Diante do que se tem
observado no Rio de Janeiro nos últimos anos, por intermédio da maior quadrilha
política que já conseguimos sustentar desde que Estácio de Sá resolveu nos dar
o ar de sua graça, não se pode negar que o feito dos profissionais da limpeza
foi um ato heroico e que, certamente, nos deixa uma série de lições. Sim, pra
quem vive com oitocentos contos por mês, passar a ganhar mil e cem reais faz
toda a diferença!
Além do mais, transpondo
o materialismo que geralmente circunscreve as demandas trabalhistas numa
sociedade que decidiu eleger o trabalho assalariado como a única e/ou a melhor
forma de (sobre) vivência, onde houver um pouquinho de sensibilidade, há de se
concordar que o que os garis fizeram foi bonito demais.
Quem me conhece pelo
menos um pouco sabe que tenho críticas profundas à escola e ao sistema de
educação. Contudo, não posso negar que durante todo o período em que lá estive,
tive a oportunidade de aprender coisas valiosíssimas. Extracurriculares, é
claro. Estudei em Colégio Militar e, num ambiente repleto de normas e idiossincrasias,
aprendi desde cedo, por força da necessidade, um princípio de vida que carrego
comigo até hoje: se todo mundo fizer, não dá merda para ninguém!
E isso os garis
entenderam. Entenderam e mostraram que uma vontade uníssona é capaz de subverter
poderes e mover montanhas. Acreditaram e viram o milagre. Ou, se a sua religião
tiver uma estética mais laica, pode-se dizer que, seguindo o curso da
simplicidade da vida, conseguiram exatamente tudo o que quiseram. Nem mais, nem
menos.
Mas, diante dessa
tamanha força manipulada com maestria por gente que historicamente tem suas
vidas vampirizadas pelo poder público, uma pergunta – a mais óbvia – não pode
deixar de ser feita: o que fez com que os garis, diferentemente dos
professores, médicos, bombeiros e até mesmo dos policiais (vale lembrar que,
apesar de coibir violentamente a greve dos outros, há exatos 2 anos, as
polícias também ensaiaram uma tentativa de greve), saíssem dessa greve
percebendo-se como vitoriosos?
Creio firmemente que,
muito mais do que o ganho salarial em si, a principal vitória dos garis foi em
termos de autoestima. A opção pela greve em pleno carnaval surgiu,
inicialmente, como forma de pressionar o governo, mas, muito mais do que isso, o
que eles conseguiram, de forma consciente ou por uma conspiração do universo – particularmente,
confesso que tendo a preferir as conspirações do universo às nossas muitas
razões –, foi a libertação do parasitismo ideológico dos partidos e da obsoleta
organização política tradicional. Intencionalmente ou não, a coisa ficou fina.
Com os quadros dos
partidos de classe média – que,
geralmente, percebem a si mesmos como
proletários com consciências superiores – imersos na irresistível folia
carioca, o povo, finalmente, sem ninguém para conduzi-lo e asfixiá-lo com suas consciências
forjadas em bibliotecas, viu-se livre para ser povo. E é somente quando um povo
permite encontrar a si mesmo, na horizontalidade de suas relações, em harmonia
com as muitas redes que compõe a vida, é que se pode tomar as rédeas da
história e escrever o próprio caminho.
Contudo, não posso
negar que, se por um lado os garis nos deram um exemplo de organização e força,
por outro deixaram bastante a desejar. Passada a euforia inicial da vitória,
seria uma temeridade deixar de jogar no ventilador todas as questões que
suscitam a greve do pessoal responsável por dar sumiço à nossa porcaria.
Disse, anteriormente,
que os garis conseguiram tudo o que quiseram. Isso é ótimo porque revela a
força e a coesão social do grupo, mas, de outro modo, acaba por deixar exposta uma outra realidade: os garis quiseram muito pouco. Mais do que isso: nós, enquanto
sociedade, tendemos a querer muito pouco. Aprendemos – e tivemos muitos bons
mestres nisso – a querer somente o necessário para que tudo permaneça da mesma
forma. Domesticamos nossa vontade, de modo que, até em nossas vitórias, nos
tornamos inofensivos.
