1
- Introdução
Apesar de ter rejeitado a existência
de uma natureza humana metafísica que conferisse ao homem qualquer sentido de
unidade, fazendo-o sentir-se pertencente a uma humanidade, Nietzsche – como que
por ironia do acaso – acabou por dedicar bom tempo de seus estudos ao
desbravamento de uma questão compartilhada por grande parte dos seres humanos:
as origens do bem e do mal.
Tendo como referência principal a sua
Genealogia da Moral, esse breve
trabalho tem como objetivo a apresentação de alguns insights nietzscheanos a respeito da origem desses valores, e,
especialmente, sua relação com a decadência do homem moderno. Para isso, serão apresentadas
não só algumas considerações preliminares sobre a concepção nistzscheana do homem e do mundo, como, por fim, será oferecida, a título de conclusão, uma
crítica onde se buscará questionar alguns pontos abraçados pelo filósofo alemão
ao longo da construção de seu argumento.
2 – O homem e o mundo como Vontade
de Potência
Se há um conceito em Nietzsche que
pode ser considerado central, permeando toda sua obra, certamente é o de Vontade de Potência. Numa espécie de
radicalização da tese de Schopenhauer – de que a essência mais íntima do ser é
a vontade de viver –, Nietzsche irá
entender a vida como força, e uma
força que tem em si mesma o seu ponto de aplicação. Em outras palavras, poder-se-ia
dizer que viver, para Nietzsche, é sempre viver mais. Não em um sentido de longevidade,
mas estando mesmo acima da maneira como se vive: é a vontade de viver como pura
afirmação de si.
Essa ideia será tão importante na
filosofia nietzschena que será encontrada tanto como um conceito cosmogônico,
quanto como um conceito histórico ou psicológico. O mundo, a história e o
próprio homem são, assim, pensados por Nietzsche como um eterno devir
resultante da ação de uma multiplicidade de forças. Em um de seus fragmentos
póstumos, ele expõe essa ideia de forma bastante clara:
E
sabeis o que é para mim ‘o mundo’? Devo mostrá-lo a vós em meu espelho? Este
mundo: uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea
grandeza de força, que não se torna maior nem menor, que não se consome, mas
apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu todo, uma economia sem
despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos, cercada de ‘nada’
como de seu limite, nada de evanescente, de desperdiçado, nada de infinitamente
extenso, mas como força determinada posta em um determinado espaço, e não em um
espaço que em alguma parte estivesse “vazio”, mas antes como força por toda
parte, como jogo de forças e ondas de força ao mesmo tempo um e múltiplo, aqui
acumulando-se ali minguando, um mar de forças tempestuando e ondulando em si
próprias, eternamente mudando, eternamente recorrentes, com descomunais anos de
retorno, com uma vazante e enchente de suas configurações, partindo das mais
simples às mais múltiplas, do mais quieto, mais rígido, mais frio ao mais ardente,
mais selvagem, mais contraditório consigo mesmo, e depois outra vez voltando da
plenitude ao simples, do jogo de contradições de volta ao prazer da
consonância, afirmando a si próprio nessa igualdade de suas trilhas e anos,
abençoando a si próprio como aquilo que tem de retornar, como um vir-a-ser que
não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço –: esse meu mundo
dionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio,
eternamente-destruir-a-si-próprio, esse mundo secreto da dupla volúpia, esse
meu ‘para além de bem e mal’, sem alvo, se na felicidade do círculo não está
nenhum alvo, sem vontade, se um anel não tem boa vontade consigo mesmo –,
quereis um nome para esse mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma
luz também para nós, vós, os mais escondidos, os mais fortes, os mais
intrépidos, os mais da meia-noite? – Esse mundo é a vontade de potência – e
nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada
além disso! (NIETZSCHE, 1978, p.397) .
Obviamente, essa afirmação
encontra-se assentada sobre alguns axiomas. O primeiro, e que grita aos olhos, é
a negação da existência de um Deus
criador. Além disso, a quantidade total de força existente nesse universo de
matéria não-criada não pode ser infinita, mas – antes – deve ser limitada. É somente a partir daí que
Nietzsche poderá afirmar a eternidade
do mundo e seu fluxo circular constante
que não objetiva nenhuma finalidade específica.
