Professora,
Diante
do ambiente de franqueza que se deu na última aula, resolvi escrever esse
trabalho em forma de carta. Assim, me sinto mais a vontade para colocar o que
penso, sem ter que ficar preso às formalidades de textos acadêmicos, que – até
onde posso perceber – têm como função principal proteger o autor através dos
incontáveis recursos de argumentação retórica. Creio que só se defende quem tem
medo, ou quem acredita ter algo a perder.
Assim,
sem perder muito tempo, gostaria de, simplesmente, compartilhar com a senhora a
patética situação em que me sinto quando tenho que – por força de uma avaliação
– ler um texto que não quero. Chego a rir sozinho de mim mesmo. Surgem mil
coisas para fazer: pesquisas dos mais variados assuntos na internet, uma fome
incontrolável que justifica pausas para inúmeros lanches, leitura de outros
livros, cochilos, etc. Enfim, qualquer coisa que me deixe longe da obrigação
imposta. Por fim, vendo o prazo aproximar-se, reúno forças do fundo da alma e
vou, finalmente, fazer o que não quero, com a velha pergunta na cabeça: por que
as coisas têm que ser assim?
Hoje,
entretanto, felizmente, apesar do peso de ainda jogar um jogo no qual não acredito,
não creio que as coisas – de fato – tenham que ser assim. Sei que podem ser
diferentes. Descobri não só que o atual antigo modelo de educação não é uma
fatalidade, mas, de outro modo, constitui-se numa opção – e aqui não falo em
sentido político, mas individual: onde cada educador escolhe cotidianamente, ao
entrar em sala de aula, reproduzir um sistema evidentemente falido –, como,
também, que já há gente assumindo suas responsabilidades diante da vida e
construindo novas formas de interação com o conhecimento e, especialmente, com
o próximo, essa categoria que não cabe em nenhum ambiente bipartido entre
professores e alunos que, geralmente, constitui as instituições de ensino,
sejam elas escolas ou universidades.
Passemos
então ao texto.
Se
antes de ler, não queria lê-lo, agora que o li, gostaria menos ainda de tê-lo
lido. Pelo menos, do ponto de vista emocional, teria sido uma boa economia.
O
texto, que se propõe a falar sobre cognição, inicia-se definindo-a como “a
capacidade humana de entender, julgar e interpretar o mundo”. Esse entendimento,
por sua vez, estaria referido às “atividades mentais envolvidas na aquisição,
processamento, organização e uso do conhecimento”, como afirma o autor logo em
seguida. Até aí, nada demais. A surpresa maior ficou por conta do tópico
seguinte: desenvolvimento cognitivo do adolescente segundo Piaget.
Ao
reduzir, a partir de suas hipóteses, o adolescente a um ser lógico-formal,
Piaget acaba por transformá-lo, além de lógico-formal – que já é motivo
suficiente de ofensa –, num ser egocêntrico, inexperiente e que encontra sua
realização quando progride até a vida
adulta, onde, enfim, se depara com o mundo
real.
Segundo
ele, o adolescente viveria numa espécie ponto de tensão entre o seu idealismo
egocêntrico-sonhador-lógico-formal e o mundo real, que seria atingido tendo o trabalho como principal mediador.
Obviamente aqui, tanto trabalho, quanto mundo real, apesar de serem colocados
como se tivessem uma elevada “densidade ontológica”, apresentam significado,
evidentemente, bastante mais restrito.
Assim,
ao enxergar o adolescente como esse ser inferior caminhando em direção à
iluminação da vida adulta, Piaget consegue ir além e relaciona a incapacidade
do adolescente de compreender os absurdos do “mundo real” não com o estado de
total fragmentação interna e total desconexão de suas relações fundamentais (alienação
da própria vida) em que vive a maior parte dos adultos – correndo de um lado
para outro atrás de dinheiro, conhecimento, poder, ou qualquer outra coisa que
alimente seus egos, a essa altura da vida já bem desenvolvidos e cristalizados
–, mas, sim, uma vez mais, com seu ponto de vista lógico e egocêntrico de
apreensão do mundo. Não me lembro a última vez que li algo tão cientificamente
babaca. Com o perdão da expressão.
