A boca fala do que o coração tá cheio

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Comida e existência: escolhendo o combustível que me alimentará durante o caminho



Num momento onde se tem observado a indústria da saúde e do bem-estar crescer vertiginosamente – com sua volumosa quantidade de informação disponível para todos os gostos – cabe a nós – indivíduos que, pelo menos três vezes por dia, lançamos para dentro do corpo alimentos que são responsáveis por atualizar nossa vida na Terra – escolher com qual tipo de energia queremos comungar.
Andando por aí, no chão da vida, descobri que a realidade – e o homem, que a ela pertence – não possui uma essência que lhe serve de fundamento. De outro modo, são as relações – os modos como as pessoas e as coisas se configuram em seu processo de interação – que constituem um conjunto de significados responsáveis por fundar o mundo. Ou, em outras palavras, aquilo que entendemos por realidade.  
Nesse sentido, não havendo a existência de um homem universal – ou de um padrão ou modelo de humano que possa ser universalizado e aplicado a todos os homens – há que se entender que a relação do homem com o alimento – se, realmente, quer-se pensar esse homem em termos de sua liberdade – será sempre uma relação pautada por sua singularidade. Portanto, falar de uma alimentação inteligente como uma espécie de dieta universal que deveria ser seguida por todos os homens não me parece lá a opção mais inteligente.
Uma alimentação inteligente, de outra maneira, é justamente aquela que – de modo oposto a essa nossa tendência ocidental racionalista (e violenta) de universalização de nossas experiências – leva em consideração, primariamente, a nossa singularidade. É uma forma de se relacionar com o alimento que se mantém viva e aberta, procurando não delimitar aquilo que se pode (ou deve) ou não comer, mas colocando-se como uma postura de ativa receptividade na dinâmica de abundância da Terra.
Dessa maneira, creio que a principal característica de uma alimentação que se pretenda verdadeiramente inteligente é, justamente, sua abertura proveniente do entendimento de que o ato de comer é um dos muitos modos de nos relacionarmos com a Terra e com a vida. Obviamente, entretanto, essa abertura – como tudo na vida – não é irrestrita. Qual seria, então, o limite?
A resposta é bastante simples: o limite é a própria vida. Sim, explico melhor.
Creio na vida como um processo dinâmico de autorrealização que tem na geração de mais vida seu único propósito. Em termos nietzscheanos, poderia dizer que o grande papel do homem na Terra é a realização de sua vontade de potência. Ou, para não complicar, simplesmente, a realização de sua potência.
Dentro dessa perspectiva, penso que alimentar-me de maneira inteligente é alimentar-me de forma que a relação com o alimento seja uma relação que me auxilie no desenvolvimento da minha potência. Uma alimentação que permita com que meu corpo – essa dádiva por meio da qual interajo com a Terra – mantenha-se como um canal limpo, livre de obstáculos que impeçam ou dificultem o fluxo de energia que por ele passa, constituindo não somente ele próprio, mas, em especial, também o mundo que o cerca.
Sim, isso mesmo. Cada vez tenho mais clara a sensação de identidade entre o meu corpo e o meu mundo. Não é necessário acreditar em mim, nem me apresentar argumentos contrários. Apenas faça a experiência de mudar a alimentação – passar a comer comida no lugar de produto químico – e observe o que ocorre com sua vida “exterior”. Um intestino que retém fezes, entupindo nosso corpo e impedindo o fluxo natural de energia que o constitui, muito dificilmente será capaz de perceber um mundo onde tudo flui em torrentes abundantes de graça. Por outro lado, um organismo por onde a vida flui livremente, certamente conhecerá cada vez mais esse aspecto de generosidade que a vida carrega.
