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quarta-feira, 11 de julho de 2012

SOBRE A NATUREZA DO EROS NO BANQUETE DE PLATÃO

Introdução:

Talvez nenhum outro conceito filosófico tenha sido tão fortemente difundido no imaginário popular quanto a ideia do amor platônico. Entretanto, se por um lado é interessante essa aproximação entre o mundo filosófico – muitas vezes um ambiente extremamente esotérico – e a vivência cotidiana das pessoas, por outro, deve-se tomar cuidado para que conceitos tão caros à história da filosofia não se degenerem a ponto de perderem totalmente qualquer ponto de contato com a intenção original de seus autores.
Nesse sentido, procurando comunicar de forma acessível a quem quer que tenha interesse, sem, contudo, abrir mão de um certo rigor acadêmico, esse estudo pretende apresentar, de forma introdutória, algumas considerações sobre a natureza do amor na obra O Banquete, de Platão. Para isso, primeiramente, será introduzida a estruturação do diálogo e algumas considerações iniciais; em um segundo momento, explorar-se-á a natureza do eros propriamente dita; e, por fim, será oferecida uma breve conclusão com as considerações finais.


O Banquete:

            Devido à sua marcante influência sobre a tradição filosófica, O Banquete é considerado por muitos a grande obra fundacional sobre o eros (Cf. MARCONDES, 2008, p.5) [1]. Assim como é comum à boa parte dos escritos platônicos, o texto apresenta-se na forma de diálogo, e tem, do ponto de vista do conteúdo filosófico das ideias, a figura de Sócrates como seu principal personagem. Como sugere o título, o diálogo se desenvolve em meio a um tradicional banquete grego. Estes, apesar de serem momentos festivos, possuíam regras que deviam ser seguidas com certa diligência. Enquanto à primeira parte do evento ficava reservado o deipnon – isto é, a refeição comum – a segunda destinava-se a uma bebedeira coletiva seguida da discussão de um tema filosófico – o potos.
Cabe ressaltar aqui que, embora tivesse papel de destaque nos banquetes, geralmente estando presente em abundância, o vinho não era, de forma alguma, identificado a uma atitude dissoluta.

“Platão, nas leis (em grande parte dos livros I e II), se preocupa em dar ao uso do vinho uma espécie de estatuto legal para regular os banquetes: dessa forma, os banquetes não serviriam apenas como um modo de diversão e de estreitar as amizades [...], mas fariam parte da educação moral, que é o objetivo da política. [...]  Isso só acontece se o legislador der a direção a um presidente [...] sóbrio e sábio que tenha em vista a excelência de seu verdadeiro fim. Se não for assim, Platão sugere uma proibição radical do uso do vinho [...].” (FRANCO, 2006, p. 27) [2]

            O diálogo platônico é introduzido a partir da narrativa de Apolodoro do relato de Aristodemo sobre o banquete            realizado na casa de Ágatão, poeta trágico de grande fama na Grécia Antiga. Nele estão presentes – além do anfitrião e do já mencionado Sócrates – PausâniasErixímacoAristófanesAlcibíades e Fedro. A este último é atribuída, por Erixímaco, a ideia de que cada um deveria fazer um discurso de elogio ao amor, e é dele próprio o primeiro discurso proferido [3].
            Sua fala é marcada por uma grande erudição e por diversas citações provenientes, especialmente, da mitologia. O eros, apresentado como um grande e maravilhoso deus, destaca-se tanto entre os homens, quanto entre os deuses. Segundo Franco, “eros é visto por Fedro do ponto de vista de seus efeitos; ele é um princípio moral que dirige as ações dos homens e se manisfesta nelas (178a – 180b)” (FRANCO, 1986, p. 67-68) [4].
            O segundo discurso é da autoria de Pausânias. Nele, é chamada a atenção para o fato de que nem todo amor pode ser elogiado. Pausânias entende que o amor em si é indiferente no que diz respeito ao seu valor moral e, portanto, apenas se torna belo ou feio, honroso ou desonroso, de acordo com a forma como é realizado.
            Na sequência, e tomando por base o argumento de Pausânias, o médico Erixímaco expõe suas ideias sobre o amor numa perspectiva mais cósmica e, consequentemente, mais ampla. A intenção de Erixímaco é estender para todas as ordens dos fenômenos a distinção entre os dois tipos de amor levantada no discurso anterior. Com isso, o amor deveria não só ser visto como sujeito às mesmas leis da natureza, como, em decorrência direta desse fato, admitiria a possibilidade de produzir efeitos opostos a partir de um princípio único.
            Em seguida, e mantendo essa abordagem cósmica, discursa Aristófanes. Todavia, a partir da introdução do mito Andrógino (189e – 191c) [5], o eros é identificado por ele como um desejo de complementação. Dessa forma, o objeto do eros deveria ser compreendido como complemento da necessidade dos amantes.
            Dando continuidade ao symposium, Ágatão critica a fala de seus companheiros precedentes e é o primeiro a oferecer um discurso que chama a atenção não para os efeitos do amor, mas para sua natureza. Essa contribuição será, de fato, fundamental para a argumentação socrática, onde esta reflexão pretende fixar seu foco principal.