E aqui, sim, creio que
a greve dos garis, mesmo tendo sido encerrada com todas as reivindicações
atendidas, tem muito mais a contribuir com a nossa construção enquanto povo
autônomo, que sabe se colocar não apenas diante do colonizador estrangeiro, mas
– antes de tudo – diante do colonizador que habita dentro de cada um de nós. Só
por isso, na minha bastante limitada visão, o que os garis vieram fazer foi nos
dar uma aula sobre liberdade. Afinal, fazendo o que queremos fazer nos tornamos
aquilo que realmente queremos ser. Portanto, não há responsabilidade humana maior do que a
que existe em relação àquilo que se deseja.
Nesse sentido, creio
que nossos desejos devem ser sempre sondados pelo desejo humano maior de
liberdade. Com isso, não se pode deixar passar essa rica oportunidade de
refletirmos não apenas sobre o salário dos garis e suas péssimas condições de
trabalho – aspectos de necessidade urgente, como já dito –, mas, acima de tudo
– creio eu –, sobre a própria natureza do trabalho dos garis. E, para isso,
temos que falar de lixo.
Além do genocídio e do
estelionato, por exemplo, a produção de lixo constitui uma daquelas atividades
que, dentre todas as espécies existentes na Terra, só existe entre os animais
racionais. Não há lixo na natureza. É uma invenção 100% humana.
Penso que nossa grande dificuldade em abordar
essa questão reside no fato de que olhar para o nosso lixo implica em olhar
para nós mesmos. Ali, na singeleza da sacola podre e fétida, encontramos os
resíduos de todas as nossas demandas. Acho, do fundo do coração, que qualquer
terapia que se pretenda séria deveria começar pela análise do lixo. Não somos
muito diferentes dele. Tudo o que existe lá, existe em nós, com algumas
pouquíssimas variações.
Entretanto, fomos
ensinados desde cedo que lixo é coisa suja. Aliás, não se pode esquecer que o
grande terror que se coloca nas crianças é que elas devem estudar para não se
tornarem garis. É o tipo da coisa que quanto menos contato se tiver, melhor. Não
é à toa que, em algum momento da história, resolvemos terceirizar (entregar ao
governo, nesse caso) o descarte do nosso lixo. Exatamente como fazemos com
nossas próprias fezes através do botãozinho mágico. Não fosse tão desonroso,
creio delegaríamos a outros a higiene da nossa própria bunda!
O grande problema dessa
história é que toda essa alienação implantada e consentida – não acredito em
nenhuma espécie de vitimismo – toca na coluna vertebral daquilo que a gente aprendeu
a chamar de civilização ocidental: a questão do consumo. A produção e acúmulo
de lixo nas nossas cidades são, nesse sentido, como um grande câncer que vem para
avisar ao nosso corpo social que o caminho que temos trilhado é um caminho de
morte. Num contexto como esse, os profissionais da limpeza, que dão seu sangue
e seu suor nas ruas da cidade, levando para bem longe o mau cheiro de nossas
casas, acabam por fazer o papel daquele analgésico paliativo, que, apesar de
ser fundamental para o paciente ter um pouco de alívio, é incapaz de curar a doença.
Só por isso, a
conquista dos garis deve ser recebida, sim, com bastante alegria e servir de
inspiração a todos nós, mas não se pode esquecer a boa e velha definição de
sistema que o Coronel Nascimento, protagonista de Tropa de Elite II, nos deixou como legado: “o sistema é uma
articulação de interesses escrotos”. Se tiver que cortar na própria carne para
salvar o corpo, ele o fará sem muitos pudores e ainda transformará isso em
capital político.
Assim, minha esperança
– em relação a mim mesmo acima de tudo (aprendi outro dia com um amigo que a
gente só fala com a gente mesmo) – é que a conquista dos garis nos leve a outro
nível de desejo social. Que possamos, juntos, co-criarmos uma cidade(?) onde a
liberdade humana tenha expressão legítima e todos os seres realizem suas
potencialidades num ambiente propício à inventividade existencial.
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