Além disso, penso que uma comida inteligente é uma comida – antes de tudo – sustentável. E, obviamente, sustentabilidade aqui nada tem a ver com a palavra de ordem do momento, que tem proporcionado bolsos cheios e vida confortavelmente insustentável para muita gente. Quando me refiro a alimento sustentável, não falo de alimentos simplesmente produzidos sem a utilização de agrotóxicos, mas que são vendidos a preços altamente especulativos, que só servem para a criação de mais um mercado de luxo totalmente conformado à velha dinâmica do capital. Também não falo daquela fruta ou daquela semente da moda que, importadas de terras extremamente distantes e com características totalmente diversas da minha – e que, portanto, não serve para me atualizar em relação ao espaço em que eu vivo –, acabam se tornando extintas em seus locais de origem, prejudicando a vida daqueles que dela realmente precisam. Do que falo, então?
O alimento sustentável, no meu entendimento, é aquele que está perto de mim. Mais uma vez, simples assim (e mais uma vez, continuo falando de alimento e não de químicas bizarras produzidas para terem sabores incríveis e me tornarem dependente de uma indústria perversa e milionária). Assim, diria que, para mim – morador do Rio de Janeiro nesse início de verão –, não há nada mais inteligente, nesse momento, do que comer manga, por exemplo. A sensação que tenho é que o mundo se transformou numa grande mangueira. É o que a Mãe quer me oferecer agora e aquilo que eu, de braços abertos, sorriso no rosto e água na boca recebo com gratidão.
O caso de um esquimó, entretanto, que vive no inóspito ambiente de terras cobertas por gelo, ou mesmo de alguma comunidade ribeirinha brasileira, cercada pela abundância das águas com seus muitos peixes, penso que já seriam situações completamente distintas e que sugerem outras formas de relacionamento com o meio, que levem em consideração as especificidades daquilo que, gratuitamente – isso é importante –, a natureza oferece. Nos contextos apresentados, por exemplo, não me pareceria razoável sugerir ao esquimó uma dieta à base de manga, nem, tampouco, motivado pela antropomorfização da natureza de que tanto gostam, especialmente, os homens urbanos, sugerir àqueles que identificam suas vidas às águas e à pesca uma alimentação onde o peixe não esteja presente.
Assim, se tivesse que escolher uma palavra para designar um modo de alimentação que julgo inteligente – e a inteligência aqui vai, obviamente, muito além da racionalidade –, creio que falaria de uma alimentação relacional. Relacional como a vida. Seria, nesse sentido, uma alimentação que se percebe não como algo dado, pronto, fechado e encerrado nos muitos conceitos e experiências vividos por outros em suas singularidades, mas uma alimentação que – em consonância com a vida – constitui-se como abertura. Uma alimentação que não apenas me proporcione experiências espirituais fantásticas, mas que, acima de tudo, me torne um ser humano melhor no convívio com os outros. Enfim, uma alimentação que me permita, diariamente, manter-me não apenas biologicamente vivo, mas vivo em toda complexidade do meu ser, permitindo-me, a cada momento, realizar minha potência como humano e sustentar a singularidade do meu próprio caminho. 