Pascal
diz que toda a infelicidade dos homens deriva do fato de nós não conseguirmos
permanecer em nossos quartos sozinhos. Quando leio coisas desse tipo, tenho a
clara sensação de que se conseguíssemos realizar esse ato da solidão em nosso
quarto, não só seríamos mais felizes, como não haveria ciência. Pelo menos não
essa esquizofrenia a que chamamos ciência.
Lembrei
ainda de Clarice Lispector: “Depois que descobri em mim mesma como é que se
pensa, fazendo comigo mesma negociatas, nunca mais pude acreditar no pensamento
dos outros”.
Se Piaget soubesse disso, talvez pudesse ver o
adolescente não como esse ser de categoria inferior, mas como alguém que,
simplesmente, ainda não aprendeu a adulta arte do autoengano. Alguém que olha
para a vida e enxerga possibilidades ao invés de acreditar nas próprias cadeias
que constrói para si. E por isso sonha e questiona.
“(...) o ponto central do processo de descentração
está no ingresso no mundo ocupacional ou início do treinamento profissional. O
adolescente torna-se um adulto quando ele assume de fato um trabalho. Este é o
momento em que ele se passa de um reformador idealista para um empreendedor. Em
outras palavras, o trabalho afasta o pensamento do perigo do formalismo e o
traz de volta à realidade (INHELDER e PIAGET, 2003, p.346)”.
Afirmação triste e que – creio – dispensa
comentários.
Achei interessante o momento em que – em meio a
tantos absurdos – levanta-se a ideia de reciprocidade, respeito mútuo, relações
dialógicas e coisas do tipo. Ouvi certa vez, e guardo sempre comigo, a ideia de
que diálogo verdadeiro só é possível entre seres humanos, nunca entre papéis
sociais. Portanto fica a questão: como falar de respeito, diálogo e
reciprocidade em ambientes claramente marcados pela divisão, seja ela social ou
dada em qualquer outro nível?
Em outra citação, o texto afirma o seguinte:
“A sociabilidade do adolescente se desenvolve
através da interação com outros adolescentes. A interação social dos
adolescentes tem como intenção básica a discussão. Quer em dupla, quer em
pequenos grupos, o mundo é reconstruído em comum, e o adolescente se perde em
discussões infindáveis como um meio de combater o mundo real” (PIAGET apud
WADSWORTH, 2003, p.68).
Aqui fiquei na dúvida e tive que voltar e ler de
novo. Particularmente, não conheço um adolescente que encontre prazer em
discussões infindáveis sobre meios de combater o mundo real. Esse tipo de
sofisticação estéril é, sim, a grande marca da academia, da política ou de
qualquer outra instituição que acredita ser possível mudar o mundo sem mudar o
ser. Os adolescentes, não. Parecem-me seres bem mais simples: encontram prazer
na praia, no rolé de skate e no fazer nada.
O tópico seguinte, que aborda o desenvolvimento
cognitivo na adolescência a partir da teoria histórico-cultural, é, certamente,
bem menos agressivo e opressor que o primeiro, mas, como o próprio nome já
revela, apenas mais uma redução: agora não mais lógico-formal, mas
histórico-cultural.
Dessa maneira, esse enfoque irá privilegiar “o contexto
do sujeito na aprendizagem e a materialidade do mundo que o cerca”. Segundo
Vygotsky, é na objetividade deste mundo que as experiências se realizam e
adquirem significados. Se a “objetividade deste mundo” não estivesse
circunscrita apenas aos aspectos sócio-histórico-culturais da realidade até que
poderíamos ter algo interessante.
Logo de início, a frase “Hoje se espera que os
candidatos à humanidade desenvolvam habilidades como usar o computador,
dirigir, usar celular, etc.” gerou em mim a curiosidade de saber quem – ou o
quê – seriam esses candidatos à humanidade. Com todo o desgaste
emocional da leitura da primeira parte, resolvi ignorar.
