A boca fala do que o coração tá cheio

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Escola, filosofia e...fraude!


A atual legislação vigente que institui o ensino obrigatório de filosofia para o ensino médio nas escolas brasileiras prevê, em uma das três linhas de competência a serem trabalhadas com os alunos, o desenvolvimento da habilidade de ler textos filosóficos de maneira significativa. Qualquer brasileiro de oito anos de idade entenderia, de primeira, o que isso quer dizer. Mas, como já não somos mais tão perspicazes, precisaremos de três páginas para discorrer sobre o assunto.
            Começarei – em um gesto de economia emocional – recusando-me a comentar o absurdo ao quadrado fato da própria obrigatoriedade do ensino de filosofia. Ao quadrado porque, se a imposição curricular de qualquer outra matéria já é um absurdo, ela torna-se exponencial quando a nova obrigação chama-se filosofia. É não só mais um ato de estupro pedagógico deliberado, mas, também, um ataque à própria filosofia e sua natureza peculiar.
            Passemos, então, ao que interessa.
            Se a presente regulação normativa tratasse, ao invés de educação, de qualquer outro tema, como saúde pública, processos administrativos ou questões penais, o significado, certamente, não seria muito distinto. O velho ditado aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei, em suas poucas palavras, nos fala muito mais de Brasil do que qualquer outro manual jurídico poderia intentar. Se há um princípio legal orientador pétreo que impera por aqui, é este.
            Ele, evidentemente, não nos conta nenhuma novidade, mas tem o seu valor no sentido de transformar em linguagem aquilo que, cotidianamente, experimentamos na terrinha: a lei não é nada. Nada além de um instrumento dos pseudo-poderosos na conquista e manutenção de seus pseudo-poderes, claro.
            Sinceramente, não acredito que nenhum brasileiro que respire e saiba usar o papel higiênico creia – de coração – na honestidade, na justiça e na bondade da lei. Por isso, talvez, discussões sobre legislação gerem sempre em mim uma clara sensação de que estão querendo me enganar. De fato, não há maneira melhor de se enganar do que acreditar em leis.
            Só por isso, quando olho para o texto que define como habilidade a ser desenvolvida nos alunos do ensino médio a leitura de textos filosóficos de maneira significativa, invariavelmente, sou transportado mentalmente para algum escritório do Ministério da Educação, onde posso ver um tecnocrata bem sucedido recebendo ordem de outro tecnocrata bem sucedido – superior – dizendo-lhe que tem um prazo de x dias para apresentar pronta uma resolução que justifique a contratação de novos profissionais e a comercialização de mais livros didáticos.
            Acostumado a receber tarefas desse tipo – escrever textos não significativos – chego a quase me solidarizar com a figura do nosso burocrático personagem. Entretanto, não há tempo a perder. O abacaxi está sobre a mesa e precisa ser descascado. A imaginação terá que entrar em ação e todo cuidado será pouco para que, porventura, o texto não se desvie de sua total indeterminação e encontre, perdido pelo caminho, algum significado intrujão. Não é fácil. Eu sei.
            Assim, sai a primeira pérola: ler textos filosóficos de maneira significativa. O que isso objetivamente quer dizer? Obviamente – como está escrito –, nada! Que o leitor se aproprie e faça bom proveito (para não usar o jargão do capitão Fábio na passagem de comando da oficina do batalhão no primeiro dos Tropa de Elite). Certamente, não faltarei quem se ocupe desse tipo de “reflexão”.
            Portanto, libertemos agora nosso personagem – a essa altura já exausto do trabalho entediante – e passemos a inventar nosso próprio significado. Afinal, o abacaxi agora não é mais dele.
            Quando penso na leitura de textos filosóficos, a questão do significado já está implícita. Particularmente, só gosto de ler textos – seja em filosofia ou qualquer outra área – que dialoguem comigo de alguma forma. Ah, mas o autor tal é muito inteligente e tem ideias ótimas, que geram reflexões e debates incríveis. Parabéns! Reúnam-se todos os que se sentem afetados por ele e sejam felizes. Todas as vezes que tentei ser erudito, terminei na praia. Em nenhuma delas me arrependi.
            Dessa forma, creio que, dificilmente, escolheria compartilhar um texto que – antes – não tivesse falado comigo. Nesse sentido, não me preocuparia se pertence a autor clássico, se é filosófico (esse período na academia me ensinou que não existe texto filosófico em si, mas que a filosofia é, sim, uma atitude diante da vida, em geral, ou, em particular, diante de um texto, seja ele de Aristóteles ou do Chico Bento) ou se – pior – atende às exigências de algum currículo. Preocupar-me-ia apenas em fazer a escolha procurando levar em consideração o contexto e o interesse do público alvo, muito menos como uma atitude metodológica do que como um cuidado de não levar enfado ao próximo.
            Apesar da gratíssima surpresa que tive com o início do estágio – e espero que essa primeira impressão permaneça – uma situação simples, e que talvez passasse até despercebida, chamou minha atenção e, talvez, sirva para exemplificar esse tipo de cuidado muitas vezes impossibilitado pela imposição curricular e pelo tratamento de gado dado aos alunos nessa perspectiva do ensino em massa. Uma menina, que à primeira vista aparentava ser o que, comumente, os alunos chamam de nerd, dirigiu-se ao professor e perguntou se ele não ia dar Nietzsche. Diante da negativa e do consolo não consolador do “só no ano que vem”, a menina com um semblante triste – obviamente não a tristeza da perda de um parente – retrucou: Poxa, professor, mas eu queria tanto aprender Nietzsche. Ao que pensei: Sofreu! Vai ter que se conformar com Tomás de Aquino.
            Assim, se é realmente bastante difícil delimitar o que é a leitura de um texto filosófico de maneira significativa, muito mais fácil é definir o que é a leitura de um texto filosófico de maneira não significativa: aquela que se faz por obrigação, tendo em vista a obtenção de um número que meça quantitativamente o aprendizado de algo sobre o qual não se interessa.
            Os resultados que se pode esperar de um processo fraudulento como esse não podem ser, também, diferentes de uma fraude. Uma fraude coletiva que tem seu ápice na figura do certificado, instituição que se apropria e monopoliza culturalmente o processo de aprendizagem, gerando uma multidão de excluídos, que cultivarão até o fim o sonho da inclusão e – infelizmente –, fechando o ciclo, a crença nesse tipo de processo gerador de dependência.
            Por outro lado, o que se pode esperar do resultado da leitura de textos filosóficos de maneira significativa tem a mesma medida daquilo que se pode esperar de qualquer coisa significativa que se faça na vida: o imensurável. Essa, aliás, é a grande graça da vida, que nos é extorquida em anos e anos de “formação” nas instituições formais de ensino: a singular infinitude de possibilidades de interação com o mundo. E isso, não se pode medir. A própria vida, entretanto, não se furtará de revelar os resultados.
            Desse modo, se tivesse que compartilhar um texto filosófico com alunos do nível médio, certamente escolheria algo que não só falasse profundamente comigo, mas que julgasse pudesse encontrar morada em outros corações. Nesse sentido, creio que – apesar de sua densidade – o fragmento de Kierkegaard, presente em O Conceito de Angústia, poderia ser uma boa tentativa de conversa filosófica em um tempo em que a própria filosofia se divorciou da liberdade e aprendeu a ter medo da verdade.

