Introdução:
Talvez
nenhum outro conceito filosófico tenha sido tão fortemente difundido no imaginário
popular quanto a ideia do amor platônico. Entretanto, se por um lado é
interessante essa aproximação entre o mundo filosófico – muitas vezes um
ambiente extremamente esotérico – e a vivência cotidiana das pessoas, por
outro, deve-se tomar cuidado para que conceitos tão caros à história da
filosofia não se degenerem a ponto de perderem totalmente qualquer ponto de
contato com a intenção original de seus autores.
Nesse
sentido, procurando comunicar de forma acessível a quem quer que tenha
interesse, sem, contudo, abrir mão de um certo rigor acadêmico, esse estudo
pretende apresentar, de forma introdutória, algumas considerações sobre a
natureza do amor na obra O Banquete,
de Platão. Para isso, primeiramente, será introduzida a estruturação do diálogo
e algumas considerações iniciais; em um segundo momento, explorar-se-á a
natureza do eros propriamente dita;
e, por fim, será oferecida uma breve conclusão com as considerações finais.
O Banquete:
Devido à sua marcante influência
sobre a tradição filosófica, O Banquete
é considerado por muitos a grande obra fundacional sobre o eros (Cf. MARCONDES, 2008, p.5) [1].
Assim como é comum à boa parte dos escritos platônicos, o texto apresenta-se na
forma de diálogo, e tem, do ponto de vista do conteúdo filosófico das ideias, a
figura de Sócrates como seu principal personagem. Como sugere o título, o
diálogo se desenvolve em meio a um tradicional banquete grego. Estes, apesar de
serem momentos festivos, possuíam regras que deviam ser seguidas com certa
diligência. Enquanto à primeira parte do evento ficava reservado o deipnon – isto é, a refeição comum – a
segunda destinava-se a uma bebedeira coletiva seguida da discussão de um tema
filosófico – o potos.
Cabe
ressaltar aqui que, embora tivesse papel de destaque nos banquetes, geralmente
estando presente em abundância, o vinho não era, de forma alguma, identificado a
uma atitude dissoluta.
“Platão, nas leis (em grande parte dos livros I e II), se
preocupa em dar ao uso do vinho uma espécie de estatuto legal para regular os
banquetes: dessa forma, os banquetes não serviriam apenas como um modo de
diversão e de estreitar as amizades [...], mas fariam parte da educação moral,
que é o objetivo da política. [...] Isso
só acontece se o legislador der a direção a um presidente [...] sóbrio e sábio
que tenha em vista a excelência de seu verdadeiro fim. Se não for assim, Platão
sugere uma proibição radical do uso do vinho [...].” (FRANCO, 2006, p. 27) [2]
O diálogo platônico é introduzido a
partir da narrativa de Apolodoro do
relato de Aristodemo sobre o banquete realizado na casa de Ágatão, poeta trágico de grande fama na
Grécia Antiga. Nele estão presentes – além do anfitrião e do já mencionado Sócrates – Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Alcibíades e
Fedro. A este último é atribuída, por Erixímaco, a ideia de que cada um
deveria fazer um discurso de elogio ao amor, e é dele próprio o primeiro
discurso proferido [3].
Sua fala é marcada por uma grande
erudição e por diversas citações provenientes, especialmente, da mitologia. O eros, apresentado como um grande e
maravilhoso deus, destaca-se tanto entre os homens, quanto entre os deuses.
Segundo Franco, “eros é visto por Fedro do ponto de vista de seus efeitos; ele
é um princípio moral que dirige as ações dos homens e se manisfesta nelas (178a
– 180b)” (FRANCO, 1986, p. 67-68) [4].
O segundo discurso é da autoria de
Pausânias. Nele, é chamada a atenção para o fato de que nem todo amor pode ser
elogiado. Pausânias entende que o amor em si é indiferente no que diz respeito
ao seu valor moral e, portanto, apenas se torna belo ou feio, honroso ou desonroso,
de acordo com a forma como é realizado.
