Introdução:
Que o modelo de
educação tradicional[1] adotado
pela maioria esmagadora das escolas brasileiras é um fracasso não restam
dúvidas – a não ser, é óbvio, para quem dele tira o seu sustento. Sala de aula,
aula, avaliações, separação por faixa etária e por séries, estruturas
institucionais altamente burocráticas e compartimentadas, professores,
funcionários, etc. Enfim, uma série de componentes que passaram a ser
identificados com o próprio processo de aprendizagem, chegando mesmo a (quase)
inviabilizar qualquer pensamento que parta de pressupostos distintos daqueles
sobre os quais estão assentadas todas essas instituições educacionais.
Meu esforço nessa brevíssima
reflexão será, justamente, o de tentar desmitificar a situação-problema
institucionalizada que – a meu ver – é o símbolo maior desse modelo educacional
falido: a aula. Para isso, além de analisar a própria estrutura desse evento
religioso sem o qual – acredita-se – não se pode aprender, recorrerei à antiga
questão do discurso sofístico, com especial foco no diálogo Górgias, de Platão, procurando
demonstrar que o espírito sofista não só está vivo, como encontrou seu habitat ideal: a sala de aula.
Sofística e retórica:
Os
sofistas, a partir da reflexão sobre a linguagem como potência eficaz, tiveram
uma importância fundamental no desenvolvimento da retórica. Com eles, a
filosofia, pela primeira vez, apresentou uma abordagem cuja ênfase se
encontrava sobre o discurso. Não é à toa que até hoje são considerados os
grandes precursores da virada linguística do século XIX e da atual filosofia da
linguagem.
Observando
o Górgias, de Platão, é possível perceber que a retórica sofística
encontra-se assentada sobre os pressupostos de uma epistemologia cética e de
uma ontologia niilista. Górgias não cria na possibilidade de acesso do sujeito
à realidade e, assim como os outros sofistas, entendia que a única condição
necessária para o conhecimento seria o domínio dos recursos da linguagem. Dessa
forma, seria somente o logos – o
discurso – o critério capaz de instituir a objetividade e a universalidade.
É
importante observar que o discurso sofístico não é concebido como representação
do real, mas meramente como desempenho, devendo ser persuasivo, eficiente e
sugestivo. No contexto cultural grego – orientado pela vida na polis e seus processos democráticos de
tomada de decisão – esse aspecto ganha importância ainda maior, visto que as
praças públicas frequentemente tornavam-se palcos de disputas de poder, que
resultavam em decisões que influenciavam diretamente os rumos dos pensamentos
que norteavam a polis ateniense. Além
disso, sendo o valor da retórica legitimado como meio de ascensão pessoal e
política, abria-se caminho para um programa educativo concentrado em seduzir os
pensamentos e conquistar as vontades através dos artifícios da eloquência.
É
exatamente contra esse tipo de pensamento e, principalmente, de espírito
manipulador e descomprometido com a verdade que Platão se oporá veementemente. Para
Platão, a recusa da objetividade torna-se um grande problema à medida que o
discurso persuasivo passa a ser usado como controle não só das coisas – fazendo
delas efeitos do discurso –, como das pessoas – incutindo-lhes a convicção do
enunciado. Assim, a aceitação desses pressupostos ontológicos e epistemológicos
acabaria por conduzir o filósofo tanto ao irracionalismo, quanto ao imoralismo.
A Paidéia:
Segundo
o filólogo alemão Werner Jaeger, a sofística, desde o seu início, nunca foi um
movimento educacional comprometido com a formação do povo, mas – antes – dos
chefes do povo: os futuros estadistas da polis.
Em sua obra clássica Paidéia, Jaeger
explica que o cidadão grego não contava, inicialmente, com um sistema
consciente de educação que lhe permitisse realizar seus mais altos ideais.
Enquanto o homem nobre – baseado na concepção aristocrática de areté – tinha acesso a uma educação que
lhe proporcionava o desenvolvimento do espírito, o homem da nova sociedade
civil e urbana acabava por receber como ensinamento um ofício que ia sendo
transmitido de geração em geração (Cf.
JAEGER, 1995, P. 336).
Assim,
é justamente nesse contexto de demanda educacional mais amplo surgido na polis que os sofistas se estabelecem
como fornecedores de um modelo de educação construído não só a partir de um
ideal consciente, mas, também, executado conscientemente a partir desse ideal (Cf. Ibidem,
p. 356). Não à toa, sendo os grandes responsáveis por essa coerência entre o
ideal educativo e seu processo de aplicação prática, são eles considerados os
grande fundadores da paidéia, a
ciência da educação (Cf. Ibidem, p.348).
Jaeger
afirma ainda que o sucesso do ensino sofístico se deve também ao fato desse
ensino não ter um caráter teórico ou científico, mas – antes – concentrar- se
sobre as questões práticas da polis, como
as de ordem moral ou política, por exemplo. O ideal educativo – não tendo um
fundamento ontológico que lhe desse sustentação – ficava, portanto, sempre subordinado às
condições presentes, tendo como objetivo a preparação do cidadão para a vida no
Estado, moldando-o para poder agir com base não nos ideias de justiça e verdade
– como queria Platão –, mas de acordo com as circunstâncias existentes.
Aula: a sofística
contemporânea
Traçado
esse quadro geral – e cumpridas as exigências impostas pela restrita proposta
de avaliação –, chegamos ao ponto que, de fato, nos interessa: a aula como
instituição educativa. Obviamente, não é preciso ter conhecimento de filosofia
grega ou jupiteriana para constatar – seja à primeira vista ou em um profundo
exame clínico – que o modelo atual de escola passa longe de realizar o objetivo
a que, teoricamente, se propõe: o de ensinar. Entretanto, como a simplicidade
tem esse aspecto obscuro – e mesmo fugidio – diante de públicos sofisticados, é
necessário utilizar-me dessas bugigangas conceituais eruditas a fim de, quem
sabe, conseguir encontrar um ouvido.
