A boca fala do que o coração tá cheio

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Para de caô, professor!




 “Eu nasci numa favela. Fui maltratado, humilhado e excluído na escola. E eu jurei que nenhum aluno dos meus seria maltratado, humilhado ou excluído. Mas, quando fui trabalhar, não conseguia isso. Muitos reprovavam, apesar de eu dar aulas muito bem dadas. E o que me levou a mudar foi que eu percebi que uma aula não serve para nada. É prejudicial, é inútil. Só que eu não tinha outra forma de trabalhar. O modo como o professor aprende é o modo como o professor ensina; e tinham me ensinado assim e eu reproduzia. Quando eu percebi que eu não conseguia concretizar a minha vingança – digamos assim – de que todos aprendessem, eu comecei a sentir o chão fugindo dos pés porque eu percebia que não era dando aula que eu ia conseguir.” [1]

Como se sabe até mesmo no senso comum, o atual modelo de educação que vigora de maneira hegemônica em praticamente todo o mundo encontra suas raízes no Iluminismo e na já ultrapassada crença no progresso que decorre da acumulação de conhecimento. É, portanto, no contexto moderno de ascensão histórica de acumulação do capital – que propiciou esse tipo de crença – que a escola, na forma em que conhecemos atualmente, surge e se estabelece como essa espécie de redentora do indivíduo e, numa escala maior, da sociedade.
Junto com a escola, percebemos nascer, assim, toda uma crença e uma maneira de ver o mundo que enxerga o conhecimento como salvação. Nada muito diferente das antigas seitas gnósticas. Contudo, os tempos mudaram. E esse, talvez, seja o nosso grande consolo: o tempo – graças a Deus – passa. E, com ele, vêm as transformações.
Já em 1979 – há 33 anos, portanto –, Jean-François Lyotard chamava a atenção do mundo para aquilo que denominou A Condição Pós-Moderna, ou, simplesmente, O Pós-Moderno. No entendimento do filósofo francês, essa nova fase por que passam as sociedades desenvolvidas teria como característica principal justamente o processo de descrença generalizada nos metarrelatos totalizantes que até então tinham sido responsáveis por oferecer legitimação ao conhecimento durante toda a Modernidade.
A análise de Lyotard, como ele bem ressalta, não apresenta a pós-modernidade em sentido cronológico, como apenas um período novo da história do pensamento, mas concentra-se, sobretudo, nas alterações estruturais por que passaram a natureza do saber diante do elevado nível de desenvolvimento tecnológico que tem se observado nos países ricos nos anos recentes.
Nesse sentido, o que o filósofo pós-moderno nos traz é que a revolução técnico-científica – com o desenvolvimento das complexas redes de comunicação e armazenamento de dados –, somada a esse processo já citado da deslegitimação decorrente da perda da força dos grandes relatos unificadores de sentido, fez com que o essencial do transmissível passasse a ser constituído por um estoque organizado de conhecimentos. Num contexto como esse, a previsão de Lyotard foi de que a era do professor não estaria longe de seu fim.
Hoje, passados mais de trinta anos dessa afirmação, diria que a profecia está mais perto do que nunca de se cumprir. Não por concordar plenamente com a perspectiva lyotardiana sobre o pós-moderno, mas por considerar que a essa altura do campeonato, a modernidade não pode continuar a ser considerada um projeto inacabado – como queria Habermas – mas, sim, um projeto falido. Acabou. Simples assim. E embora ainda permaneça uma espécie de resistência nostálgica por parte de alguns, até onde posso perceber, acabará cada dia mais.
Assim, àqueles que se sentem vocacionados e chamados para trabalhar com educação nesse início de século XXI, daria o seguinte conselho: parem de acreditar que repetindo as mesmas estratégias terão resultados diferentes. De fato, essa é sempre uma opção, mas, tenho a impressão de que, na área da educação, já estamos batendo na mesma tecla há muito tempo. Continuar, embora constitua sempre uma opção, seria pura perda de tempo.
Enquanto não nos dispusermos a pensar outro paradigma que contemple as peculiaridades do novo tempo, continuaremos amarrados ao reformismo conservador dos que gostam das mudanças, mas precisam sobreviver. Muitas vezes a impressão que fica é que queremos transformar o mundo, mas no fundo – no fundo mesmo – não queremos tanto assim. Conforto é bom, e todo mundo sabe. O que se pede é só um pouquinho de honestidade. Consigo mesmo, acima de tudo.
Se ainda assim, a vontade for verdadeira, parece que nem tudo está perdido. Sim, é possível. Não porque exista uma tese de doutorado que comprove, mas porque, simplesmente, na vida real, já existem diversos exemplos que podem servir de inspiração. Em outras palavras: alguém já fez!