sábado, 21 de dezembro de 2013

Racionalidade e decadência


A racionalidade é um modo de abertura do mundo que oculta os seus próprios pressupostos. A totalidade da realidade aparece, mas a partir da lógica do ser simplesmente dado, que pressupõe que tanto o homem quanto os demais entes sejam algo em si, ou seja, destituídos de uma relação ontológica conformativa prévia. O próprio mundo oculta-se, tendo em vista que tudo aparece sob o esquema do em si. Porém, se o mundo só se abre através do homem e é mobilizado pelo seu caráter de poder-ser, então a racionalidade sem travas passa a ser um obstáculo para o próprio homem. A razão disto é clara. A racionalidade aparece por causa e para o poder-ser do homem. À medida que o homem relaciona-se com tudo e todos para assegurar-se do seu curso e dominar os eventos, ele conforma-se de acordo com o mundo racional que faz antecipar tudo e todos. Também ele passa a ser categorizável. Devido a essas características do mundo “racional”, o homem passa a ver-se como ser simplesmente dado, o que o leva à pretensão de supressão do seu caráter de poder-ser. Seus comportamentos passam a ser condicionados por estruturas categoriais, o que favorece a experiência de alienação de sua condição. O curso de sua existência pode ser previamente decidido e o homem passa a ser somente um exemplo de um modelo cujas regras antecipadamente já são sabidas. Para Heidegger, esse tipo de existência não é contraditória. Sendo poder-ser, o homem é o único ser que poder ser dissonante de si mesmo. Tal tipo de existência é chamado por Heidegger de existência imprópria. Ela é o modo mais comum de desdobramento existencial, pois nela a existência é facilitada, já que suprime a tarefa existencial primária de ter de conquistar a cada vez o seu ser em resposta à nadidade inerente ao poder-ser. O mundo impessoal é sempre “racional”, visto que o curso de tudo já é previsível e o homem lida taticamente com tudo, especialmente consigo mesmo. Suas possibilidades de ser já estão decididas e o modo de lidar com os entes também. Tudo se torna seguro e a angústia não ganha aí a sua voz. Por isso, “o ser dos entes em sua existência é então compreendido como ser simplesmente dado”.[1] A absorção do homem nesse mundo racionalizado impessoal é a sua decadência[2]. Decadência, antes de ser um conceito moral, é um modo próprio do ser humano. Decadente, o homem não responde ao seu poder-ser de forma singular, mas impessoalmente. Existe segundo a lógica antecipadora da racionalidade de um mundo que a trata como uma mera função de si mesmo. Por mais que use utensílios, o homem não os compreende como tais. Tudo aparece segundo a ideia de em si, e a existência se traduz em comportamentos que funcionalizam a perspectiva de antecipação do curso de tudo e de todos. A previsibilidade passa a retirar a insegurança constitutiva da existência humana.
Com as informações anteriores, sabe-se que o homem não é a priori animal racional. A racionalidade passa a ser um modo de ser que operacionaliza um tipo determinado de existência, qual seja, a existência decadente, que visa regulamentar os comportamentos e obscurecer a singularidade humana e o poder-ser que a determina.

In: Bastos, Aguinaldo de. Ontologia da violência: o enigma da crueldade / Aguinaldo de Bastos, Alexandre Marques Cabral, Jonas Rezende. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.






[1] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/São Francisco, 2006.  §43.
[2] Cf. Ibid., §38

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Valoração moral e decadência em Nietzsche


1 - Introdução

            Apesar de ter rejeitado a existência de uma natureza humana metafísica que conferisse ao homem qualquer sentido de unidade, fazendo-o sentir-se pertencente a uma humanidade, Nietzsche – como que por ironia do acaso – acabou por dedicar bom tempo de seus estudos ao desbravamento de uma questão compartilhada por grande parte dos seres humanos: as origens do bem e do mal.
            Tendo como referência principal a sua Genealogia da Moral, esse breve trabalho tem como objetivo a apresentação de alguns insights nietzscheanos a respeito da origem desses valores, e, especialmente, sua relação com a decadência do homem moderno. Para isso, serão apresentadas não só algumas considerações preliminares sobre a concepção nistzscheana do homem e do mundo, como, por fim, será oferecida, a título de conclusão, uma crítica onde se buscará questionar alguns pontos abraçados pelo filósofo alemão ao longo da construção de seu argumento.

2 – O homem e o mundo como Vontade de Potência

            Se há um conceito em Nietzsche que pode ser considerado central, permeando toda sua obra, certamente é o de Vontade de Potência. Numa espécie de radicalização da tese de Schopenhauer – de que a essência mais íntima do ser é a vontade de viver –, Nietzsche irá entender a vida como força, e uma força que tem em si mesma o seu ponto de aplicação. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que viver, para Nietzsche, é sempre viver mais. Não em um sentido de longevidade, mas estando mesmo acima da maneira como se vive: é a vontade de viver como pura afirmação de si.
            Essa ideia será tão importante na filosofia nietzschena que será encontrada tanto como um conceito cosmogônico, quanto como um conceito histórico ou psicológico. O mundo, a história e o próprio homem são, assim, pensados por Nietzsche como um eterno devir resultante da ação de uma multiplicidade de forças. Em um de seus fragmentos póstumos, ele expõe essa ideia de forma bastante clara:

E sabeis o que é para mim ‘o mundo’? Devo mostrá-lo a vós em meu espelho? Este mundo: uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu todo, uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos, cercada de ‘nada’ como de seu limite, nada de evanescente, de desperdiçado, nada de infinitamente extenso, mas como força determinada posta em um determinado espaço, e não em um espaço que em alguma parte estivesse “vazio”, mas antes como força por toda parte, como jogo de forças e ondas de força ao mesmo tempo um e múltiplo, aqui acumulando-se ali minguando, um mar de forças tempestuando e ondulando em si próprias, eternamente mudando, eternamente recorrentes, com descomunais anos de retorno, com uma vazante e enchente de suas configurações, partindo das mais simples às mais múltiplas, do mais quieto, mais rígido, mais frio ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório consigo mesmo, e depois outra vez voltando da plenitude ao simples, do jogo de contradições de volta ao prazer da consonância, afirmando a si próprio nessa igualdade de suas trilhas e anos, abençoando a si próprio como aquilo que tem de retornar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço –: esse meu mundo dionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio, eternamente-destruir-a-si-próprio, esse mundo secreto da dupla volúpia, esse meu ‘para além de bem e mal’, sem alvo, se na felicidade do círculo não está nenhum alvo, sem vontade, se um anel não tem boa vontade consigo mesmo –, quereis um nome para esse mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para nós, vós, os mais escondidos, os mais fortes, os mais intrépidos, os mais da meia-noite? – Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso! (NIETZSCHE, 1978, p.397) [1].

            Obviamente, essa afirmação encontra-se assentada sobre alguns axiomas. O primeiro, e que grita aos olhos, é a negação da existência de um Deus criador. Além disso, a quantidade total de força existente nesse universo de matéria não-criada não pode ser infinita, mas – antes – deve ser limitada. É somente a partir daí que Nietzsche poderá afirmar a eternidade do mundo e seu fluxo circular constante que não objetiva nenhuma finalidade específica.
            Assim, lançados rapidamente os pressupostos da filosofia nietzschena – mas de forma suficiente para o intuito deste trabalho –, pode-se partir com mais segurança para a análise das origens dos valores morais propriamente dita.

3 – As origens do Bem e do Mal

            Nietzsche inicia sua dissertação primeira da Genealogia da Moral dirigindo uma dura crítica aos psicólogos ingleses. Para ele, estes – como enigmas vivos – teriam algo mais interessante a revelar do que seus próprios livros, que careciam de um espírito histórico.
            O problema da genealogia da moral traçada por esses psicólogos ingleses é apontado por Nietzsche logo em seu início. Quando pretenderam precisar a origem do conceito e do valor “bom” – associando-o a uma ideia de utilidade das ações não egoísticas, que com o tempo teria sido esquecida, fazendo com que o conceito fosse assimilado por costume como “bom em si mesmo” –, eles não consideraram nem mesmo que o próprio sujeito – e, especialmente, o sujeito moderno, com seu pujante livre-arbítrio – é uma criação, uma invenção. E, para Nietzsche, não levar isto em consideração no estudo das origens da moral representaria um enorme equívoco (Cf. GLIKSMAN, 2001, p. 119) [2].
            Segundo Nietzsche, a maneira de agir e não agir do homem, assim como sua felicidade ou infelicidade, tem uma profunda relação com a fisiologia, afetando de forma surpreendente o pensamento (Cf. Ibidem, p.119,120). Assim é que, partindo de uma análise etimológica, ele irá negar toda essa construção de valores que se baseia na utilidade e no esquecimento, e irá apresentar o “bom” não como uma ideia que fundamenta as ações dos homens, mas identificando-o às próprias ações dos homens bons. Para ele,

o juízo ‘bom’ não emana daqueles a quem se prodigalizou a ‘bondade’. Foram os mesmo bons, os homens distintos, os poderosos, os superiores que julgaram ‘boas’ as suas ações; isto é, ‘de primeira ordem’, estabelecendo esta nomenclatura por oposição a tudo quanto era baixo, mesquinho, vulgar e vilão (NIETZSCHE, 2011, p.32) [3].