Na sequência, e tomando por base o
argumento de Pausânias, o médico Erixímaco expõe suas ideias sobre o amor numa
perspectiva mais cósmica e, consequentemente, mais ampla. A intenção de
Erixímaco é estender para todas as ordens dos fenômenos a distinção entre os
dois tipos de amor levantada no discurso anterior. Com isso, o amor deveria não
só ser visto como sujeito às mesmas leis da natureza, como, em decorrência
direta desse fato, admitiria a possibilidade de produzir efeitos opostos a
partir de um princípio único.
Em seguida, e mantendo essa
abordagem cósmica, discursa Aristófanes. Todavia, a partir da introdução do
mito Andrógino (189e – 191c) [5], o
eros é identificado por ele como um
desejo de complementação. Dessa forma, o objeto do eros deveria ser compreendido como complemento da necessidade dos
amantes.
Dando continuidade ao symposium, Ágatão critica a fala de seus
companheiros precedentes e é o primeiro a oferecer um discurso que chama a atenção
não para os efeitos do amor, mas para sua natureza. Essa contribuição será, de
fato, fundamental para a argumentação socrática, onde esta reflexão pretende fixar
seu foco principal.
O discurso de Sócrates e a natureza
do eros:
A fala de Sócrates começa, como é de
costume, repleta de ironia. Ao apresentar um Sócrates supostamente intimidado
pela beleza dos cinco elogios que acabara de ouvir, o objetivo de Platão parece
ser não só criticar a forma tradicional do encomion,
cuja principal preocupação residia na aparência e não na verdade, como,
principalmente, deixar clara a distinção fundamental existente entre os
fundamentos da retórica e os da filosofia, justificando, dessa forma, a
ascendência da última (Cf. FRANCO,
p.70). Assim, o discurso de Sócrates, ao contrário dos demais – que se
mantiveram presos a aspectos secundários do eros
–, buscará descobrir o que o amor realmente é em sua essência.
Para realizar essa tarefa, a
primeira questão levantada por Sócrates é se o eros pode ser entendido de modo absoluto ou se, por outro lado,
deve ser sempre visto de forma correlativa. Em outras palavras, o que Sócrates
quer saber é: o amor deve ser sempre amor de alguma coisa ou é possível que
seja amor de coisa nenhuma? Utilizando-se do exemplo das relações familiares –
onde um pai, por exemplo, só é pai na medida em que tem um filho, não podendo
jamais ser pai em si mesmo – Sócrates acaba por concluir que também o amor é amor
de alguma coisa, estando necessariamente ligado a um objeto e estabelecendo
relação com ele.
Ora, se o amor é amor de alguma
coisa, logo ele deseja aquilo de que é amor. E como não se pode desejar aquilo
que já possui, conclui-se que aquilo que amor deseja, necessariamente, lhe
falta. Obviamente, pode surgir como objeção a impossibilidade do desejo daquilo
que já se possui. Para Franco,
“[...]
o que tal sujeito deseja realmente, nos diz Sócrates, é possuir no futuro o que
ele já possui no presente, isto é, ele deseja que seu presente permaneça
presente. O que Sócrates quer dizer com isso é que aquilo que possuímos no
presente não nos é garantido a possuir no futuro. De modo que, desejar ‘continuar
sendo o que somos’ ou ‘manter o que temos’ é igual a desejar aquilo de que
somos privados no futuro. Longe de estar negando o princípio, portanto, este
testemunho da experiência o confirma (200b - e).” (Ibidem, p 75)
Dessa maneira, Sócrates consegue
fixar uma base que o permite prosseguir em sua busca por um princípio geral do amor.
Para ele, diferentemente de Aristófanes – para quem o sujeito amado constitui a
própria finalidade do desejo – é impossível que esse princípio seja imanente.
