A boca fala do que o coração tá cheio

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Platão, os sofistas e o problema do conhecimento


Os sofistas, a partir da reflexão sobre a linguagem como potência eficaz, tiveram uma importância fundamental no desenvolvimento da retórica. Com eles, a filosofia, pela primeira vez, apresentou uma abordagem cuja ênfase se encontrava sobre o discurso. Não é à toa que até hoje são considerados os grandes precursores da virada linguística do século XIX e da atual filosofia da linguagem.
Observando o Górgias, de Platão, é possível perceber que a retórica sofística encontra-se assentada sobre os pressupostos de uma epistemologia cética e de uma ontologia niilista. Górgias não cria na possibilidade de acesso do sujeito à realidade e, assim como os outros sofistas, entendia que a única condição necessária para o conhecimento seria o domínio dos recursos da linguagem. Dessa forma, seria somente o logos – o discurso – o critério capaz de instituir a objetividade e a universalidade.
É importante observar que o discurso sofístico não é concebido como representação do real, mas meramente como desempenho, devendo ser persuasivo, eficiente e sugestivo. Para Platão, essa recusa da objetividade torna-se um grande problema à medida que o discurso persuasivo passa a ser usado como controle não só das coisas – fazendo delas efeitos do discurso –, como das pessoas – incutindo-lhes a convicção do enunciado. Assim, a aceitação desses pressupostos ontológicos e epistemológicos acabaria por conduzir o filósofo tanto ao irracionalismo, quanto ao imoralismo.
Percebendo a complexidade da questão, Platão, na tentativa de restituir os padrões de racionalidade e objetividade, opta por investigar e explicitar as consequências éticas, epistemológicas e ontológicas das teorias sofistas, procurando reestruturar os domínios do saber e do poder no estudo da linguagem. Com isso, ele não só estabelece a distinção qualitativa entre doxa (opinião) e episteme (ciência), como entende que a persuasão característica da retórica filosófica deve atender a um telos superior – a justiça – e estar limitada à atividade política do filósofo.
Dessa forma, Platão consegue não só responder aos argumentos sofistas, mas desenvolver sua própria filosofia a partir desses questionamentos. Afastando-se da retórica vazia e descomprometida dos sofistas, ele apresenta outra retórica que tem relação direta com o problema do conhecimento, constituindo-se em instrumento adequado ao seu objetivo maior: o conhecimento das verdades filosóficas.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

A sofística e o argumento parmenídico


Baseados na teoria parmenídica do ser absoluto, os sofistas se defenderam da acusação de falsidade do seu discurso apoiados na afirmação de Parmênides de que “o não-ser não é”. Para eles, já que o não-ser não poderia ser expresso e nem pensado, o que é dito e pensado deveria ser necessariamente verdadeiro.
Transpondo a univocidade do ser de Parmênides para o nível do discurso, acabaram por “tornar verdadeiro” não só todo pensamento, mas também toda a realidade sensível. Assim, partindo do ser absoluto de Parmênides, que caracterizou o mundo sensível como aparência, os sofistas desembocaram em um relativismo que afirmou ser verdadeiro tudo o que existe.
Entretanto, o que os sofistas parecem não ter percebido é que o ser, enquanto absoluto, não poderia ser dissolvido na multiplicidade do real sem que comprometesse sua unidade. Além disso, da forma como é interpretado pelos sofistas, o próprio mundo de Parmênides tornou-se impossível, visto que a verdade só poderia ser encontrada onde o absoluto se encontra, só que, ao mesmo tempo, não se admite qualquer movimento do pensamento, devendo ser este também absoluto, fixo e eterno.
A razão desses desencontros pode ser explicada através da equivocidade de sentido com que Parmênides e os sofistas se referem ao ser. Enquanto o primeiro atribui um sentido metafísico, os últimos, apoiados pela máxima “pensar e ser é o mesmo”, fazem menção ao discurso. Porém, se este ser do discurso dos sofistas fosse o mesmo ser metafísico de Parmênides, toda a multiplicidade existente no discurso seria impossível.
Nesse sentido, Platão também ofereceu contribuições importantes para o entendimento da questão. Para ele, pra quem os sofistas eram ilusionistas da verdade, negar a possibilidade do discurso falso seria rejeitar todo seu projeto filosófico. Para resolver a questão, primeiramente, foi preciso que, de alguma forma, o não-ser fosse estabelecido como realidade entre as Formas supremas, possibilitando o movimento do pensar dialético, para que, somente a partir daí, pudesse ser demonstrada a possibilidade do discurso falso.
É importante lembrar que, para Platão, o inteligível é o mundo perfeito das ideias. Logo, foi necessário provar a possibilidade do discurso falso, obviamente, sem atribuir ao não-ser um eidos de falsidade, o que destruiria a perfeição das Formas; e sem relacionar a falsidade ao mundo sensível, visto que, apesar de resolver o problema da sofística, acabaria por negar a correspondência entre o pensamento e as Ideias, ponto central de sua dialética.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Mineirinho - Clarice Lispector


É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que esta doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: ‘O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no Céu.’ Respondi-lhe que ‘mais do que muita gente que não matou’.

Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordem, e com horror digo tarde demais – vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for preciso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente – não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça. A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.

Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo e Mineirinho – essa coisa que move montanhas e é a mesma que o faz gostar ‘feito doido’ de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador – em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, não me perdi, experimentei a perdição. A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porquê adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime . Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma. Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila, e que os outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.

Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo – uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do S. Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muita séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é o desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.

Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.

O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.

Parmênides e a virada ontológica


Parmênides, geralmente, é considerado pela tradição filosófica o grande precursor da ontologia e da lógica. Foi sua filosofia a primeira a afirmar que o mundo percebido pelos sentidos é um mundo ilusório, constituindo-se em meras aparências sobre as quais o homem formula opiniões. Nasce com ele, portanto, a clássica distinção entre aparência e verdade que permeará, de alguma forma, praticamente toda a história do pensamento ocidental a partir daí.
Em seu pensamento, o homem que se lança na via da verdade deveria deixar-se conduzir apenas pela razão. Pensar não é o mesmo que perceber. Enquanto o último estaria ligado à observação das aparências mutáveis, o primeiro seria a contemplação da realidade como idêntica a si mesmo ou, em outras palavras, a contemplação do próprio ser.
A ideia central do poema parmenídico é a de que o ser é e o não-ser não é. Além disso, Parmênides afirma que o que é não pode deixar de ser, fundando o princípio da imutabilidade e excluindo do conceito de ser toda possibilidade de mudança, variação, geração ou corrupção.
Para ele, os atributos das coisas que são são revelados como uma necessidade absoluta tanto do ser, quanto do pensamento. Assim, Parmênides acaba por identificar o ser tanto com o pensamento quanto com o discurso. O que é pode, necessariamente, ser dito e pensado, enquanto o que não é não os podem ser.
É importante perceber, entretanto, que o não-ser parmenídico não tem um caráter positivo, mas é, antes, uma expressão lógica negativa do ser. Não pode ser dito, nem pensado. Por isso, tudo de que o pensamento ou o discurso se ocupam é. Além disso, Parmênides entende que tudo o que pode ser pensado pode ser dito, visto que não há pensamento racional fora da linguagem que não seja discursivo. Ambos obedeceriam às mesmas regras, fazendo com que assim como o homem só pode pensar o que é, também só possa enunciar o que é.
Dessa forma, Parmênides, além de afirmar a univocidade do ser, defende que o pensamento verdadeiro não admite multiplicidade ou pluralidade, negando, portanto, qualquer possibilidade de uma cosmologia. Isso porque no pensamento do Eleata nem mesmo o cosmos é, mas apenas o ser. Assim, seu pensamento pode ser considerado, de fato, um marco na história da filosofia, tendo representado uma virada de uma concepção mais cosmológica para uma concepção mais ontológica da filosofia.

sábado, 2 de junho de 2012

Brincar de pensar - Clarice Lispector




A arte de pensar sem riscos. Não fossem os caminhos da emoção a que leva o pensamento, pensar já teria sido catalogado como um dos modos de se divertir. Não se convidam amigos para o jogo por causa da cerimônia que se tem em pensar. O melhor modo é convidar apenas para uma visita, e, como quem não quer nada, pensa-se junto, no disfarçado das palavras.
Isso, enquanto jogo leve. Pois para pensar fundo – que é o grau máximo do hobby – é preciso estar sozinho. Porque entregar-se a pensar é uma grande emoção, e só se tem coragem de pensar na frente de outrem quando a confiança é grande a ponto de não haver constrangimento em usar, se necessário, a palavra outrem. Além do mais exige-se muito de quem nos assiste pensar: que tenha um coração grande, amor, carinho, e a experiência de também se ter dado ao pensar. Exige-se tanto de quem houve as palavras e os silêncios – como se exigiria para sentir. Não, não é verdade. Para sentir exige-se mais.
Bom, mas quanto a pensar como divertimento, a ausência de riscos o põe ao alcance de todos. Algum risco tem, é claro. Brinca-se e pode-se sair de coração pesado. Mas de um modo geral, uma vez tomados os cuidados intuitivos, não tem perigo. Como hobby, apresenta a vantagem de ser por excelência transportável. Embora no seio do ar ainda seja melhor, segundo eu. Em certas horas da tarde, por exemplo, em que a casa cheia de luz mais parece esvaziada pela luz, enquanto a cidade inteira estremece trabalhando e só nós trabalhamos em casa mas ninguém sabe – nessas horas em que a dignidade se refaria se tivéssemos uma oficina de consertos ou uma sala de costuras – nessas horas: pensa-se. Assim: começa-se do ponto exato em que se estiver, mesmo que não seja de tarde; só de noite é que não aconselho.
Uma vez  por exemplo – no tempo em que mandávamos roupa para lavar fora – eu estava fazendo o rol. Talvez por hábito de dar título ou por súbita vontade de ter caderno limpo como em escola, escrevi:  rol de… e foi nesse instante que a vontade de não ser séria chegou. Este é o primeiro sinal do animus brincandi, em matéria de pensar – como –hobby. E escrevi esperta: rol de sentimentos. O que eu queria dizer com isto, tive que deixar para ver depois – outro sinal de se estar no caminho certo é o de não ficar aflita por não entender; a atitude deve ser: não se perde por esperar, não se perde por não entender.
Então comecei uma listinha de sentimentos dos quais não sei o nome. Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto – como se chama o que sinto? A saudade que se tem de pessoa de quem a gente não gosta mais, essa mágoa e esse rancor – como se chama? Estar ocupada – e de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala: como se chama o que se sentiu?
Mas devo avisar. Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco. Não é bom. É apenas frutífero.