Assim, lançados rapidamente os
pressupostos da filosofia nietzschena – mas de forma suficiente para o intuito
deste trabalho –, pode-se partir com mais segurança para a análise das origens
dos valores morais propriamente dita.
3 – As origens do Bem e do Mal
Nietzsche inicia sua dissertação
primeira da Genealogia da Moral
dirigindo uma dura crítica aos psicólogos ingleses. Para ele, estes – como
enigmas vivos – teriam algo mais interessante a revelar do que seus próprios
livros, que careciam de um espírito histórico.
O problema da genealogia da moral
traçada por esses psicólogos ingleses é apontado por Nietzsche logo em seu
início. Quando pretenderam precisar a origem do conceito e do valor “bom” –
associando-o a uma ideia de utilidade das ações não egoísticas, que com o tempo
teria sido esquecida, fazendo com que o conceito fosse assimilado por costume como
“bom em si mesmo” –, eles não consideraram nem mesmo que o próprio sujeito – e, especialmente, o sujeito
moderno, com seu pujante livre-arbítrio – é uma criação, uma invenção. E, para
Nietzsche, não levar isto em consideração no estudo das origens da moral representaria
um enorme equívoco (Cf. GLIKSMAN,
2001, p. 119) .
Segundo Nietzsche, a maneira de agir
e não agir do homem, assim como sua felicidade ou infelicidade, tem uma
profunda relação com a fisiologia, afetando de forma surpreendente o pensamento
(Cf. Ibidem, p.119,120). Assim é que, partindo de uma análise
etimológica, ele irá negar toda essa construção de valores que se baseia na utilidade e no esquecimento, e irá apresentar o “bom” não como uma ideia que
fundamenta as ações dos homens, mas identificando-o às próprias ações dos homens bons. Para ele,
o
juízo ‘bom’ não emana daqueles a quem se prodigalizou a ‘bondade’. Foram os
mesmo bons, os homens distintos, os poderosos, os superiores que julgaram
‘boas’ as suas ações; isto é, ‘de primeira ordem’, estabelecendo esta
nomenclatura por oposição a tudo quanto era baixo, mesquinho, vulgar e vilão (NIETZSCHE,
2011, p.32) .
Assim,
o homem não é definido moralmente por sua ação, mas – ao contrário – é sua ação
que, ao revelar sua força, se apropria do ato como bom. Mas quem teriam sido
esses primeiros homens bons?
Em toda a filosofia nietzscheana há
uma marca muito forte não só desse espírito histórico – historicista até –
como, especialmente, de uma dicotomia que separa os homens em duas espécies, ou
melhor, em dois tipos: o homem da moral nobre e o homem da moral escrava.
O homem bom, dotado dessa força
criadora e dessa vontade de potência que domina, obviamente, é identificado ao
homem da moral nobre. A partir de seus estudos filológicos de análise
etimológica do valor do “bom” em diferentes culturas, Nietzsche não só entendeu
que o “bom” sempre esteve ligado a nobre,
aristocrático, àquele privilegiado, como
concluiu que sua criação como valor moral se deu como forma de expansão do
poder, aumento do domínio sobre os escravos e, acima de tudo, como forma de
demarcar linguisticamente aquilo que está dentro e aquilo que está fora dos
interesses (Cf. EIZIRIK & TREVISAN,
2006, p. 366) .
Dessa forma, o que aparece por trás dessa ideia de valoração não é uma
utilidade que, de antemão, pressupõe uma moderação, nem uma valiosidade, como
afirmavam os historiadores da moral, mas – de outro modo – o poder que uma
casta mais nobre possui de criar valores que demarquem hierarquias (MOREIRA, 2010,
p. 189) .
É óbvio
que as designações morais de valor, em toda parte, foram aplicadas primeiro
a homens, e somente depois, de forma derivada, a ações: por
isso é um grande equívoco, quando historiadores da moral partem de questões
como "por que foi louvada a ação compassiva?". O homem de espécie
nobre se sente como aquele que determina valores, ele não tem necessidade de
ser abonado, ele julga: "o que me é prejudicial é prejudicial em si",
sabe-se como o único que empresta honra às coisas, que cria
valores. Tudo o que conhece de si, ele honra: uma semelhante moral é
glorificação de si (NIETZSCHE, 2001, p. 172-3) .
