A boca fala do que o coração tá cheio

domingo, 9 de março de 2014

Foda a vitória dos garis. Mas, só um pouco!




Diante do que se tem observado no Rio de Janeiro nos últimos anos, por intermédio da maior quadrilha política que já conseguimos sustentar desde que Estácio de Sá resolveu nos dar o ar de sua graça, não se pode negar que o feito dos profissionais da limpeza foi um ato heroico e que, certamente, nos deixa uma série de lições. Sim, pra quem vive com oitocentos contos por mês, passar a ganhar mil e cem reais faz toda a diferença!

Além do mais, transpondo o materialismo que geralmente circunscreve as demandas trabalhistas numa sociedade que decidiu eleger o trabalho assalariado como a única e/ou a melhor forma de (sobre) vivência, onde houver um pouquinho de sensibilidade, há de se concordar que o que os garis fizeram foi bonito demais.

Quem me conhece pelo menos um pouco sabe que tenho críticas profundas à escola e ao sistema de educação. Contudo, não posso negar que durante todo o período em que lá estive, tive a oportunidade de aprender coisas valiosíssimas. Extracurriculares, é claro. Estudei em Colégio Militar e, num ambiente repleto de normas e idiossincrasias, aprendi desde cedo, por força da necessidade, um princípio de vida que carrego comigo até hoje: se todo mundo fizer, não dá merda para ninguém!

E isso os garis entenderam. Entenderam e mostraram que uma vontade uníssona é capaz de subverter poderes e mover montanhas. Acreditaram e viram o milagre. Ou, se a sua religião tiver uma estética mais laica, pode-se dizer que, seguindo o curso da simplicidade da vida, conseguiram exatamente tudo o que quiseram. Nem mais, nem menos.

Mas, diante dessa tamanha força manipulada com maestria por gente que historicamente tem suas vidas vampirizadas pelo poder público, uma pergunta – a mais óbvia – não pode deixar de ser feita: o que fez com que os garis, diferentemente dos professores, médicos, bombeiros e até mesmo dos policiais (vale lembrar que, apesar de coibir violentamente a greve dos outros, há exatos 2 anos, as polícias também ensaiaram uma tentativa de greve), saíssem dessa greve percebendo-se como vitoriosos?

Creio firmemente que, muito mais do que o ganho salarial em si, a principal vitória dos garis foi em termos de autoestima. A opção pela greve em pleno carnaval surgiu, inicialmente, como forma de pressionar o governo, mas, muito mais do que isso, o que eles conseguiram, de forma consciente ou por uma conspiração do universo – particularmente, confesso que tendo a preferir as conspirações do universo às nossas muitas razões –, foi a libertação do parasitismo ideológico dos partidos e da obsoleta organização política tradicional. Intencionalmente ou não, a coisa ficou fina.

Com os quadros dos partidos de classe média –  que, geralmente,  percebem a si mesmos como proletários com consciências superiores – imersos na irresistível folia carioca, o povo, finalmente, sem ninguém para conduzi-lo e asfixiá-lo com suas consciências forjadas em bibliotecas, viu-se livre para ser povo. E é somente quando um povo permite encontrar a si mesmo, na horizontalidade de suas relações, em harmonia com as muitas redes que compõe a vida, é que se pode tomar as rédeas da história e escrever o próprio caminho.

Contudo, não posso negar que, se por um lado os garis nos deram um exemplo de organização e força, por outro deixaram bastante a desejar. Passada a euforia inicial da vitória, seria uma temeridade deixar de jogar no ventilador todas as questões que suscitam a greve do pessoal responsável por dar sumiço à nossa porcaria.

Disse, anteriormente, que os garis conseguiram tudo o que quiseram. Isso é ótimo porque revela a força e a coesão social do grupo, mas, de outro modo, acaba por deixar exposta uma outra realidade: os garis quiseram muito pouco. Mais do que isso: nós, enquanto sociedade, tendemos a querer muito pouco. Aprendemos – e tivemos muitos bons mestres nisso – a querer somente o necessário para que tudo permaneça da mesma forma. Domesticamos nossa vontade, de modo que, até em nossas vitórias, nos tornamos inofensivos.

