. Não é o objetivo dessa reflexão, entretanto, analisar as estratégias utilizadas por ele em seu processo de construção, como se isso, de alguma forma, nos garantisse uma saída. Esse tipo de mentalidade – felizmente – parece já ter sido enterrado junto com a Modernidade.
O ponto central que tenciono destacar nessa breve reflexão sobre a educação contemporânea, por outro lado, é o papel do professor diante de uma realidade dura que, muitas vezes, se apresenta como uma sinuca de bico. E, em especial, o papel do professor de filosofia.
Creio que, diante da própria natureza da filosofia, a última coisa que os professores de filosofia deveriam fazer é tentar ensiná-la. Afirmo isso não por crença religiosa, convicção ideológica ou porque li em algum livro. Mas, porque, como aluno, tenho a experiência concreta e real de que não funciona. Pelo contrário, a nítida sensação que tenho é de que, não raras vezes, a universidade está atrapalhando meus estudos.
Portanto, penso que, antes de empreender tempo tentando tapar buracos de um sistema educacional que nasceu com prazo de validade vencido, a principal missão do “professor” de filosofia hoje – e sempre, talvez – é pensar a si mesmo. Questionar até que ponto se deseja realmente cooperar com a construção de uma sociedade que tenha lugar para todos, possuindo ela instituições formais de ensino, ou não.
Quando tivermos passado dessa fase, creio que as questões referentes às metodologias de ensino e sistemas de avaliação terão desaparecido. Teremos, então, aprendido – bem à moda freireana – que não ensinamos nada a ninguém, mas – antes – aprendemos uns com os outros. E, assim, parece tudo tão mais humano... que a última linha desse texto já me arranca até um sorriso de esperança.



[1] Texto transcrito de uma entrevista de José Pacheco. Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=Ad3cRwbI4DU > Acesso em 11/12/2012.
[2] José Pacheco fala da escola, mas – visto que o modelo é exatamente o mesmo – pode-se, perfeitamente também, pensar na universidade.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Consciência Média





Coração agitado
Olha pra fora
E angustiado fica

Precisa fazer
Não importa o quê
Pra se justificar

Chega no morro
Quer logo ajudar...

Só não entende
Quando de repente
Recebe um não de cá

É que no morro
Não tem bobo não...

Como manda
A boa educação
É melhor chegar devagar

Já que a subida é boa
Vale até tirar o salto...

A favela recebe bem
Mas é bom nunca esquecer
Que aqui não é asfalto

Igualdade é bonitinho
Pra quem cresceu
Com leite ninho

Mas a favela foi forjada
Na base da porrada...

Me desculpa meu amigo
Se eu não tive a consciência
Tantas vezes esperada

É que na favela
 Geralmente
Boa intenção de classe média
Termina em presepada

(26/11/2012)



sábado, 13 de outubro de 2012

Hannah Arendt e o caráter da dúvida cartesiana


Diferente de outros autores que geralmente apresentam a dúvida cartesiana simplesmente como um método de especulação, Hannah Arent entende que esta teria um alcance muito mais abrangente. Para a autora, o tipo de dúvida proposto por Descartes tinha um caráter muito mais inclusivo, visto que objetivaria um fim fundamental demais para ser motivada por conteúdos assim tão concretos (Cf. ARENDT, 1981, p.286).

No entendimento da filósofa alemã, a dúvida estava para a modernidade, assim como o thaumazein estava para o pensamento grego. A invenção do telescópio teria tido uma importância fundamental nessa nova atitude diante do mundo e da realidade. Enquanto os gregos, na busca pelo conhecimento, apresentavam uma postura de assombro diante de tudo o que é como é, valorizando a observação, a contemplação e a especulação, Descartes, agora alertado pelo enganoso conhecimento dos sentidos e da própria razão, revelado pela nova descoberta, introduz a dúvida como a única certeza capaz de levar o homem a um conhecimento que seja fixo e seguro.