O discurso de Sócrates e a natureza do eros:

            A fala de Sócrates começa, como é de costume, repleta de ironia. Ao apresentar um Sócrates supostamente intimidado pela beleza dos cinco elogios que acabara de ouvir, o objetivo de Platão parece ser não só criticar a forma tradicional do encomion, cuja principal preocupação residia na aparência e não na verdade, como, principalmente, deixar clara a distinção fundamental existente entre os fundamentos da retórica e os da filosofia, justificando, dessa forma, a ascendência da última (Cf. FRANCO, p.70). Assim, o discurso de Sócrates, ao contrário dos demais – que se mantiveram presos a aspectos secundários do eros –, buscará descobrir o que o amor realmente é em sua essência.
            Para realizar essa tarefa, a primeira questão levantada por Sócrates é se o eros pode ser entendido de modo absoluto ou se, por outro lado, deve ser sempre visto de forma correlativa. Em outras palavras, o que Sócrates quer saber é: o amor deve ser sempre amor de alguma coisa ou é possível que seja amor de coisa nenhuma? Utilizando-se do exemplo das relações familiares – onde um pai, por exemplo, só é pai na medida em que tem um filho, não podendo jamais ser pai em si mesmo – Sócrates acaba por concluir que também o amor é amor de alguma coisa, estando necessariamente ligado a um objeto e estabelecendo relação com ele.
            Ora, se o amor é amor de alguma coisa, logo ele deseja aquilo de que é amor. E como não se pode desejar aquilo que já possui, conclui-se que aquilo que amor deseja, necessariamente, lhe falta. Obviamente, pode surgir como objeção a impossibilidade do desejo daquilo que já se possui. Para Franco,

“[...] o que tal sujeito deseja realmente, nos diz Sócrates, é possuir no futuro o que ele já possui no presente, isto é, ele deseja que seu presente permaneça presente. O que Sócrates quer dizer com isso é que aquilo que possuímos no presente não nos é garantido a possuir no futuro. De modo que, desejar ‘continuar sendo o que somos’ ou ‘manter o que temos’ é igual a desejar aquilo de que somos privados no futuro. Longe de estar negando o princípio, portanto, este testemunho da experiência o confirma (200b - e).” (Ibidem, p 75)

            Dessa maneira, Sócrates consegue fixar uma base que o permite prosseguir em sua busca por um princípio geral do amor. Para ele, diferentemente de Aristófanes – para quem o sujeito amado constitui a própria finalidade do desejo – é impossível que esse princípio seja imanente. Contudo, se a finalidade do amor não é o amado (este seria a finalidade da paixão), para onde se destina, pois, o seu desejo?
            Para a imortalidade, responderia Diotima, personagem por intermédio de quem Sócrates realiza seu discurso. O eros é descrito por ela como um desejo de possuir o bem eternamente para si. Além disso, através do argumento da “geração na beleza”, ela afirma que é somente através desse efeito perpetuador que alguém pode conseguir satisfazer o desejo de preservar para sempre o bem.
            Formulado o princípio geral do amor, e tendo demonstrado que o eros, necessariamente, é eros de alguma coisa, coisa que deseja porque não possui, Sócrates passa a considerar o objeto sugerido por Ágatão: a beleza. Assim, se, de fato, o amor é amor da beleza e, portanto, a deseja, é porque não a possui. Logo, do ponto de vista socrático, Ágatão engana-se quando afirma ser belo o amor. Além disso, se, como se admite, o bom é belo e há no amor carência de beleza, logo, ele não pode também, por conseguinte, ser considerado bom.
            Agora, o que significa dizer, exatamente, que o amor não é bom, nem belo? Essa certamente não é uma afirmação de que ele seja mau e feio. Assim como no problema do conhecimento Platão entende que há um lugar intermediário entre a sabedoria (sophia) e a ignorância (amathia) – a opinião verdadeira (ortha doxa) –, aqui o amor é colocado, analogamente, numa posição intermediária entre o bom e o mau, entre o belo e o feio, visto que não possui, mas deseja.
            Como consequência fundamental disso, decorre que o amor não pode ser considerado um deus, visto que a perfeição (eudaimonia) é característica inerente à natureza divina. Porém, também não chega a ser um mortal. Assim como na analogia anterior, ele seguirá numa posição intermediária entre o mortal e o imortal, constituindo aquilo que entre os gregos se conhecia como daimon. Na linguagem mitológica, o daimon é

“[...] um ser cuja função é intermediar a comunicação entre os deuses e os homens, uma vez que nem os primeiros nem os últimos podem comunicar-se diretamente. Assim, os demônios traduzem e transmitem aos deuses as preces e os sacrifícios dos homens, e aos homens, as ordens e as reconpensas pelos sacrifícios recebidos. Ora, este intercâmbio realiza também uma síntese entre mundos separados: os demônios preenchem o intervalo, isto é, o vazio que há entre as esferas divina e mortal, dando ao Universo unidade e ligação.” (Ibidem, p.90)

            Esse conceito é extremamente relevante na teoria de Platão, pois é através dessa visão do daimon como elemento divino que a participação da esfera inferior, ou seja, o mundo terrestre, é possibilitada na esfera superior, o mundo das ideias, sem que a pureza deste último seja alterada. Além disso, ao enfatizar a importância do daimon socrático na educação , Platão parece crer numa forte relação entre a ação (ou não ação) do daimon e a própria realização da filosofia.

