A
atual legislação vigente que institui o ensino obrigatório de filosofia para o
ensino médio nas escolas brasileiras prevê, em uma das três linhas de
competência a serem trabalhadas com os alunos, o desenvolvimento da habilidade
de ler textos filosóficos de maneira
significativa. Qualquer brasileiro de oito anos de idade entenderia, de
primeira, o que isso quer dizer. Mas, como já não somos mais tão perspicazes,
precisaremos de três páginas para discorrer sobre o assunto.
Começarei – em um gesto de economia
emocional – recusando-me a comentar o absurdo ao quadrado fato da própria
obrigatoriedade do ensino de filosofia. Ao quadrado porque, se a imposição
curricular de qualquer outra matéria já é um absurdo, ela torna-se exponencial
quando a nova obrigação chama-se filosofia. É não só mais um ato de estupro
pedagógico deliberado, mas, também, um ataque à própria filosofia e sua
natureza peculiar.
Passemos, então, ao que interessa.
Se a presente regulação normativa
tratasse, ao invés de educação, de qualquer outro tema, como saúde pública,
processos administrativos ou questões penais, o significado, certamente, não
seria muito distinto. O velho ditado aos
amigos, tudo; aos inimigos, a lei,
em suas poucas palavras, nos fala muito mais de Brasil do que qualquer outro
manual jurídico poderia intentar. Se há um princípio legal orientador pétreo
que impera por aqui, é este.
Ele, evidentemente, não nos conta
nenhuma novidade, mas tem o seu valor no sentido de transformar em linguagem
aquilo que, cotidianamente, experimentamos na terrinha: a lei não é nada. Nada
além de um instrumento dos pseudo-poderosos na conquista e manutenção de seus
pseudo-poderes, claro.
Sinceramente, não acredito que
nenhum brasileiro que respire e saiba usar o papel higiênico creia – de coração
– na honestidade, na justiça e na bondade da lei. Por isso, talvez, discussões
sobre legislação gerem sempre em mim uma clara sensação de que estão querendo
me enganar. De fato, não há maneira melhor de se enganar do que acreditar em
leis.
Só por isso, quando olho para o texto
que define como habilidade a ser desenvolvida nos alunos do ensino médio a
leitura de textos filosóficos de maneira significativa, invariavelmente, sou
transportado mentalmente para algum escritório do Ministério da Educação, onde
posso ver um tecnocrata bem sucedido recebendo ordem de outro tecnocrata bem
sucedido – superior – dizendo-lhe que tem um prazo de x dias para apresentar pronta uma resolução que justifique a
contratação de novos profissionais e a comercialização de mais livros
didáticos.
Acostumado a receber tarefas desse
tipo – escrever textos não significativos – chego a quase me solidarizar com a
figura do nosso burocrático personagem. Entretanto, não há tempo a perder. O
abacaxi está sobre a mesa e precisa ser descascado. A imaginação terá que
entrar em ação e todo cuidado será pouco para que, porventura, o texto não se
desvie de sua total indeterminação e encontre, perdido pelo caminho, algum
significado intrujão. Não é fácil. Eu sei.
Assim, sai a primeira pérola: ler textos filosóficos de maneira
significativa. O que isso objetivamente quer dizer? Obviamente – como está
escrito –, nada! Que o leitor se aproprie e faça bom proveito (para não usar o
jargão do capitão Fábio na passagem de comando da oficina do batalhão no
primeiro dos Tropa de Elite).
Certamente, não faltarei quem se ocupe desse tipo de “reflexão”.
Portanto, libertemos agora nosso
personagem – a essa altura já exausto do trabalho entediante – e passemos a
inventar nosso próprio significado. Afinal, o abacaxi agora não é mais dele.
Quando penso na leitura de textos
filosóficos, a questão do significado já está implícita. Particularmente, só
gosto de ler textos – seja em filosofia ou qualquer outra área – que dialoguem
comigo de alguma forma. Ah, mas o autor tal é muito inteligente e tem ideias
ótimas, que geram reflexões e debates incríveis. Parabéns! Reúnam-se todos os
que se sentem afetados por ele e sejam felizes. Todas as vezes que tentei ser
erudito, terminei na praia. Em nenhuma delas me arrependi.
Dessa forma, creio que,
dificilmente, escolheria compartilhar um texto que – antes – não tivesse falado
comigo. Nesse sentido, não me preocuparia se pertence a autor clássico, se é
filosófico (esse período na academia me ensinou que não existe texto filosófico
em si, mas que a filosofia é, sim, uma atitude diante da vida, em geral, ou, em
particular, diante de um texto, seja ele de Aristóteles ou do Chico Bento) ou
se – pior – atende às exigências de algum currículo. Preocupar-me-ia apenas em
fazer a escolha procurando levar em consideração o contexto e o interesse do
público alvo, muito menos como uma atitude metodológica do que como um cuidado
de não levar enfado ao próximo.