Assim, o homem não é definido moralmente por sua ação, mas – ao contrário – é sua ação que, ao revelar sua força, se apropria do ato como bom. Mas quem teriam sido esses primeiros homens bons?
            Em toda a filosofia nietzscheana há uma marca muito forte não só desse espírito histórico – historicista até – como, especialmente, de uma dicotomia que separa os homens em duas espécies, ou melhor, em dois tipos: o homem da moral nobre e o homem da moral escrava.
            O homem bom, dotado dessa força criadora e dessa vontade de potência que domina, obviamente, é identificado ao homem da moral nobre. A partir de seus estudos filológicos de análise etimológica do valor do “bom” em diferentes culturas, Nietzsche não só entendeu que o “bom” sempre esteve ligado a nobre, aristocrático, àquele privilegiado, como concluiu que sua criação como valor moral se deu como forma de expansão do poder, aumento do domínio sobre os escravos e, acima de tudo, como forma de demarcar linguisticamente aquilo que está dentro e aquilo que está fora dos interesses (Cf. EIZIRIK & TREVISAN, 2006, p. 366) [4]. Dessa forma, o que aparece por trás dessa ideia de valoração não é uma utilidade que, de antemão, pressupõe uma moderação, nem uma valiosidade, como afirmavam os historiadores da moral, mas – de outro modo – o poder que uma casta mais nobre possui de criar valores que demarquem hierarquias (MOREIRA, 2010, p. 189) [5].

É óbvio que as designações morais de valor, em toda parte, foram aplicadas primeiro a homens, e somente depois, de forma derivada, a ações: por isso é um grande equívoco, quando historiadores da moral partem de questões como "por que foi louvada a ação compassiva?". O homem de espécie nobre se sente como aquele que determina valores, ele não tem necessidade de ser abonado, ele julga: "o que me é prejudicial é prejudicial em si", sabe-se como o único que empresta honra às coisas, que cria valores. Tudo o que conhece de si, ele honra: uma semelhante moral é glorificação de si (NIETZSCHE, 2001, p. 172-3) [6].

            Assim, se o homem da moral nobre tem esse poder de criar valores e demarcar hierarquias de forma positiva, o mesmo não acontece com o homem da moral escrava. Enquanto o primeiro – com seu estado de alma elevado que o distingue e determina hierarquias – age de forma afirmativa, simplesmente desprezando e afastando de si os seres que exprimem o contrário desse estado de orgulho, considerando-os apenas como ruins, o segundo – por sua vez – age somente de forma reativa e a partir de uma negação.
            É extremamente importante ressaltar aqui que essa reatividade da moral escrava tem como fundamento o ressentimento. O homem da moral escrava é, para Nietzsche, antes de tudo, um ressentido.

Relacionado a um problema fisiológico, o ressentimento serve para evidenciar aquele homem sem forças para reagir diante dos imprevistos e das dificuldades da vida e que, também, não consegue digerir os maus sentimentos, aqueles sentimentos nocivos, venenosos, produzidos por sua incapacidade de realizar “a verdadeira reação, a dos atos (NIETZSCHE, 2006, p. 29 apud MOREIRA, Op. Cit., p. 188).