“O conteúdo da liberdade, numa perspectiva intelectual, é verdade, e a verdade torna o ser humano livre. Mas justamente por isso a verdade é a obra da liberdade, de modo que esta constantemente engendra a verdade. É óbvio que aqui não estou pensando no achado espirituoso da filosofia mais recente, que sabe que a necessidade do pensamento também é sua liberdade, e que, por isso, quando fala em liberdade do pensamento, fala apenas do movimento imanente do pensamento eterno. Tal tirada espirituosa serve apenas para confundir e dificultar a comunicação entre os homens. O que eu comento, por outro lado, é algo de bem simples e singelo: que a verdade só existe para o indivíduo à medida em que ele próprio a produz na ação. Se a verdade está de algum outro modo para o indivíduo, e é impedido por ele de estar deste modo para ele, temos aí um fenômeno do demoníaco. A verdade sempre teve muitos que a proclamaram em altos brados, mas a questão é saber se um homem quer, no sentido mais profundo, conhecer a verdade, quer deixá-la permear todo o seu ser, assumir todas as suas consequências, e não ter um esconderijo para si, em caso de necessidade, e um ‘beijo de judas’ para as consequências.” (KIERKEGAARD, 2010, p.146)

Referência Bibliográfica:

- KIERKEGAARD, Soren. O Conceito de Angústia. Tradução: Álvaro Valls –  Petrópolis, RJ: Vozes; São Paulo, SP: Editora Universitária São Francisco, 2010. – (Coleção pensamento humano).


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