 “A antiga oposição entre a verdade sensual e a verdade racional, entre a capacidade inferior dos sentidos e a capacidade superior da razão no tocante à apreensão da verdade, perdeu sua importância ao lado desse desafio, ao lado da óbvia implicação de que a verdade e a realidade não são dadas, que nem uma nem outra se apresenta como é, e que somente na interferência com a aparência, na eliminação das aparências, pode haver esperança de atingir-se o verdadeiro conhecimento” (Ibidem, p. 287).

        
          Assim, marcada a separação total entre o Ser e a Aparência, a dúvida cartesiana terá como principal característica a sua universalidade, questionando todo e qualquer pensamento ou experiência. É interessante perceber que Descartes não duvidava simplesmente de que a compreensão humana tivesse acesso a toda verdade ou que a visão do homem pudesse tudo ver. Assim como a inteligibilidade à compreensão humana não constituía demonstração da verdade, a visibilidade também não seria suficiente para provar a realidade (Cf. Ibidem, p. 288). Dessa maneira, a dúvida proposta por Descartes é uma dúvida que duvida da própria existência da verdade, ou, pelo menos, do tradicional conceito de verdade, que “valera-se do duplo pressuposto de que o que realmente existe se revelará por si mesmo e que as faculdades humanas são adequadas para recebê-lo” (Ibidem, p. 288).

            Diante dessa nova percepção do mundo, o que se segue é que uma nova moralidade se constrói. Paradoxalmente, com a perda da certeza da verdade, daquilo que se recebia pela razão ou pelo testemunho dos sentidos, o homem moderno acabou por desenvolver um maior zelo pela veracidade. E até mesmo na esfera religiosa, onde não se deixa de crer na salvação, mas perde-se a certeza dela, percebe-se um maior cuidado em relação à prática de boas obras. Em sentido estrito, é “como se o homem só pudesse dar-se ao luxo de mentir enquanto estava seguro da existência imutável da verdade e da realidade objetiva, que certamente sobreviveriam e derrotariam as suas mentiras” (Ibidem, p.290).

Não é de se espantar também que as sociedades eruditas e as Academias Reais tenham se tornado os grandes centros de influência moral na modernidade (Cf. Ibidem, p.291). As próprias virtudes cardeais modernas – como o sucesso, a industriosidade e a veracidade – acabaram por moldar toda uma nova forma de fazer ciência.


“Onde antes a verdade residira no tipo de theoria que, desde os gregos, significara a contemplação do observador que se preocupa com a realidade aberta diante de si, a questão do sucesso passou a predominar, e a prova da teoria passou a ser uma prova prática – ou funciona ou não. O que era teoria virou hipótese e o sucesso da hipótese virou verdade” (Ibidem, p.291).


            Com isso, mesmo que a verdade não existisse, havia o entendimento de que o homem poderia ser veraz, assim como poderia ser confiável ainda que não existisse propriamente uma certeza confiável. Em um mundo onde tudo tinha se tornado duvidoso, a única certeza que restou foi a dúvida. Assim, a formulação clássica “cogito ergo sum” foi entendida por Hannah Arendt mais como uma generalização de um “dubito ergo sum” do que uma confiança exacerbada no pensamento. Afinal, foi através da certeza da dúvida que Descartes concluiu que os processos ocorridos na mente humana possuem certeza própria e, por isso, tornam-se aptos a serem objetos de investigação na introspecção.

Referências bibliográficas:

- ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1981.




domingo, 2 de setembro de 2012

A inversão de posições entre a Contemplação e a Ação *

Talvez a mais grave consequência espiritual das descobertas da era moderna e, ao mesmo tempo, a única que não podia ser evitada, uma vez que seguiu muito de perto a descoberta do ponto de vista arquimediano e o resultante advento da dúvida cartesiana, foi a inversão da ordem hierárquica entre a vita contemplativa e a vita activa.