            Assim, não podendo viver de forma espontânea e ativa, esse indivíduo ressentido passaria a viver em função de “um fora”, de “um outro”, de “um não-eu”, transformando esse Não em seu ato criador (Cf. MOREIRA, Op. Cit., p 188).
É de fundamental importância perceber que a distinção que se faz aqui não é mais entre bom e ruim, como no caso da moral nobre, mas entre bom e mau. O homem da moral escrava para se perceber como bom depende – antes – da afirmação do outro como mau. É a clássica lógica do tu és mau, logo eu sou bom.
Como consequência desse ressentimento e dessa sensação de impotência diante da realidade, surge no homem da moral escrava o desejo de vingança em relação àqueles que o desprezaram. E é exatamente dentro desse contexto de ideias que Nietzsche irá relacionar o advento do cristianismo à decadência do homem moderno.
Em seu entendimento, teria sido o cristianismo o principal responsável pela transmutação conceitual dos valores bom e ruim, provenientes da moral nobre, nos conceitos bom e mau, característicos da moral escrava. Sustentar essa posição, entretanto, não foi fácil. Nietzsche teve que, para isso, não só recorrer às raízes judaicas do cristianismo, como, principalmente, postular o povo judeu como “o povo sacerdotal do ressentimento par excellence” (NIETZSCHE, 2006, p.44, apud MOREIRA, Op. Cit., p.189). Segundo ele:

Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos de espírito — comparado ao espírito de vingança sacerdotal, todo espírito restante empalidece. A história humana seria uma tolice, sem o espírito que os impotentes lhes trouxeram — tomemos logo o exemplo maior. Nada do que na terra se fez contra “os nobres”, “os poderosos”, “os senhores”, “os donos do poder”, é remotamente comparado ao que os judeus contra eles fizeram; os judeus, aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas através de uma radical tresvaloração dos valores deles, ou seja, por um ato da mais espiritual vingança. Assim convinha a um povo sacerdotal, o povo da mais entranhada sede de vingança sacerdotal. Foram os judeus que com apavorante coerência ousaram inverter a equação de valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais profundo, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão, a saber, “os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem aventurança — mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados!... (NIETZSCHE, 1998, p.25-6) [7].

Assim, a partir dessa transmutação dos conceitos, a aristocracia sacerdotal teria criado valores em forma de cura para as supostas doenças da humanidade. E, dentre esses remédios, certamente, o principal teria sido a própria ideia de Deus e de verdade suprema. Com isso, associando a ideia de verdade à de juízo de valor, a aristocracia sacerdotal teria triunfado, codificando e simplificando o mundo em detrimento da multiplicidade, da variedade e do movimento.
O grande problema, para Nietzsche, é que esse tipo metafísico de conhecimento teria como único objetivo criar uma identidade e uma unidade que a vida não tem. Em seu entendimento, o conceito de verdade parte de uma avaliação da vida que nega o fluxo, o movimento, a guerra de forças. Portanto, a verdade não poderia ser usada como critério de avaliação da vida. Só a própria vida possuiria esse critério (Cf. MOREIRA, Op. Cit., p.190).
O que Nietzsche está – ousadamente – afirmando é que aquilo que ele denomina decadência do homem moderno teve início com os judeus e sua rebelião escrava na moral, e triunfou com o amor cristão – este não como uma negação do ódio judeu, mas como coroamento dele.

E o que se vê com essa cultura do ressentimento é a vontade de dominar o animal de rapina que existe no homem, dominá-lo e depois de vencidos e dominados os ideais do homem nobre, conservar suas ficções como os verdadeiros objetos da cultura promovendo um autêntico retrocesso para a humanidade. E é a isso que hoje devemos temer, ao “homem manso”, que forjado por essa cultura possa se sentir como apogeu e meta. Para Nietzsche, não se pode ter mais amor e respeito ao homem enquanto este se mantiver preso a esta cultura (Ibidem, p. 191).