Assim, se o homem da moral nobre tem
esse poder de criar valores e demarcar hierarquias de forma positiva, o mesmo
não acontece com o homem da moral escrava. Enquanto o primeiro – com seu estado
de alma elevado que o distingue e determina hierarquias – age de forma
afirmativa, simplesmente desprezando e afastando de si os seres que exprimem o
contrário desse estado de orgulho, considerando-os apenas como ruins, o segundo – por sua vez – age somente
de forma reativa e a partir de uma negação.
É extremamente importante ressaltar
aqui que essa reatividade da moral escrava tem como fundamento o ressentimento. O homem da moral escrava
é, para Nietzsche, antes de tudo, um ressentido.
Relacionado
a um problema fisiológico, o ressentimento serve para evidenciar aquele homem
sem forças para reagir diante dos imprevistos e das dificuldades da vida e que,
também, não consegue digerir os maus sentimentos, aqueles sentimentos nocivos,
venenosos, produzidos por sua incapacidade de realizar “a verdadeira reação, a
dos atos (NIETZSCHE, 2006, p. 29 apud
MOREIRA, Op. Cit., p. 188).
Assim, não podendo viver de forma espontânea
e ativa, esse indivíduo ressentido passaria a viver em função de “um fora”, de
“um outro”, de “um não-eu”, transformando esse Não em seu ato criador (Cf.
MOREIRA, Op. Cit., p 188).
É
de fundamental importância perceber que a distinção que se faz aqui não é mais
entre bom e ruim, como no caso da moral nobre, mas entre bom e mau. O homem da
moral escrava para se perceber como bom depende – antes – da afirmação do outro
como mau. É a clássica lógica do tu és
mau, logo eu sou bom.
Como
consequência desse ressentimento e dessa sensação de impotência diante da
realidade, surge no homem da moral escrava o desejo de vingança em relação àqueles que o desprezaram. E é
exatamente dentro desse contexto de ideias que Nietzsche irá relacionar o
advento do cristianismo à decadência do homem moderno.
Em
seu entendimento, teria sido o cristianismo o principal responsável pela
transmutação conceitual dos valores bom e
ruim, provenientes da moral nobre, nos conceitos bom e mau, característicos da moral escrava. Sustentar essa
posição, entretanto, não foi fácil. Nietzsche teve que, para isso, não só
recorrer às raízes judaicas do cristianismo, como, principalmente, postular o
povo judeu como “o povo sacerdotal do ressentimento par excellence” (NIETZSCHE, 2006, p.44, apud MOREIRA, Op. Cit.,
p.189). Segundo ele:
Na
história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os
mais ricos de espírito — comparado ao espírito de vingança sacerdotal, todo
espírito restante empalidece. A história humana seria uma tolice, sem o
espírito que os impotentes lhes trouxeram — tomemos logo o exemplo maior. Nada
do que na terra se fez contra “os nobres”, “os poderosos”, “os senhores”, “os
donos do poder”, é remotamente comparado ao que os judeus contra eles fizeram;
os judeus, aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e
conquistadores apenas através de uma radical tresvaloração dos valores deles,
ou seja, por um ato da mais espiritual vingança. Assim convinha a um povo
sacerdotal, o povo da mais entranhada sede de vingança sacerdotal. Foram os
judeus que com apavorante coerência ousaram inverter a equação de valores
aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses), e com
unhas e dentes (os dentes do ódio mais profundo, o ódio impotente) se apegaram
a esta inversão, a saber, “os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres,
impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os
únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem aventurança —
mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os
cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os
desventurados, malditos e danados!... (NIETZSCHE, 1998, p.25-6) .
Assim,
a partir dessa transmutação dos conceitos, a aristocracia sacerdotal teria
criado valores em forma de cura para as supostas doenças da humanidade. E,
dentre esses remédios, certamente, o principal teria sido a própria ideia de
Deus e de verdade suprema. Com isso, associando a ideia de verdade à de juízo
de valor, a aristocracia sacerdotal teria triunfado, codificando e
simplificando o mundo em detrimento da multiplicidade, da variedade e do
movimento.
O
grande problema, para Nietzsche, é que esse tipo metafísico de conhecimento teria
como único objetivo criar uma identidade e uma unidade que a vida não tem. Em
seu entendimento, o conceito de verdade parte de uma avaliação da vida que nega
o fluxo, o movimento, a guerra de forças. Portanto, a verdade não poderia ser
usada como critério de avaliação da vida. Só a própria vida possuiria esse
critério (Cf. MOREIRA, Op. Cit., p.190).
