"[...] O universo nebuloso da
maconha e do haxixe, orientado para a sensibilidade e o prazer, a contemplação
e o devaneio, vizinhos das experiências lisérgicas e dos transes psicodélicos,
cede lugar a outra constelação, que seria melhor descrita pelo substantivo plano,
onde a verticalidade das mirações e das explorações autorreflexivas não tem
vez. O plano da coca é a plataforma rasteira da ligação, da adrenalina, da
hiperatividade ansiosa, do engajamento febril na ação e no risco. Enquanto
maconha repousa e adormece, independentemente dos danos à saúde, conduzindo o
sujeito da fruição e do delírio ao relaxamento e à prostração, induzindo-o a
indispor-se com o que for agitado e violento, a cocaína acende todos os faróis
do corpo e apaga as luzes do espírito, na medida em que energiza a
impetuosidade e reduz a autonomia da vontade, submetendo-a crescentemente ao
círculo vicioso da retroalimentação do barato, cuja celeridade exige sua
contínua e perpétua extensão. O repouso sendo sucessivamente adiado, o corpo se
exaure e a vontade se escraviza. O pó é o império da ligação e, portanto, o reino
da libido, entretanto, paradoxalmente, condena o homem – não a mulher –, repleto de desejo, ao vácuo
exasperante da impotência. Por isso, o pó frustra. Para reparar a frustração, o
cheirador corre impaciente atrás de mais uma careira. A frustração repetida e
redobrada interpela o usuário a cobrir o buraco que ele cava. O consumidor mais
uma vez atraiçoado pela inversão de expectativas investe todas as forças para
reparar a frustração renovada, o que o leva a cavar ainda mais fundo sua
decepção e sua angústia, porque a plenitude novamente se furta. A intensidade
aumenta, a voltagem da corrida atrás do próprio rabo se eleva, a cada rodada, a
cada noite, a cada sessão, ampliando a fome de ser, a fome de preencher a
ansiedade, até que ela se torna maior que o sujeito e come aquilo que, nele,
tem essa fome. A fome, assim toma conta do sujeito e o substitui. A fome passa
a ser o sujeito. Passa a ser.
Adeus, sujeito. Adeus,
autonomia e liberdade. Adeus, planos e possibilidades de paz e amor. Paz e amor
dançam quando a sutil arquitetura hippie é despedaçada pela máquina hiperativa
da cocamania. O sentido comunitário já era. Compaixão e empatia evaporam. O
cheirador não tem tempo para frescuras românticas, ornamentos místicos,
metafísica barroca e ecomoralismo aquariano. Não tem tempo. Não tem espaço
mental para fantasias idílicas e enredos sinuosos de ritmos pausados. O pó tem
pressa. A coca é expressa. As carreiras são aspiradas por narinas inquietas. O
usuário trafega em fuso horário próprio. Por isso, é com frequência afetado pelo Jet lag e despenca, exausto, exaurido.
O pó tem pressa."
SOARES, Luiz Eduardo. Tudo ou nada: A história do brasileiro preso em Londres por associação ao tráfico de duas toneladas de cocaína. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
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