Para que compreendamos quão fortes eram os motivos dessa inversão, precisamos em primeiro lugar nos desfazer do atual preconceito que atribui o desenvolvimento da ciência moderna, vista sua aplicabilidade, a um desejo pragmático de melhorar as condições da vida humana na terra. A história mostra claramente que a moderna tecnologia resultou não da evolução daquelas ferramentas que o homem sempre havia inventado para o duplo fim de atenuar o labor e de erigir o artifício humano, mas exclusivamente da busca de conhecimento inútil, inteiramente desprovido de senso prático. Assim, o relógio, um dos primeiros instrumentos modernos, não foi inventado para os fins da vida prática, mas exclusivamente para a finalidade altamente “teórica” de realizar certos experimentos com a natureza. É certo que esta invenção, logo que a sua utilidade prática foi percebida, mudou o ritmo e a própria fisionomia da vida humana; mas isto, do ponto de vista dos seus inventores, foi mero acidente. Se tivéssemos de confiar somente nos chamados instintos práticos do homem, jamais teria havido qualquer tecnologia digna de nota; e, embora as invenções técnicas hoje existentes tragam em si certo ímpeto que, provavelmente, gerará melhoras até certo ponto, é pouco provável que o nosso mundo condicionado à técnica pudesse sobreviver, e muito menos continuar a desenvolver-se, se conseguíssemos nos convencer de que o homem é, antes de tudo, uma criatura prática.

Seja como for, a experiência fundamental que existe por trás da inversão de posições entre a contemplação e a ação foi precisamente que a sede humana de conhecimento só pôde ser mitigada depois que o homem depositou sua fé no engenho das próprias mãos. Não que o conhecimento e a verdade já não fossem importantes, mas só podia ser atingidos através da “ação”, e não da contemplação. Foi um instrumento, o telescópio, obra da mão do homem, que finalmente forçou a natureza, ou melhor, o universo a revelar seus segredos. As razões para que se confiasse no fazer e se desconfiasse do contemplar ou observar tornaram-se ainda mais fortes após o resultado das primeiras pesquisas ativas. Desde que o ser e a aparência se divorciaram, quando já não se esperava que a verdade se apresentasse, se revelasse e se mostrasse ao olho mental do observador, surgiu uma verdadeira necessidade de buscar a verdade atrás das aparências enganosas. Realmente, nada merecia menos fé para quem quisesse adquirir conhecimento e aproximar-se da verdade que a observação passiva ou a mera contemplação. Para que tivesse certeza, o homem tinha que verificar e, para conhecer, tinha que agir. A certeza do conhecimento só podia ser atingida mediante dupla condição: primeiro, que o conhecimento se referisse apenas àquilo que o próprio homem havia feito – de sorte que o ideal passava a ser o conhecimento matemático, no qual se lida apenas com entidades produzidas pela própria mente – e, segundo, que o conhecimento fosse de tal natureza que só pudesse ser verificado mediante ação adicional.

Desde então, a verdade científica e a verdade filosófica separaram-se de vez; a verdade científica não só não precisa ser eterna, como não precisa sequer ser compreensível ou adequada ao raciocínio humano. Muitas gerações de cientistas foram necessárias antes que a mente humana desenvolvesse suficiente ousadia para encarar frontalmente esta implicação da modernidade. Se a natureza e o universo são produtos de um fabricante divino, e se a mente humana é incapaz de compreender aquilo que não tenha sido feito pelo próprio homem, então o homem não pode de modo algum esperar aprender da natureza coisa alguma que não possa compreender. Pode ser capaz, graças ao seu engenho, de descobrir e até mesmo imitar os métodos dos processos naturais, mas isto não significa que esses métodos tenham sentido para ele – não precisam ser inteligíveis. De fato, nenhuma revelação divina supostamente supra-racional e nenhuma verdade filosófica supostamente impenetrável jamais ofendeu tanto a razão humana como certos resultados da ciência moderna. Podemos realmente dizer com Whitehead: “Só Deus sabe que aparente tolice não virá a ser verdade amanhã”.


* Extraído de: ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2000.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Mestres, calai-vos!



Os dias passam
E claro fica
Que na casa da falação
Quem habita 
É o desespero

Mestres
Mestres
   Mestres...

Tudo sabem de tudo
Mas não suportam 
O silêncio
Aterrador
Nem a dor
Da própria existência
Gemendo por vida

Pobres mestres...