Apesar de, aparentemente, ter a intenção de romper
com a concepção adultocêntrica, essa outra abordagem permanece ainda bastante
presa a ela na medida em que eleva a formação de conceitos ao patamar daquilo
do que há de mais elevado em termos de apreensão do mundo. Chega-se, inclusive,
a ser feita a engraçada afirmação de que “as funções mentais superiores –
percepção, atenção seletiva, memória mediada, pensamento, linguagem e
imaginação – que têm por finalidade o desenvolvimento do pensamento ao se
integrarem na formação de conceitos, obedecem à lei genética geral do
desenvolvimento cultural”. À título de brincadeira, até serve para dar uma
descontraída, mas se for levada a sério, fica difícil de engolir.
O interessante de perceber é que tanto a primeira
teoria quanto esta têm em comum a concepção – velada, obviamente – do homem
como um ser fragmentado. Enquanto na primeira essa fragmentação se revela no
processo de construção de conformidades e autoenganos que o autor chama de adaptação
ao mundo real, aqui, nesta, a condição humana é dividida entre autor
e personagem da cultura, que, teoricamente, convivem em um paradoxo
harmonioso. Ora, basta estar vivo para saber que o eu (autor) não pode
coexistir numa dialética tão amigável assim com o ego (personagem da cultura).
Não acredito na realidade (ontológica) do ego. E realidade, obviamente, no
sentido de que ele tenha existência própria, afirmativa e criativa. Penso o ego
muito mais como negação, como separação, reação, afastamento e usurpação do eu.
Por isso, creio que a teoria faça o caminho justamente contrário ao sugerir que
o desenvolvimento cognitivo na adolescência está associado à formação de
pensamentos e conceitos. Na medida em que a formação de conceitos é
característica de um tipo de pensamento altamente fragmentado, o que há na
adolescência, de forma geral, não é um desenvolvimento cognitivo, mas – antes –
um processo de fragmentação do eu e engorda do ego. Este sim, alimentado por
conceitos. O desenvolvimento cognitivo verdadeiro, por seu lado, é solapado
pela escola.
O resultado, como todos nós podemos comprovar,
somos nós mesmos: os incríveis adultos! Que tudo sabem, são mestres,
professores, ensinadores dos mais variados tipos e que, salvo raríssimas
exceções, não conseguem dar conta nem de suas próprias existências. Outro dia
conversando com um amigo sobre isso, dizendo a ele mais ou menos essas mesmas
coisas, ele me disse:
“ – É mesmo. Eu lembro que quando era criança,
sempre ficava me perguntando porque eu tinha que obedecer aos adultos, porque
sempre tinha uma porção de adulto me dando uma porção de ordem, me dizendo o
que fazer, como fazer e eu olhava pra vida deles, e a vida deles era igual a de
todo mundo: uma merda! Cheia de problema, sofrimento, incoerência... nunca
entendi”.
Então, independente de teoria A, B ou C, penso que
nunca chegaremos a um lugar satisfatório na questão da educação, enquanto não
adotarmos como pressuposto a radical igualdade entre os seres humanos. Além
disso, penso que, muito dificilmente, sairá alguma solução para a questão da
educação dos debates estéreis e vaidosos de que tanto se orgulha a academia.
Aliás, não sei nem se creio em solução para a educação. Uma coisa, porém, eu
acredito que possa mudar: eu mesmo. O que passar disso, pelo menos no meu
entender, é verborragia acadêmica sustentada por autoengano.
Espero que não fique chateada com o meu ponto de
vista. Mas, realmente, é o que penso. E me sentiria muito mal em escrever
qualquer outra coisa.
Beijo,
Rodrigo.
Rodrigo quero somente agradecer por te conhecer e declarar que às vezes sinto vontade de ter escrito um texto como esse!Bjks
ResponderExcluirÉ um prazer te conhecer também, Vânia! :) Beijão!
ExcluirRodrigo, mandou super bem. Agora vou ali citá-lo em meu texto próximo texto retórico, ok? kkk
ResponderExcluirValeu, João! Fica à vontade! :)
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