“Não é, portanto, surpreendente que o daimon eros tenha um lugar de privilégio no sistema filosófico de Platão, tampouco que o Sócrates retratado por Platão seja ele mesmo um homem erótico: eros é um demônio que preside não só as ligações entre o céu e a terra, o humano e o divino, mas também às ligações entre os homens. Em outras palavras, eros efetua ligações em dois planos distintos: ele está presente quando é questão o eu-e-o-tu, e está também presente quando é questão o eu, o tu, e sua finalidade essencial.” (Ibidem, p. 99)

            Naturalmente, no que diz respeito à filosofia, esses dois planos distintos devem ser considerados simultaneamente.        Assim como o filósofo aspira à sabedoria, a realização desse desejo, por sua vez, implica a comunhão com o outro. Dessa maneira, embora nem todo eros possa ser filósofo, visto que sua finalidade essencial nem sempre estará em perspectiva, todo filósofo deverá ter, necessariamente, uma disposição erótica.

Conclusão:

            Em conformidade à teoria platônica sobre a verdade, o eros platônico também não pode ser realizado plenamente no mundo da experiência sensível. “A busca do verdadeiro amor significa assim o abandono de seu objeto, as coisas belas que nos dão prazer, os belos corpos, a figura do amado, o objeto do desejo, em busca de algo mais fundamental, de natureza em última análise mais elevada, abstrata, espiritual”. (MARCONDES, Op. Cit, p. 5)
 Não só o domínio do individual – onde residem as emoções, sentimentos e desejos particulares – é incapaz de abarcar todo o significado do amor, como os próprios objetos particulares do desejo – sujeitos às influências do devir, como estão – não conseguem conferir-lhe total satisfação.
            Entretanto, pela própria peculiaridade de sua natureza – capaz de restabelecer a harmonia entre o mundo do devir e o mundo do Ser –, o eros torna possível a realização da eudaimonia entre os homens. Para Sócrates, proceder corretamente nos caminhos do amor consistiria

“em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo.” (211 c)

            Dessa forma, o que fica evidente é que a possibilidade de realização do eros pelos homens encontra-se assentada sobre a mesma base que sustenta a possibilidade do conhecimento na filosofia de Platão. Mais ainda, é possível afirmar, segundo Singer, que, no platonismo, “verdadeiro amor e verdadeira racionalidade coincidem”. (SINGER, Apud AMIR, 2001, p. 10) [6]. Não é de se espantar, portanto, a sugestão de Platão de que o único capaz de realizar efetiva e plenamente o amor entre os homens seria o filósofo, platônico. (Cf. Ibidem, p.10).

Bibliografia:

- AMIR, Lydia. Plato's theory of Love: Rationality as Passion. Practical. Philosophy: The Journal of Philosophical Practitioners, Vol. 4, n. 3: 6-14,. 2001.
- FRANCO, Irley.  O individual como objeto do Eros no Lysis e no Banquete de Platão. Dissertação de mestrado apresentada ao departamento de Filosofia da PUC-Rio,1986.
- FRANCO, Irley. O sopro do amor: um comentário do discurso de Fedro no Banquete de Platão. Rio de Janeiro: Palimpresto, 2006.
- MARCONDES, Danilo. Amor e Amizade: Eros e Philia. XX Fórum Nacional Brasil, “Um novo mundo nos trópicos”, PUC-RIO, Maio 2008, p.02-09.
- PLATÃO. Diálogos. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os Pensadores).





[1] MARCONDES, Danilo. Amor e Amizade: Eros e Philia. XX Fórum Nacional Brasil, “Um novo mundo
nos trópicos”, PUC-RIO, Maio 2008, p.02-09.
[2] FRANCO, Irley. O sopro do amor: um comentário do discurso de Fedro no Banquete
de Platão. Rio de Janeiro: Palimpresto, 2006.
[3] Segundo a tradição, aquele que propusesse o tema do symposium deveria ser o primeiro a discursar.
Embora a proposta tenha sido feita por Eríxímaco, Fedro é apresentado como aquele que frequentemente suscita a questão e tem, portanto, a primazia do discurso.
[4] FRANCO, Irley.  O individual como objeto do Eros no Lysis e no Banquete de Platão. Dissertação de
mestrado apresentada ao departamento de Filosofia da PUC-Rio,1986.
[5] PLATÃO. Diálogos. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os Pensadores).
[6] AMIR, Lydia. Plato's theory of Love: Rationality as Passion. Practical. Philosophy: The Journal of Philosophical Practitioners, Vol. 4, n. 3: 6-14,. 2001.

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