Ensinam outros a viver
Sem perceber que não conhecem
Nem sequer 
A própria miséria

Tolos mestres...

Pra que tanto barulho?
Por que tanta necessidade?

Calai-vos
E permiti-vos
Um pouquinho de verdade




sábado, 18 de agosto de 2012

Reminiscência e conhecimento em Platão



O tema central do Mênon concentra-se sobre a questão se a virtude se ensina ou não. A resolução do problema, entretanto, não pode ser encontrada sem que antes se tenha uma definição exata do que é a virtude. Seria possível ao homem conhecer algo sem o conhecimento prévio do que algo é? – é a pergunta levantada por Sócrates.
Mênon, ao tentar solucionar o questionamento socrático sobre o que seria a virtude, acaba por oferecer respostas que já contêm em si mesmas o conceito. Para Sócrates, porém, não se pode explicar o todo pelas partes, visto que para conhecer as partes, seria necessário, antes, conhecer o todo. Assim, Mênon vê-se num labirinto sem saída e, em estado de aporia, compara Sócrates a uma raia elétrica, peixe marinho que entorpece quem dela se aproxima e toca.
A saída proposta por Sócrates para o problema da origem do conhecimento passa pela imortalidade da alma. Para ele, o homem tem um conhecimento inato, algo que já traz dentro de si e que seria fruto do conhecimento da alma, que, por ser eterna, tudo conhece. Portanto, o conhecimento dar-se-ia através de um processo de anamnese, onde o sujeito, na realidade, não conhece algo novo, mas apenas recorda-se do que já sabe. É o que ficou conhecido na história da filosofia como teoria da reminiscência.
No Fédon, Sócrates irá retomar a questão e, numa perspectiva mais metafísica, enfatizar a relação entre a reminiscência, os objetos sensíveis e as formas. Para ele, é a reminiscência que irá possibilitar a apreensão das formas, ou das essências inteligíveis – que encontram-se separadas das coisas sensíveis –, permitindo o conhecimento verdadeiro, que, por sua vez, também será contraposto à ideia de opinião (doxa).
É interessante perceber que em seus diálogos, Platão parece apresentar uma distinção entre a formação do filósofo e aquela do homem comum. O conhecimento das Formas, ou a episteme, seria alcançado apenas pelo primeiro. O segundo viveria, do ponto de vista do conhecimento, numa espécie de mundo inconsciente, onde as Formas são pressupostas no contato com as coisas. Daí a necessidade da instrução e a responsabilidade do filósofo em conduzi-lo à descoberta de verdade.

domingo, 5 de agosto de 2012

O pó tem pressa

"[...] O universo nebuloso da maconha e do haxixe, orientado para a sensibilidade e o prazer, a contemplação e o devaneio, vizinhos das experiências lisérgicas e dos transes psicodélicos, cede lugar a outra constelação, que seria melhor descrita pelo substantivo plano, onde a verticalidade das mirações e das explorações autorreflexivas não tem vez. O plano da coca é a plataforma rasteira da ligação, da adrenalina, da hiperatividade ansiosa, do engajamento febril na ação e no risco. Enquanto maconha repousa e adormece, independentemente dos danos à saúde, conduzindo o sujeito da fruição e do delírio ao relaxamento e à prostração, induzindo-o a indispor-se com o que for agitado e violento, a cocaína acende todos os faróis do corpo e apaga as luzes do espírito, na medida em que energiza a impetuosidade e reduz a autonomia da vontade, submetendo-a crescentemente ao círculo vicioso da retroalimentação do barato, cuja celeridade exige sua contínua e perpétua extensão. O repouso sendo sucessivamente adiado, o corpo se exaure e a vontade se escraviza. O pó é o império da ligação e, portanto, o reino da libido, entretanto, paradoxalmente, condena o homem –  não a mulher –, repleto de desejo, ao vácuo exasperante da impotência. Por isso, o pó frustra. Para reparar a frustração, o cheirador corre impaciente atrás de mais uma careira. A frustração repetida e redobrada interpela o usuário a cobrir o buraco que ele cava. O consumidor mais uma vez atraiçoado pela inversão de expectativas investe todas as forças para reparar a frustração renovada, o que o leva a cavar ainda mais fundo sua decepção e sua angústia, porque a plenitude novamente se furta. A intensidade aumenta, a voltagem da corrida atrás do próprio rabo se eleva, a cada rodada, a cada noite, a cada sessão, ampliando a fome de ser, a fome de preencher a ansiedade, até que ela se torna maior que o sujeito e come aquilo que, nele, tem essa fome. A fome, assim toma conta do sujeito e o substitui. A fome passa a ser o sujeito. Passa a ser.