Contudo, se a finalidade do amor não é o amado (este seria a finalidade da
paixão), para onde se destina, pois, o seu desejo?
Para a imortalidade, responderia
Diotima, personagem por intermédio de quem Sócrates realiza seu discurso. O eros é descrito por ela como um desejo
de possuir o bem eternamente para si. Além disso, através do argumento da
“geração na beleza”, ela afirma que é somente através desse efeito perpetuador
que alguém pode conseguir satisfazer o desejo de preservar para sempre o bem.
Formulado o princípio geral do amor,
e tendo demonstrado que o eros,
necessariamente, é eros de alguma
coisa, coisa que deseja porque não possui, Sócrates passa a considerar o objeto
sugerido por Ágatão: a beleza. Assim,
se, de fato, o amor é amor da beleza e, portanto, a deseja, é porque não a
possui. Logo, do ponto de vista socrático, Ágatão engana-se quando afirma ser
belo o amor. Além disso, se, como se admite, o bom é belo e há no amor carência
de beleza, logo, ele não pode também, por conseguinte, ser considerado bom.
Agora, o que significa dizer,
exatamente, que o amor não é bom, nem belo? Essa certamente não é uma afirmação
de que ele seja mau e feio. Assim como no problema do conhecimento Platão
entende que há um lugar intermediário entre a sabedoria (sophia) e a ignorância (amathia)
– a opinião verdadeira (ortha doxa)
–, aqui o amor é colocado, analogamente, numa posição intermediária entre o bom
e o mau, entre o belo e o feio, visto que não possui, mas deseja.
Como consequência fundamental disso,
decorre que o amor não pode ser considerado um deus, visto que a perfeição (eudaimonia) é característica inerente à
natureza divina. Porém, também não chega a ser um mortal. Assim como na
analogia anterior, ele seguirá numa posição intermediária entre o mortal e o
imortal, constituindo aquilo que entre os gregos se conhecia como daimon. Na linguagem mitológica, o daimon é
“[...]
um ser cuja função é intermediar a comunicação entre os deuses e os homens, uma
vez que nem os primeiros nem os últimos podem comunicar-se diretamente. Assim,
os demônios traduzem e transmitem aos deuses as preces e os sacrifícios dos
homens, e aos homens, as ordens e as reconpensas pelos sacrifícios recebidos.
Ora, este intercâmbio realiza também uma síntese entre mundos separados: os
demônios preenchem o intervalo, isto é, o vazio que há entre as esferas divina
e mortal, dando ao Universo unidade e ligação.” (Ibidem, p.90)
Esse conceito é extremamente relevante
na teoria de Platão, pois é através dessa visão do daimon como elemento divino que a participação da esfera inferior,
ou seja, o mundo terrestre, é possibilitada na esfera superior, o mundo das
ideias, sem que a pureza deste último seja alterada. Além disso, ao enfatizar a
importância do daimon socrático na
educação , Platão parece crer numa forte relação entre a ação (ou não ação) do daimon e a própria realização da
filosofia.
“Não
é, portanto, surpreendente que o daimon
eros tenha um lugar de privilégio no
sistema filosófico de Platão, tampouco que o Sócrates retratado por Platão seja
ele mesmo um homem erótico: eros é um
demônio que preside não só as ligações entre o céu e a terra, o humano e o
divino, mas também às ligações entre os homens. Em outras palavras, eros efetua ligações em dois planos
distintos: ele está presente quando é questão o eu-e-o-tu, e está também
presente quando é questão o eu, o tu, e sua finalidade essencial.” (Ibidem, p. 99)
Naturalmente, no que diz respeito à
filosofia, esses dois planos distintos devem ser considerados simultaneamente. Assim como o filósofo aspira à
sabedoria, a realização desse desejo, por sua vez, implica a comunhão com o
outro. Dessa maneira, embora nem todo eros
possa ser filósofo, visto que sua finalidade essencial nem sempre estará em
perspectiva, todo filósofo deverá ter, necessariamente, uma disposição erótica.