4 - Conclusão

O que fica claro ao longo de todo esse empreendimento de busca das origens dos valores morais é que Nietzsche – à semelhança dos psicólogos ingleses à quem dirige suas críticas – também acaba se mostrando um grande enigma vivo com muito mais revelações a oferecer do que seus próprios livros.
Filho de pastor luterano, o filósofo alemão deixa transparecer ao longo de sua filosofia todos os conflitos inerentes a uma vida que se desenvolve no interior de um ambiente religioso formal e altamente opressor. Não por acaso, nem por alguma evidência histórica, seu pressuposto fundamental é a negação da existência de Deus e a consequente eternidade do mundo.
Assim, partindo desse ponto de vista, não é de se admirar que toda uma filosofia que se sustenta sobre a separação dos homens em tipos, naturalizando a dominação dos mais fortes sobre os mais fracos, tenha partido – ela mesma – de uma negação, ironicamente a marca principal do homem ressentido.
Como afirma Mário Ferreira dos Santos em seu prefácio à Genealogia da Moral – obra da qual também é tradutor, se as acusações que os adversários de Nietzsche lhe fazem não procedem e, muitas vezes, devem, com razão, serem consideradas injustas,  não procediam também as acusações disparadas por Nietzsche àqueles a quem tanto atacou. Não todas, pelo menos.

Se não é Nietzsche o ‘louco degenerado’, porque havia grande religiosidade em sua alma, como o demonstrou em ‘Zaratustra’ e tivemos naquela obra a oportunidade de provar, se ele não ‘podia crer’, na verdade, o de que descria era a caricatura que ele formava, seguindo, neste ponto, as influências de tantos inimigos do cristianismo. E, aqui, foi ele bem frágil e ‘bem rebanho’, pois deixou-se acaudilhar por todos os grandes acusadores que inflamaram, através dos tempos, uma religião que, se deu homens que não estavam à sua altura, não deixa, contudo, de representar o que de mais alto o homem conheceu (NIETZSCHE, 2011, p.15)

Dessa forma, ao dedicar boa parte de seus escritos ao ataque do cristianismo, pode-se concluir que, baseado em seu próprio argumento, restou como saída ao filósofo alemão apenas duas possibilidades: reconhecer a incoerência e o reducionismo de uma filosofia asfixiada pela história; ou, de outro modo, confessar a si mesmo como um representante – empenhado – da moral escrava.

5 - Referências Bibliográficas:

- EIZIRIK, M. F. & TREVISAN, J. F.. Da Genealogia da Moral à Moral do Ressentimento: A Crueldade nos Bons Costumes. In: Psicologia, ciência e profissão, vol. 26, Nº 3. Brasília, Setembro de 2006. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/pcp/v26n3/v26n3a03.pdf > Acesso em: 10 outubro 2012.
- MOREIRA, Antônio Rogério da Silva. Nietzsche: o Ressentimento e a Transmutação Escrava da Moral. In: Argumentus Revista de Filosofia, Ano 2, N°. 3 – 2010. Disponível em: <http://www.filosofia.ufc.br/argumentos/pdfs/edicao_3/25.pdf  > Acesso em: 10 outubro 2012.
- NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. [Tradução: Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
- ____________________. Genealogia da Moral. [Tradução: Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
- ____________________. Genealogia da Moral. [Tradução: Mário Ferreira dos Santos]. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
- ____________________. Obras incompletas. [Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho]. São Paulo: Ed. Abril, 1978.




[1] NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. [Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho]. São Paulo: Ed. Abril, 1978.
[2] GLIKSMAN, Selmo. A ética do sobre-humano. 2005. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2001.
[3] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. [Tradução: Mário Ferreira dos Santos]. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
[4] EIZIRIK, M. F. & TREVISAN, J. F.. Da Genealogia da Moral à Moral do Ressentimento: A Crueldade nos Bons Costumes. In: Psicologia, ciência e profissão, vol. 26, Nº 3. Brasília, Setembro de 2006. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/pcp/v26n3/v26n3a03.pdf > Acesso em: 10 outubro 2012.
[5] MOREIRA, Antônio Rogério da Silva. Nietzsche: o Ressentimento e a Transmutação Escrava da Moral. In: Argumentus Revista de Filosofia, Ano 2, N°. 3 – 2010. Disponível em: <http://www.filosofia.ufc.br/argumentos/pdfs/edicao_3/25.pdf  > Acesso em: 10 outubro 2012.
[6] - NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. [Tradução: Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

[7] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. [Tradução: Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras,1998.