Adeus, sujeito. Adeus, autonomia e liberdade. Adeus, planos e possibilidades de paz e amor. Paz e amor dançam quando a sutil arquitetura hippie é despedaçada pela máquina hiperativa da cocamania. O sentido comunitário já era. Compaixão e empatia evaporam. O cheirador não tem tempo para frescuras românticas, ornamentos místicos, metafísica barroca e ecomoralismo aquariano. Não tem tempo. Não tem espaço mental para fantasias idílicas e enredos sinuosos de ritmos pausados. O pó tem pressa. A coca é expressa. As carreiras são aspiradas por narinas inquietas. O usuário trafega em fuso horário próprio. Por isso, é com frequência afetado pelo Jet lag e despenca, exausto, exaurido.

O pó tem pressa."


SOARES, Luiz Eduardo. Tudo ou nada: A história do brasileiro preso em Londres por associação ao tráfico de duas toneladas de cocaína. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Nilo Batista: do 11 de setembro às UPPs


Tudo já foi dito sobre a militarização da segurança pública. Ela irrompe no entorno histórico do 11 de setembro, com a comistão de dois estatutos jurídicos: o da guerra e o da justiça penal. Antes que nos refizéssemos da surpresa de uma guerra preventiva, surgiram as guerras punitivas, simultaneamente às penas militarizadas (daquelas internações por três meses de adolescentes rebeldes às supermaxes, com menção honrosa para nosso RDD). A teoria da guerra justa acabou legitimando guerras justiceiras. A concepção militar de ocupação foi transferida para a segurança cidadã, e as zonas pobres se convertem em zonas ocupadas – e eis a fina flor da sociologia entregando a medalha de prata às UPP’s. Por um caminho teórico muito prestigiado na academia, o inimigo migra das negociações diplomáticas, dos campos de batalha e das celeridades da lei militar de guerra para o direito penal comum. A tortura é permitida (até por decreto), largamente exercida (seja clandestinamente, como em nossas carceragens, seja ostensivamente, como em Guantánamo) e até mesmo aplaudida (por exemplo na estreia de Tropa de Elite). As premências do assalto militar a uma posição inimiga chegaram ao processo penal. A categoria jurídico-penal do terrorismo transita agilmente entre o atentado à soberania e a infração penal que o encarna: a campanha pela (desnecessária) criminalização do terrorismo coincide com as suspeitas sobre a tríplice fronteira … Tudo já foi dito.

Mas no jornal de hoje uma Comissão Parlamentar interpela o Ministro da Defesa sobre um cântico entoado por soldados do mal afamado 1º Batalhão de Polícia do Exército, no qual preconizavam “bate, espanca, quebra os ossos, bate até morrer”. A Comissão poderia, com bom direito, pedir esclarecimentos sobre ter sido este cântico estúpido vociferado na rua Barão de Mesquita, onde se sedia o batalhão, incrustrado em pleno bairro da Tijuca. Os vizinhos, como é de sabença geopolítica militar, devem ser bem tratados, são sempre aliados preferenciais. E os vizinhos deste batalhão não precisam de nenhum estímulo novo para temer sua soldadesca, para acreditar, sim, que eles são bem capazes de bater até morrer. Por que apregoá-lo aos berros?