Conclusão:
Em conformidade à teoria platônica
sobre a verdade, o eros platônico
também não pode ser realizado plenamente no mundo da experiência sensível. “A
busca do verdadeiro amor significa assim o abandono de seu objeto, as coisas
belas que nos dão prazer, os belos corpos, a figura do amado, o objeto do
desejo, em busca de algo mais fundamental, de natureza em última análise mais
elevada, abstrata, espiritual”. (MARCONDES, Op.
Cit, p. 5)
Não só o domínio do individual – onde residem
as emoções, sentimentos e desejos particulares – é incapaz de abarcar todo o
significado do amor, como os próprios objetos particulares do desejo – sujeitos
às influências do devir, como estão – não conseguem conferir-lhe total
satisfação.
Entretanto, pela própria peculiaridade
de sua natureza – capaz de restabelecer a harmonia entre o mundo do devir e o
mundo do Ser –, o eros torna possível
a realização da eudaimonia entre os
homens. Para Sócrates, proceder corretamente nos caminhos do amor consistiria
“em
começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se
de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos
belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até
que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele
próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo.” (211 c)
Dessa forma, o que fica evidente é
que a possibilidade de realização do eros
pelos homens encontra-se assentada sobre a mesma base que sustenta a
possibilidade do conhecimento na filosofia de Platão. Mais ainda, é possível
afirmar, segundo Singer, que, no platonismo, “verdadeiro amor e verdadeira
racionalidade coincidem”. (SINGER, Apud
AMIR, 2001, p. 10) [6].
Não é de se espantar, portanto, a sugestão de Platão de que o único capaz de realizar
efetiva e plenamente o amor entre os homens seria o filósofo, platônico. (Cf. Ibidem, p.10).
Bibliografia:
-
AMIR, Lydia. Plato's theory of Love:
Rationality as Passion. Practical. Philosophy: The Journal of Philosophical
Practitioners, Vol. 4, n. 3: 6-14,. 2001.
-
FRANCO, Irley. O
individual como objeto do Eros no Lysis e no Banquete de Platão.
Dissertação de mestrado apresentada ao departamento de Filosofia da PUC-Rio,1986.
-
FRANCO, Irley. O sopro do amor: um comentário do discurso de Fedro no Banquete
de Platão. Rio de Janeiro: Palimpresto, 2006.
-
MARCONDES, Danilo. Amor e Amizade: Eros e Philia. XX Fórum
Nacional Brasil, “Um novo mundo nos trópicos”, PUC-RIO, Maio 2008, p.02-09.
-
PLATÃO. Diálogos. Seleção de textos
de José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os
Pensadores).
[1] MARCONDES, Danilo. Amor e Amizade: Eros e Philia. XX Fórum Nacional Brasil, “Um novo
mundo
nos trópicos”, PUC-RIO, Maio 2008, p.02-09.
[2] FRANCO, Irley. O sopro do amor: um comentário do discurso de Fedro no Banquete
de Platão. Rio de Janeiro: Palimpresto, 2006.
[3]
Segundo a tradição, aquele que propusesse o tema do symposium deveria ser o primeiro a discursar.
Embora a proposta tenha sido feita por Eríxímaco,
Fedro é apresentado como aquele que frequentemente suscita a questão e tem,
portanto, a primazia do discurso.
[4] FRANCO, Irley. O
individual como objeto do Eros no Lysis e no Banquete de Platão.
Dissertação de
mestrado apresentada ao departamento de Filosofia da
PUC-Rio,1986.
[5] PLATÃO. Diálogos. Seleção de textos de
José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os Pensadores).
[6] AMIR, Lydia. Plato's theory of Love:
Rationality as Passion. Practical. Philosophy: The Journal of Philosophical
Practitioners, Vol. 4, n. 3: 6-14,. 2001.
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