Já
que o assunto agora é aula, gostaria de compartilhar uma situação vivida
durante um desses encontros pseudo-educativos.
O
nome da matéria era didática. A aula, sinceramente, não lembro do que se
tratava. Faz parte. O tempo previsto para o encontro já havia terminado quando
o mestre, num último suspiro, já cansado (imagino que dar aulas deve cansar
bastante), faz uma última pergunta: e para vocês? O que vocês acham que é um
sofista?
Se
não fosse a resposta de um colega, talvez a pergunta tivesse passado despercebida
como todo o resto. Mas, não. A resposta veio e reverbera na minha cabeça até
hoje. O sofista é um sábio que precisa sobreviver, disse meu camarada sorrindo
diante de um professor também sorridente. Também tentei rir para não ficar de
fora do momento celebrativo, mas, confesso, não consegui. Abri a porta e saí –
triste – com aquilo na cabeça.
Naquele
momento, não só entendi com a mente, mas vi com todo o meu ser o que é o
professor[2] e
a natureza da aula. Meu colega estava quase certo. De fato, o sofista – ou em
termos contemporâneos, o professor, a quem analogicamente ele se referiu –
precisa sobreviver. Só discordo que seja um sábio. Se um chimpanzé vive,
aparentemente, feliz na natureza, sem preocupações ou ansiedades financeiras,
desconfio que um sábio também não tenha problemas dessa espécie. Foi, então,
que pude formular meu próprio conceito.
O
professor não é um sábio que precisa sobreviver e, por isso, comercializa,
direta ou institucionalmente, seu conhecimento. O professor é, na verdade, um
cego, que, não tendo a mínima ideia de como sobreviver, vende seu conhecimento a
outros cegos que também não sabem sobreviver, na perspectiva de que este conhecimento
os faça alcançar o grande ato de libertação humana: o pagamento das contas.
Nesse
sentido, a aula seria um grande encontro de cegos desesperados por
sobrevivência, sustentado pela ilusão de que a transmissão de informação
qualifica o homem a interagir com o mundo e com a sociedade. Basta tentar lembrar de qualquer conteúdo que tenhamos aprendido na escola para ver se tenho ou não
razão. De todo o (muito) tempo que passamos na escola, o que temos realmente
marcado em nós como aprendizado não foi aprendido em aula, mas apesar da aula.
O que fica são as experiências da vida, as relações com as coisas com as quais
interagimos e com as pessoas. O que fica, em outras palavras, é a verdade.
E
é óbvio que seja assim. Jamais aprenderei qualquer coisa que não tenha
interesse. Atualmente, por exemplo, tenho me interessado bastante por plantas,
botânica, fisiologia vegetal e coisas do gênero. Dói-me, entretanto, saber que,
embora já tenha estudado tudo isso, tanto no ensino fundamental, quanto no
médio, não sei praticamente nada sobre o assunto. E isso é o que ocorre sempre
que se é obrigado a “aprender” o que não se quer.
Conclusão:
Só
por isso a discussão sobre o ensino obrigatório de filosofia já nasce
equivocada. O velho ditado diga-me com
quem andas e te direi quem és, poderia, no nosso contexto, ser facilmente substituído
por faça-me uma pergunta e te direi quem
és. De fato, as perguntas que fazemos são bastante reveladoras de quem
somos e de como nos relacionamos com o mundo. A essa altura do campeonato, a
pergunta não deveria ser sobre como obrigar as pessoas a aprender filosofia,
mas, se se deve ou não continuar obrigando as pessoas a aprender física,
biologia e matemática, como se todos tivessem os mesmos interesses e aptidões.
Por
isso também que uma filosofia que se propõe a tratar só das circunstâncias
presentes – ainda que relacionadas a eventos de dois mil e quinhentos anos
atrás –, procurando-se acomodar às demandas – não mais da vida na polis, como na Grécia dos sofistas, mas,
agora, da vida no mercado, em nossa atual sociedade –, sem se preocupar com a
verdade, não merece nem mesmo o nome de Filosofia. Mas, se ainda assim ela
quiser reivindicar o nome de Filosofia, que se chame Filosofia de Barganha! Certamente renderá muitas aulas e alimentará
muitas famílias.
Bibliografia:
- Dicionário Aurélio online. Disponível em <http://www.dicionariodoaurelio.com/Tradicao.html>.
Acesso em 21 Maio 2013
- JAEGER,
Werner: Paideia – a formação do homem
grego. Martins Fontes, São Paulo, 1995.
- PLATÃO: Górgias. Tradução: Carlos Alberto Nunes (modificada), versão
eletrônica por Acrópolis (http://br.egroups.com/group/acropolis/).
[1] Segundo o dicionário Aurélio,
tradição: “s.f. Transmissão de
doutrinas, de lendas, de costumes etc., durante longo espaço de tempo,
especialmente pela palavra: a tradição é o laço do passado com o presente; é
tradição deles festejar os aniversários. / Transmissão oral, às vezes
registrada por escrito, dos fatos ou das doutrinas religiosas. / Costume
transmitido de geração a geração: as tradições de uma região. / Dir. Entrega
material de um bem móvel, objeto de uma transferência de propriedade.”
Disponível em <http://www.dicionariodoaurelio.com/Tradicao.html>. Acesso em 21 Maio 2013
[2] Evidentemente, “professor” aqui é
uma generalização que não corresponde à realidade, embora se aproxime bastante.
Infelizmente, as exceções são raras.
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