E aqui, sim, creio que a greve dos garis, mesmo tendo sido encerrada com todas as reivindicações atendidas, tem muito mais a contribuir com a nossa construção enquanto povo autônomo, que sabe se colocar não apenas diante do colonizador estrangeiro, mas – antes de tudo – diante do colonizador que habita dentro de cada um de nós. Só por isso, na minha bastante limitada visão, o que os garis vieram fazer foi nos dar uma aula sobre liberdade. Afinal, fazendo o que queremos fazer nos tornamos aquilo que realmente queremos ser. Portanto, não há responsabilidade humana maior do que a que existe em relação àquilo que se deseja.

Nesse sentido, creio que nossos desejos devem ser sempre sondados pelo desejo humano maior de liberdade. Com isso, não se pode deixar passar essa rica oportunidade de refletirmos não apenas sobre o salário dos garis e suas péssimas condições de trabalho – aspectos de necessidade urgente, como já dito –, mas, acima de tudo – creio eu –, sobre a própria natureza do trabalho dos garis. E, para isso, temos que falar de lixo.

Além do genocídio e do estelionato, por exemplo, a produção de lixo constitui uma daquelas atividades que, dentre todas as espécies existentes na Terra, só existe entre os animais racionais. Não há lixo na natureza. É uma invenção 100% humana.

 Penso que nossa grande dificuldade em abordar essa questão reside no fato de que olhar para o nosso lixo implica em olhar para nós mesmos. Ali, na singeleza da sacola podre e fétida, encontramos os resíduos de todas as nossas demandas. Acho, do fundo do coração, que qualquer terapia que se pretenda séria deveria começar pela análise do lixo. Não somos muito diferentes dele. Tudo o que existe lá, existe em nós, com algumas pouquíssimas variações.

Entretanto, fomos ensinados desde cedo que lixo é coisa suja. Aliás, não se pode esquecer que o grande terror que se coloca nas crianças é que elas devem estudar para não se tornarem garis. É o tipo da coisa que quanto menos contato se tiver, melhor. Não é à toa que, em algum momento da história, resolvemos terceirizar (entregar ao governo, nesse caso) o descarte do nosso lixo. Exatamente como fazemos com nossas próprias fezes através do botãozinho mágico. Não fosse tão desonroso, creio delegaríamos a outros a higiene da nossa própria bunda!

O grande problema dessa história é que toda essa alienação implantada e consentida – não acredito em nenhuma espécie de vitimismo – toca na coluna vertebral daquilo que a gente aprendeu a chamar de civilização ocidental: a questão do consumo. A produção e acúmulo de lixo nas nossas cidades são, nesse sentido, como um grande câncer que vem para avisar ao nosso corpo social que o caminho que temos trilhado é um caminho de morte. Num contexto como esse, os profissionais da limpeza, que dão seu sangue e seu suor nas ruas da cidade, levando para bem longe o mau cheiro de nossas casas, acabam por fazer o papel daquele analgésico paliativo, que, apesar de ser fundamental para o paciente ter um pouco de alívio, é incapaz de curar a doença.

Só por isso, a conquista dos garis deve ser recebida, sim, com bastante alegria e servir de inspiração a todos nós, mas não se pode esquecer a boa e velha definição de sistema que o Coronel Nascimento, protagonista de Tropa de Elite II, nos deixou como legado: “o sistema é uma articulação de interesses escrotos”. Se tiver que cortar na própria carne para salvar o corpo, ele o fará sem muitos pudores e ainda transformará isso em capital político.

Assim, minha esperança – em relação a mim mesmo acima de tudo (aprendi outro dia com um amigo que a gente só fala com a gente mesmo) – é que a conquista dos garis nos leve a outro nível de desejo social. Que possamos, juntos, co-criarmos uma cidade(?) onde a liberdade humana tenha expressão legítima e todos os seres realizem suas potencialidades num ambiente propício à inventividade existencial.
             

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