Apesar da gratíssima surpresa que
tive com o início do estágio – e espero que essa primeira impressão permaneça –
uma situação simples, e que talvez passasse até despercebida, chamou minha
atenção e, talvez, sirva para exemplificar esse tipo de cuidado muitas vezes
impossibilitado pela imposição curricular e pelo tratamento de gado dado aos
alunos nessa perspectiva do ensino em massa. Uma menina, que à primeira vista
aparentava ser o que, comumente, os alunos chamam de nerd, dirigiu-se ao professor e perguntou se ele não ia dar
Nietzsche. Diante da negativa e do consolo não consolador do “só no ano que
vem”, a menina com um semblante triste – obviamente não a tristeza da perda de
um parente – retrucou: Poxa, professor, mas eu queria tanto aprender Nietzsche.
Ao que pensei: Sofreu! Vai ter que se conformar com Tomás de Aquino.
Assim, se é realmente bastante
difícil delimitar o que é a leitura de um texto filosófico de maneira
significativa, muito mais fácil é definir o que é a leitura de um texto
filosófico de maneira não significativa: aquela que se faz por obrigação, tendo
em vista a obtenção de um número que meça quantitativamente o aprendizado de
algo sobre o qual não se interessa.
Os resultados que se pode esperar de
um processo fraudulento como esse não podem ser, também, diferentes de uma
fraude. Uma fraude coletiva que tem seu ápice na figura do certificado,
instituição que se apropria e monopoliza culturalmente o processo de
aprendizagem, gerando uma multidão de excluídos, que cultivarão até o fim o
sonho da inclusão e – infelizmente –, fechando o ciclo, a crença nesse tipo de
processo gerador de dependência.
Por outro lado, o que se pode
esperar do resultado da leitura de textos filosóficos de maneira significativa
tem a mesma medida daquilo que se pode esperar de qualquer coisa significativa
que se faça na vida: o imensurável. Essa, aliás, é a grande graça da vida, que
nos é extorquida em anos e anos de “formação” nas instituições formais de
ensino: a singular infinitude de possibilidades de interação com o mundo. E
isso, não se pode medir. A própria vida, entretanto, não se furtará de revelar
os resultados.
Desse modo, se tivesse que
compartilhar um texto filosófico com alunos do nível médio, certamente escolheria
algo que não só falasse profundamente comigo, mas que julgasse pudesse
encontrar morada em outros corações. Nesse sentido, creio que – apesar de sua
densidade – o fragmento de Kierkegaard, presente em O Conceito de Angústia,
poderia ser uma boa tentativa de conversa filosófica em um tempo em que a
própria filosofia se divorciou da liberdade e aprendeu a ter medo da verdade.
“O
conteúdo da liberdade, numa perspectiva intelectual, é verdade, e a verdade
torna o ser humano livre. Mas justamente por isso a verdade é a obra da
liberdade, de modo que esta constantemente engendra a verdade. É óbvio que aqui
não estou pensando no achado espirituoso da filosofia mais recente, que sabe
que a necessidade do pensamento também é sua liberdade, e que, por isso, quando
fala em liberdade do pensamento, fala apenas do movimento imanente do
pensamento eterno. Tal tirada espirituosa serve apenas para confundir e
dificultar a comunicação entre os homens. O que eu comento, por outro lado, é
algo de bem simples e singelo: que a verdade só existe para o indivíduo à
medida em que ele próprio a produz na ação. Se a verdade está de algum outro
modo para o indivíduo, e é impedido por ele de estar deste modo para ele, temos
aí um fenômeno do demoníaco. A verdade sempre teve muitos que a proclamaram em
altos brados, mas a questão é saber se um homem quer, no sentido mais profundo,
conhecer a verdade, quer deixá-la permear todo o seu ser, assumir todas as suas
consequências, e não ter um esconderijo para si, em caso de necessidade, e um
‘beijo de judas’ para as consequências.” (KIERKEGAARD, 2010, p.146)
Referência Bibliográfica:
- KIERKEGAARD,
Soren. O Conceito de Angústia.
Tradução: Álvaro Valls – Petrópolis, RJ:
Vozes; São Paulo, SP: Editora Universitária São Francisco, 2010. – (Coleção
pensamento humano).
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