Tudo já foi dito, porém essa historieta talvez nos recorde algo importante: no plano das relações externas, o inimigo existe, no sentido de que sua criação é possível. Não o queremos no direito penal, rejeitamos este imigrante mal documentado, com um passaporte falso alemão (expedido pelo nazi-funcionalismo) e outro passaporte falso latinoamericano (expedido pelos saudosistas do “inimigo interno”). Mas o inimigo é o personagem central do direito penal militar de guerra. E se os inimigos viessem para “degolar nossos filhos”, tudo o que esperaríamos dos boquirrotos mal-educados da Barão de Mesquita é que, no mínimo, batessem neles. Não há planejamento, estratégia e eficiência militar sem o estudo – sempre construtivo – do inimigo. Em suma, a existência de Forças Armadas, com as importantes funções que lhes atribuiu a Constituição, pressupõe a possibilidade da existência de guerra e portanto do inimigo.

É exatamente por isso, pela peculiaridade do adestramento militar para a violência bélica, que as Forças Armadas devem ser mantidas o mais distante possível da gestão policial da ordem pública.

(*) Nilo Batista é jurista e ex-governador do Rio de Janeiro.

Fonte: DAR

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Portas reabertas para o LSD


Droga símbolo dos anos 1960, o ácido lisérgico está de volta às pesquisas acadêmicas, com resultados promissores para a cura de problemas como a depressão


MARCELO OSAKABE E MARCELO MOURA

Califórnia, Estados Unidos, 1971. Um detento da prisão de San Luis Obispo sobe até o telhado e, pendurado em cabos de telefonia, atravessa o pátio e pula o muro. Do lado de fora, um carro o aguardava. Dias depois, ele chegou à Argélia, sob os cuidados do grupo revolucionário Panteras Negras. O fugitivo era Timothy Leary, doutor em psicologia formado pela Universidade Berkeley e professor de Harvard. Ou, nas palavras do então presidente dos EUA, Richard Nixon, “o homem mais perigoso da América”. Leary foi o principal ativista dos usos medicinais e recreativos do alucinógeno LSD, na década de 1960. Quando a droga foi proibida pelo governo americano em 1970, até para pesquisas científicas, Leary decidiu seguir sua campanha como um fora da lei. A imagem de Leary se confunde com a do ácido: aceito socialmente nos anos 1950 e 1960, maldito a partir da década de 1970 – e atualmente em processo de redenção. Há cerca de 20 estudos em andamento no mundo sobre LSD, um renascimento do uso terapêutico da droga.

Leary entrou em contato com o LSD como pesquisador da Universidade Harvard, em 1960. Ele integrou os esforços para explorar o potencial do LSD-25 (25ª variação descoberta do Lysergsäurediethylamid, que em alemão significa “dietilamida do ácido lisérgico”), droga sintetizada pelo cientista suíço Albert Hoffman em 1938. Em 1943, Hoffman ingeriu alguns cristais da substância e descobriu suas propriedades alucinógenas. “Fiquei tonto”, disse. “De olhos fechados, via uma torrente de cores, como um caleidoscópio.” Dono da patente da substância, o laboratório suíço Sandoz distribuiu a droga para pesquisadores, como Leary, em busca de utilidades que motivassem seu comércio. Não havia nada de subversivo nisso. No fim dos anos 1960, mais de 700 pesquisas no mundo avaliavam o emprego de alucinógenos como o LSD em terapias contra esquizofrenia e depressão, além de aumento da criatividade. Só o serviço secreto de inteligência dos Estados Unidos (CIA) conduziu mais de 400 projetos com drogas, a maior parte com LSD, ao custo estimado em US$ 25 milhões, segundo um artigo de 1977 da revista especializada Psicology Today.

Na forma de cápsulas e ampolas, com o nome Delysid, o ácido chegou às farmácias. Como ocorre hoje com remédios como o Rivotril, a exigência de receita médica era mera formalidade. Psicólogos e pacientes estavam ávidos por experimentar o medicamento capaz de abrir as “portas da percepção” – expressão associada ao efeito dos alucinógenos que batizou um livro do escritor Aldous Huxley e inspirou o nome da banda The Doors. Os atores Jack Nicholson e Cary Grant se ofereceram como voluntários das pesquisas. Grant disse que se tornou uma nova pessoa graças ao LSD. “Encontrei quem eu era por trás de todos os disfarces, hipocrisias e vaidades. Me desfiz deles, camada por camada.” Segundo a revista americana Vanity Fair, cerca de 40 mil pessoas no mundo todo experimentaram o LSD entre 1950 e 1965.