O
que Nietzsche está – ousadamente – afirmando é que aquilo que ele denomina decadência do homem moderno teve início
com os judeus e sua rebelião escrava
na moral, e triunfou com o amor cristão – este não como uma negação do ódio
judeu, mas como coroamento dele.
E
o que se vê com essa cultura do ressentimento é a vontade de dominar o animal
de rapina que existe no homem, dominá-lo e depois de vencidos e dominados os ideais
do homem nobre, conservar suas ficções como os verdadeiros objetos da cultura
promovendo um autêntico retrocesso para a humanidade. E é a isso que hoje
devemos temer, ao “homem manso”, que forjado por essa cultura possa se sentir
como apogeu e meta. Para Nietzsche, não se pode ter mais amor e respeito ao
homem enquanto este se mantiver preso a esta cultura (Ibidem, p. 191).
4 - Conclusão
O
que fica claro ao longo de todo esse empreendimento de busca das origens dos
valores morais é que Nietzsche – à semelhança dos psicólogos ingleses à quem
dirige suas críticas – também acaba se mostrando um grande enigma vivo com
muito mais revelações a oferecer do que seus próprios livros.
Filho
de pastor luterano, o filósofo alemão deixa transparecer ao longo de sua
filosofia todos os conflitos inerentes a uma vida que se desenvolve no interior
de um ambiente religioso formal e altamente opressor. Não por acaso, nem por alguma
evidência histórica, seu pressuposto fundamental é a negação da existência de
Deus e a consequente eternidade do mundo.
Assim,
partindo desse ponto de vista, não é de se admirar que toda uma filosofia que se
sustenta sobre a separação dos homens em tipos, naturalizando a dominação dos
mais fortes sobre os mais fracos, tenha partido – ela mesma – de uma negação, ironicamente
a marca principal do homem ressentido.
Como
afirma Mário Ferreira dos Santos em seu prefácio à Genealogia da Moral – obra da qual também é tradutor –, se as acusações que os adversários
de Nietzsche lhe fazem não procedem e, muitas vezes, devem, com razão, serem
consideradas injustas, não procediam também
as acusações disparadas por Nietzsche àqueles a quem tanto atacou. Não todas,
pelo menos.
Se
não é Nietzsche o ‘louco degenerado’, porque havia grande religiosidade em sua
alma, como o demonstrou em ‘Zaratustra’ e tivemos naquela obra a oportunidade
de provar, se ele não ‘podia crer’, na verdade, o de que descria era a
caricatura que ele formava, seguindo, neste ponto, as influências de tantos
inimigos do cristianismo. E, aqui, foi ele bem frágil e ‘bem rebanho’, pois
deixou-se acaudilhar por todos os grandes acusadores que inflamaram, através
dos tempos, uma religião que, se deu homens que não estavam à sua altura, não
deixa, contudo, de representar o que de mais alto o homem conheceu (NIETZSCHE,
2011, p.15)
Dessa
forma, ao dedicar boa parte de seus escritos ao ataque do cristianismo, pode-se
concluir que, baseado em seu próprio argumento, restou como saída ao filósofo
alemão apenas duas possibilidades: reconhecer a incoerência e o reducionismo de
uma filosofia asfixiada pela história; ou, de outro modo, confessar a si mesmo
como um representante – empenhado – da moral escrava.
5 - Referências Bibliográficas:
-
EIZIRIK, M. F. & TREVISAN, J. F.. Da Genealogia da Moral à Moral do Ressentimento: A Crueldade nos Bons
Costumes. In: Psicologia, ciência e profissão, vol. 26, Nº 3. Brasília,
Setembro de 2006. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/pcp/v26n3/v26n3a03.pdf
> Acesso em: 10 outubro 2012.
-
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. [Tradução: Paulo
César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
-
____________________. Genealogia da Moral. [Tradução: Paulo
César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
-
____________________. Genealogia da Moral. [Tradução: Mário
Ferreira dos Santos]. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
-
____________________. Obras
incompletas. [Tradução:
Rubens Rodrigues Torres Filho]. São Paulo: Ed. Abril, 1978.