A boca fala do que o coração tá cheio

domingo, 5 de agosto de 2012

O pó tem pressa

"[...] O universo nebuloso da maconha e do haxixe, orientado para a sensibilidade e o prazer, a contemplação e o devaneio, vizinhos das experiências lisérgicas e dos transes psicodélicos, cede lugar a outra constelação, que seria melhor descrita pelo substantivo plano, onde a verticalidade das mirações e das explorações autorreflexivas não tem vez. O plano da coca é a plataforma rasteira da ligação, da adrenalina, da hiperatividade ansiosa, do engajamento febril na ação e no risco. Enquanto maconha repousa e adormece, independentemente dos danos à saúde, conduzindo o sujeito da fruição e do delírio ao relaxamento e à prostração, induzindo-o a indispor-se com o que for agitado e violento, a cocaína acende todos os faróis do corpo e apaga as luzes do espírito, na medida em que energiza a impetuosidade e reduz a autonomia da vontade, submetendo-a crescentemente ao círculo vicioso da retroalimentação do barato, cuja celeridade exige sua contínua e perpétua extensão. O repouso sendo sucessivamente adiado, o corpo se exaure e a vontade se escraviza. O pó é o império da ligação e, portanto, o reino da libido, entretanto, paradoxalmente, condena o homem –  não a mulher –, repleto de desejo, ao vácuo exasperante da impotência. Por isso, o pó frustra. Para reparar a frustração, o cheirador corre impaciente atrás de mais uma careira. A frustração repetida e redobrada interpela o usuário a cobrir o buraco que ele cava. O consumidor mais uma vez atraiçoado pela inversão de expectativas investe todas as forças para reparar a frustração renovada, o que o leva a cavar ainda mais fundo sua decepção e sua angústia, porque a plenitude novamente se furta. A intensidade aumenta, a voltagem da corrida atrás do próprio rabo se eleva, a cada rodada, a cada noite, a cada sessão, ampliando a fome de ser, a fome de preencher a ansiedade, até que ela se torna maior que o sujeito e come aquilo que, nele, tem essa fome. A fome, assim toma conta do sujeito e o substitui. A fome passa a ser o sujeito. Passa a ser.

Adeus, sujeito. Adeus, autonomia e liberdade. Adeus, planos e possibilidades de paz e amor. Paz e amor dançam quando a sutil arquitetura hippie é despedaçada pela máquina hiperativa da cocamania. O sentido comunitário já era. Compaixão e empatia evaporam. O cheirador não tem tempo para frescuras românticas, ornamentos místicos, metafísica barroca e ecomoralismo aquariano. Não tem tempo. Não tem espaço mental para fantasias idílicas e enredos sinuosos de ritmos pausados. O pó tem pressa. A coca é expressa. As carreiras são aspiradas por narinas inquietas. O usuário trafega em fuso horário próprio. Por isso, é com frequência afetado pelo Jet lag e despenca, exausto, exaurido.

O pó tem pressa."


SOARES, Luiz Eduardo. Tudo ou nada: A história do brasileiro preso em Londres por associação ao tráfico de duas toneladas de cocaína. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

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