Leary tornou-se um apóstolo do LSD depois de uma viagem ao México, em 1960. “Foi a experiência religiosa mais profunda de minha vida”, disse. Ele viu nas drogas o potencial de curar pessoas e a própria sociedade. Pela universidade, pesquisou a droga em detentos de uma colônia penal e num grupo de seminaristas. Os estudos de Leary foram interrompidos em 1963, quando a diretoria de Harvard descobriu que estudantes consumiam o estoque da droga destinado à pesquisa. Leary foi expulso. Fora da academia, passou a defender abertamente o uso recreativo da droga, circulando entre celebridades da contracultura, como os escritores Aldous Huxley, Jack Kerouac e Allen Ginsberg.

A pregação de Leary influenciou os Beatles, que devem algumas canções ao LSD. “‘Day tripper’ é uma delas”, disse Paul McCartney, em 2004. “‘Lucy in the sky’ é outra, obviamente.” Autor de “Lucy in the sky with diamonds” (“Lucy no céu com diamantes”), John Lennon, em vida, negou que o título da música fosse uma referência às iniciais LSD. “Lucy era uma amiga de meu filho Julian”, disse. Mas Lennon não escondia sua intimidade com o ideólogo do ácido. Leary é uma das vozes na gravação do hino pacifista Give peace a chance, de Lennon. O LSD inspirou outras estrelas, como Eric Clapton e Jim Morrison, e desconhecidos que chegariam à fama décadas depois, como o fundador da Apple, Steve Jobs. “Tomar LSD foi uma das duas ou três coisas mais importantes de minha vida”, disse Jobs.

O consumo desmedido de alucinógenos, defendido por Leary, era temerário. Sem limites, mesmo substâncias legalizadas, como bebidas alcoólicas, trazem consequências desastrosas. “O LSD pode danificar o sistema neurológico, se for tomado sem responsabilidade”, diz Amanda Beckley, criadora da fundação Beckley, que apoia pesquisas com drogas alucinógenas. “A dose de LSD era cinco a dez vezes maior que a aplicada hoje.” Não tardou para que relatos de pessoas que pularam de prédios ou desenvolveram algum tipo de psicose começassem a ganhar visibilidade. Em março de 1966, a revista americana Life publicou na capa a reportagem “LSD: a ameaça explosiva da droga que saiu do controle”. Quando Richard Nixou conquistou a Presidência dos Estados Unidos, em 1968, o combate às drogas foi um dos motes de sua campanha vitoriosa. “Espero salvar centenas de milhares de vidas que, expostas ao vício, poderiam ser moral, física e mentalmente destruídas”, afirmou Nixon, em 1969, ao propor ao Congresso americano uma lei mais dura contra os entorpecentes.

Aprovada em 1970, a Comprehensive Drug Abuse Prevention and Control Act enquadrou o LSD e outros alucinógenos na categoria das drogas mais perigosas, proibidas não apenas para consumo, como também para pesquisa. No ano seguinte, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu proibição semelhante, em nível mundial. “Nixon buscou erradicar o consumo de drogas proibindo até a pesquisa e o uso medicinal”, diz Pedro Abramovay, professor de Direito da Faculdade Getulio Vargas. A proibição na ONU acabou por igualar traficantes e cientistas e fechou as torneiras de recursos em países onde ainda era permitido pesquisar. “Depois de 1972, ficou impossível conseguir financiamento para novos estudos”, afirma Richard Doblin, doutor em políticas públicas pela Universidade Harvard e fundador da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps).