As palavras entre aspas que abrem esse texto, por exemplo, foram transcritas de uma entrevista do professor José Pacheco – idealizador da Escola da Ponte, em Portugal –, a quem tive o prazer de ouvir pessoalmente no mês passado. Creio que seu ponto de vista, apesar de, certamente, causar estranhamento aos mais tradicionais, deve, no mínimo, ser levado em consideração por todo aquele que diz – em 12/12/2012 – se preocupar com educação.
No entendimento do educador português, a escola [2] é, tradicionalmente, um lugar de humilhação. Tendo conhecido a exclusão na pele durante sua “formação” – como todos nós, diga-se de passagem – Pacheco decidiu fazer diferente de nós. Sem nunca ter se matriculado numa faculdade de filosofia, Pacheco fez Filosofia.
Foi quando percebeu que estava apenas reproduzindo aquilo por que tinha passado quando aluno, que começou a se perguntar pelo sentido do que estava fazendo. Quem disse que é necessário haver uma aula para que alguém aprenda alguma coisa? Não havia resposta. Apenas a realidade afirmando o contrário: apesar das aulas, os alunos não aprendem. Não todos.
E isso incomodava Pacheco. Como pode pessoas tão diferentes, com tantas singularidades, com talentos diferentes, dificuldades diferentes, gostos diferentes serem submetidas a uma única forma de aprender e avaliar? Não apareceu um professor para responder. Pacheco permaneceu sem resposta e prosseguiu em sua busca.
Qual o sentido de se fazer uma prova? – indagava Pacheco já angustiado. Nenhum – ele mesmo respondeu, percebendo que não apareceria nenhum justo. Ora, pois, a prova não serve para nada! Quem sabe o que está sendo perguntado já sabe, e seria melhor que usasse seu tempo com qualquer outra coisa de seu interesse. Quem não sabe, passará uma hora olhando para uma folha de papel em branco e, ao final, continuará sem saber. Seria melhor aproveitar o tempo para aprender.
Não fazia sentido. Pacheco olhava para a escola e via alunos sendo tratados como em uma linha de montagem. Não havia respeito pelas individualidades e a dignidade humana era pisada. Até a realidade era menor. Também, não era para menos. Não havia um que cresse na riqueza da simplicidade que constitui o real. Não fazia sentido. Simplesmente não fazia sentido, foi o que Pacheco concluiu 3 anos antes de Lyotard publicar o livro que “inaugurou” a pós-modernidade.
Hoje, passados mais de trinta anos da reviravolta que Pacheco iniciou em sua própria vida, a Escola da Ponte é referência mundial e acho que posso considerá-lo bem sucedido em sua jornada. Não é o objetivo dessa reflexão, entretanto, analisar as estratégias utilizadas por ele em seu processo de construção, como se isso, de alguma forma, nos garantisse uma saída. Esse tipo de mentalidade – felizmente – parece já ter sido enterrado junto com a Modernidade.
O ponto central que tenciono destacar nessa breve reflexão sobre a educação contemporânea, por outro lado, é o papel do professor diante de uma realidade dura que, muitas vezes, se apresenta como uma sinuca de bico. E, em especial, o papel do professor de filosofia.
Creio que, diante da própria natureza da filosofia, a última coisa que os professores de filosofia deveriam fazer é tentar ensiná-la. Afirmo isso não por crença religiosa, convicção ideológica ou porque li em algum livro. Mas, porque, como aluno, tenho a experiência concreta e real de que não funciona. Pelo contrário, a nítida sensação que tenho é de que, não raras vezes, a universidade está atrapalhando meus estudos.
Portanto, penso que, antes de empreender tempo tentando tapar buracos de um sistema educacional que nasceu com prazo de validade vencido, a principal missão do “professor” de filosofia hoje – e sempre, talvez – é pensar a si mesmo. Questionar até que ponto se deseja realmente cooperar com a construção de uma sociedade que tenha lugar para todos, possuindo ela instituições formais de ensino, ou não.
Quando tivermos passado dessa fase, creio que as questões referentes às metodologias de ensino e sistemas de avaliação terão desaparecido. Teremos, então, aprendido – bem à moda freireana – que não ensinamos nada a ninguém, mas – antes – aprendemos uns com os outros. E, assim, parece tudo tão mais humano... que a última linha desse texto já me arranca até um sorriso de esperança.



[1] Texto transcrito de uma entrevista de José Pacheco. Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=Ad3cRwbI4DU > Acesso em 11/12/2012.
[2] José Pacheco fala da escola, mas – visto que o modelo é exatamente o mesmo – pode-se, perfeitamente também, pensar na universidade.

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