Quando,
de uma ou outra maneira, tememos não conseguir manter uma visão de conjunto
sobre os múltiplos e vastos aspectos de uma questão, esforçamo-nos para fazer
ou adquirir um breve resumo do todo – para dele obtermos um panorama. Deste
modo, a morte é o resumo mais curto da vida, ou a vida reconduzida à sua forma
mais breve. Por isso também sempre tem sido tão importante, para os que em
verdade refletem sobre a vida humana, muitas e muitas vezes, com a ajuda dessa
ideia recapituladora, colocar em questão o que compreendem da vida. Pois nenhum
pensador domina a vida como o faz a morte, esse pensador poderoso que não
apenas consegue penetrar pelo pensamento toda e qualquer ilusão, mas ainda pode
desmembrá-la e pensá-la até não sobrar mais nada. Se então tudo se torna
confuso para ti, quando observas os numerosos caminhos da vida, vai então
encontrar os mortos “lá para onde convergem todos os caminhos” – e aí sim
facilmente terás a visão global. E se te dá vertigem de tanto veres as
diferenças da vida e delas ouvires falar, sai de novo a encontrar os mortos, lá
tu dominarás as diferenças: entre os “parentes no pó”, toda diferença se apaga
e só resta o parentesco próximo. Pois todos os homens são parentes
consanguíneos e, portanto, de um único sangue, e este parentesco da vida é tão
frequentemente negado na vida; mas que todos são de um mesmo pó, esse
parentesco na morte, isso não se deixa negar.
Sim,
vai ainda uma vez ao encontro dos mortos, para desse lugar olhar a vida de
frente: assim faz aliás o atirador, procura um lugar onde o inimigo não possa
atingi-lo, mas de onde ele possa acertá-lo mirando-o com toda a tranquilidade.
Não escolhas para essa visita o declínio do dia; pois a calma que se estende à
tardinha sobre os mortos freqüentemente não está longe de uma certa tensão que
excita e “sacia com inquietação” e que, em vez de resolver os enigmas, propõe
novos. Não: vai até lá bem cedo pela manhã, quando o sol matutino assoma entre
as folhagens com seus jogos de luz e sombra, quando a beleza amistosa do lugar,
ainda animada pelo canto dos pássaros e pela vida multiforme, quase te leva a
esquecer que estás entre os mortos. Acharás então que chegaste a um país
estrangeiro que permaneceu na ignorância da confusão e da fragmentação da vida,
no estado infantil, composto unicamente por pequenas famílias. Aqui fora, com
efeito, alcançou-se o que em vão se procurava na vida: a repartição
igualitária. Cada família tem para si uma pequena parcela de terra, mais ou
menos do mesmo tamanho. A vista é mais ou menos a mesma para todas elas; o sol
consegue brilhar igualmente sobre todas elas; nenhum monumento se eleva tão
alto que roube do que mora ao lado ou do que mora à frente o raio do sol ou a
chuva refrescante ou o frescor da brisa ou o eco do canto dos pássaros. Não,
aqui a repartição é igualitária. Pois na vida às vezes acontece a uma família
ter de se restringir depois de ter conhecido a abundância e a prosperidade; mas
na morte, todos já tiveram que se limitar. Pode haver uma pequena diferença,
uma vara, talvez, na extensão do lote; ou uma das famílias talvez possua uma
árvore que o outro morador não tenha no seu lote. E por que esta diferença, o
que tu achas? Ela está aí para, numa profunda troça, lembrar-te por sua
insignificância o quão grande ela um dia já foi. A morte é tão amorosa! Pois é
justamente caridade, da parte da morte, que ela por meio dessa pequena
diferença em gracejo sublime relembre a grande diferença. A morte não diz: “Não
há nenhuma diferença”; ela diz: “Aqui podes ver o que era esta diferença: uma
meia vara.” Caso não houvesse essa pequena diferença, então a quintessência da
morte não seria inteiramente confiável. Assim a vida retorna, na morte, à
infantilidade. Nos tempos da infância, a grande diferença consistia em que um
possuía uma árvore, uma flor, uma pedra. E tal diferença era uma indicação
daquilo que na vida haveria de se mostrar de acordo com um padrão bem
diferente. Agora, a vida já passou, e entre os mortos restou uma pequena
indicação da diferença, como uma recordação, suavizada num gracejo, de como era
antes.
Vê
só, aqui fora é o lugar para meditar sobre a vida; para, com a ajuda desta
breve quintessência que abrevia toda a prolixidade das relações complicadas,
alcançar a visão do conjunto. Como poderia eu, em um escrito sobre o amor,
deixar passar, sem aproveitar, essa oportunidade de examinar afinal em que
consiste o amor? Na verdade, se quiseres ter certeza sobre o amor que existe em
ti ou em outra pessoa, então presta atenção para a forma com que ela se
comporta para com um falecido. Quando se quer observar uma pessoa, é importante
para o sucesso da observação que se veja a pessoa que está na relação, porém
olhando-se exclusivamente para ela. Quando então uma pessoa real se relaciona
com uma outra pessoa real, são então duas, a relação é composta, e a observação
sobre apenas uma delas fica dificultada. Pois esta outra pessoa esconde algo
sobre a primeira pessoa, e além disso a segunda pessoa pode, afinal,
influenciar muito para que a primeira se mostre de maneira diferente da que é. Uma
dupla operação é necessária nesse caso; a observação deve levar em conta
particularmente a influência exercida pela personalidade, pelas qualidades,
pelas virtudes e pelos defeitos dessa pessoa sobre aquela que é o objeto da
observação. Se tu pudesses realmente ver um homem lutar na maior seriedade, ou
se conseguisses fazer um dançarino executar sozinho a dança que ele
habitualmente executa com uma parceira, tu poderia então observar seus
movimentos nas melhores condições, bem melhores do que quando o primeiro
combate com um outro lutador de verdade, ou se o segundo dançasse com uma outra
pessoa de verdade. E se tu compreendes a arte de, num diálogo com alguém, te
transformares em “ninguém”, tu então tens todas as chances de te instruíres
sobre o que reside nessa pessoa. Oh, mas quando um ser humano se relaciona com
um falecido, então nessa relação só há uma pessoa, pois um morto não é nenhuma
realidade efetiva; e ninguém, ninguém pode tão bem quanto um morto reduzir-se a
ser “ninguém”, pois ele é “ninguém”. Aqui a observação não pode falhar; aqui o
que está vivo se torna manifesto; aqui, este tem de se mostrar completamente
como ele é; pois um defunto, este sim que é um homem ardiloso, ele se retirou
completamente, ele assim não exerce a mínima influência capaz de perturbar ou
auxiliar o vivente que se relaciona com ele. Um morto não é um objeto real; ele
é tão-somente a ocasião que constantemente revela o que reside no interior do
vivente que com ele se relaciona, ou que ajuda a tornar manifesto como é aquele
vivente que não mantém com ele nenhuma relação.
Søren
Kierkegaard
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