As portas da pesquisa com alucinógenos só foram reabertas na década de 1990, quando a Food and Drug Administration (FDA), autoridade de saúde dos Estados Unidos, igualou a classificação das drogas psicodélicas à de substâncias como ópio e anfetamina, livres para estudo. Os resultados da liberação começam a aparecer. Em 2011, o doutor em psiquiatria Peter Gasser concluiu uma pesquisa de LSD no tratamento para depressão (leia o quadro ao lado). Foi o primeiro estudo completo, após quatro décadas de proibição. “Diante de efeitos benéficos tão evidentes, é intrigante por que terapias com LSD foram tão abertamente ignoradas”, afirmou o neurocientista norueguês Pal-Orjan Johansen, autor de uma pesquisa sobre o uso do LSD no combate ao alcoolismo.

Uma das explicações para a longa proibição do LSD é a influência decisiva das questões morais no curso das descobertas científicas. A história do LSD é um capítulo do histórico conflito entre o racionalismo científico e os dogmas que permeiam o senso comum da sociedade. Quando propôs a proscrição do LSD, Nixon tinha argumentos objetivos a seu favor, como altos índices de violência associada a drogas, mas não escondeu que aquela era, sobretudo, uma cruzada moral. São essas questões que fazem os governos interferir no trabalho dos laboratórios, autorizando e proibindo procedimentos, concedendo e negando recursos. Outro exemplo da influência das questões morais na evolução da ciência é a polêmica na autorização de pesquisas com células-tronco embrionárias. Promissoras no tratamento de doenças hoje incuráveis do sistema nervoso, mas combatidas por religiosos, elas só foram liberadas no Brasil em 2008.

O debate sobre moral e os limites da ciência é necessário, mas traz lentidão e até prejuízos ao desenvolvimento científico. As duas décadas de intervalo entre proibição e liberação das pesquisas com drogas alucinógenas não significaram apenas um atraso no desenvolvimento de novas terapias. Os estudos que poderiam ter ocorrido na década de 1970 jamais serão retomados, uma vez que as patentes dessas substâncias já caíram em domínio público. “Nenhum grande laboratório financia pesquisas sem a perspectiva de monopolizar o mercado”, diz Amanda. “Eles não querem descobrir no LSD um rival para remédios que já têm.”

As novas pesquisas com alucinógenos são financiadas por doadores sem finalidades comerciais, como o cantor Sting ou o fundador do Napster, Sean Parker. Gente de mente e bolsos abertos também bancou os últimos dias de Timothy Leary. Após sua fuga espetacular da prisão, em 1971, ele entrou em acordo com o governo americano, cumpriu pena de três anos e moderou suas ações. Morto em 1996, vítima de câncer, ele durou o bastante para ver a retomada dos estudos com a droga a que dedicou a vida. Após a cremação, 7 gramas de suas cinzas foram embarcados no foguete espacial Pegasus, que ficou em órbita por seis anos até se desintegrar na atmosfera. Timothy e seus cristais de LSD ficaram no céu, como a Lucy da música psicodélica.




Fonte: Época

quarta-feira, 11 de julho de 2012

SOBRE A NATUREZA DO EROS NO BANQUETE DE PLATÃO

Introdução:

Talvez nenhum outro conceito filosófico tenha sido tão fortemente difundido no imaginário popular quanto a ideia do amor platônico. Entretanto, se por um lado é interessante essa aproximação entre o mundo filosófico – muitas vezes um ambiente extremamente esotérico – e a vivência cotidiana das pessoas, por outro, deve-se tomar cuidado para que conceitos tão caros à história da filosofia não se degenerem a ponto de perderem totalmente qualquer ponto de contato com a intenção original de seus autores.
Nesse sentido, procurando comunicar de forma acessível a quem quer que tenha interesse, sem, contudo, abrir mão de um certo rigor acadêmico, esse estudo pretende apresentar, de forma introdutória, algumas considerações sobre a natureza do amor na obra O Banquete, de Platão. Para isso, primeiramente, será introduzida a estruturação do diálogo e algumas considerações iniciais; em um segundo momento, explorar-se-á a natureza do eros propriamente dita; e, por fim, será oferecida uma breve conclusão com as considerações finais.