A boca fala do que o coração tá cheio

sábado, 30 de março de 2013

Parentes no pó


Quando, de uma ou outra maneira, tememos não conseguir manter uma visão de conjunto sobre os múltiplos e vastos aspectos de uma questão, esforçamo-nos para fazer ou adquirir um breve resumo do todo – para dele obtermos um panorama. Deste modo, a morte é o resumo mais curto da vida, ou a vida reconduzida à sua forma mais breve. Por isso também sempre tem sido tão importante, para os que em verdade refletem sobre a vida humana, muitas e muitas vezes, com a ajuda dessa ideia recapituladora, colocar em questão o que compreendem da vida. Pois nenhum pensador domina a vida como o faz a morte, esse pensador poderoso que não apenas consegue penetrar pelo pensamento toda e qualquer ilusão, mas ainda pode desmembrá-la e pensá-la até não sobrar mais nada. Se então tudo se torna confuso para ti, quando observas os numerosos caminhos da vida, vai então encontrar os mortos “lá para onde convergem todos os caminhos” – e aí sim facilmente terás a visão global. E se te dá vertigem de tanto veres as diferenças da vida e delas ouvires falar, sai de novo a encontrar os mortos, lá tu dominarás as diferenças: entre os “parentes no pó”, toda diferença se apaga e só resta o parentesco próximo. Pois todos os homens são parentes consanguíneos e, portanto, de um único sangue, e este parentesco da vida é tão frequentemente negado na vida; mas que todos são de um mesmo pó, esse parentesco na morte, isso não se deixa negar.

Sim, vai ainda uma vez ao encontro dos mortos, para desse lugar olhar a vida de frente: assim faz aliás o atirador, procura um lugar onde o inimigo não possa atingi-lo, mas de onde ele possa acertá-lo mirando-o com toda a tranquilidade. Não escolhas para essa visita o declínio do dia; pois a calma que se estende à tardinha sobre os mortos freqüentemente não está longe de uma certa tensão que excita e “sacia com inquietação” e que, em vez de resolver os enigmas, propõe novos. Não: vai até lá bem cedo pela manhã, quando o sol matutino assoma entre as folhagens com seus jogos de luz e sombra, quando a beleza amistosa do lugar, ainda animada pelo canto dos pássaros e pela vida multiforme, quase te leva a esquecer que estás entre os mortos. Acharás então que chegaste a um país estrangeiro que permaneceu na ignorância da confusão e da fragmentação da vida, no estado infantil, composto unicamente por pequenas famílias. Aqui fora, com efeito, alcançou-se o que em vão se procurava na vida: a repartição igualitária. Cada família tem para si uma pequena parcela de terra, mais ou menos do mesmo tamanho. A vista é mais ou menos a mesma para todas elas; o sol consegue brilhar igualmente sobre todas elas; nenhum monumento se eleva tão alto que roube do que mora ao lado ou do que mora à frente o raio do sol ou a chuva refrescante ou o frescor da brisa ou o eco do canto dos pássaros. Não, aqui a repartição é igualitária. Pois na vida às vezes acontece a uma família ter de se restringir depois de ter conhecido a abundância e a prosperidade; mas na morte, todos já tiveram que se limitar. Pode haver uma pequena diferença, uma vara, talvez, na extensão do lote; ou uma das famílias talvez possua uma árvore que o outro morador não tenha no seu lote. E por que esta diferença, o que tu achas? Ela está aí para, numa profunda troça, lembrar-te por sua insignificância o quão grande ela um dia já foi. A morte é tão amorosa! Pois é justamente caridade, da parte da morte, que ela por meio dessa pequena diferença em gracejo sublime relembre a grande diferença. A morte não diz: “Não há nenhuma diferença”; ela diz: “Aqui podes ver o que era esta diferença: uma meia vara.” Caso não houvesse essa pequena diferença, então a quintessência da morte não seria inteiramente confiável. Assim a vida retorna, na morte, à infantilidade. Nos tempos da infância, a grande diferença consistia em que um possuía uma árvore, uma flor, uma pedra. E tal diferença era uma indicação daquilo que na vida haveria de se mostrar de acordo com um padrão bem diferente. Agora, a vida já passou, e entre os mortos restou uma pequena indicação da diferença, como uma recordação, suavizada num gracejo, de como era antes.

Vê só, aqui fora é o lugar para meditar sobre a vida; para, com a ajuda desta breve quintessência que abrevia toda a prolixidade das relações complicadas, alcançar a visão do conjunto. Como poderia eu, em um escrito sobre o amor, deixar passar, sem aproveitar, essa oportunidade de examinar afinal em que consiste o amor? Na verdade, se quiseres ter certeza sobre o amor que existe em ti ou em outra pessoa, então presta atenção para a forma com que ela se comporta para com um falecido. Quando se quer observar uma pessoa, é importante para o sucesso da observação que se veja a pessoa que está na relação, porém olhando-se exclusivamente para ela. Quando então uma pessoa real se relaciona com uma outra pessoa real, são então duas, a relação é composta, e a observação sobre apenas uma delas fica dificultada. Pois esta outra pessoa esconde algo sobre a primeira pessoa, e além disso a segunda pessoa pode, afinal, influenciar muito para que a primeira se mostre de maneira diferente da que é. Uma dupla operação é necessária nesse caso; a observação deve levar em conta particularmente a influência exercida pela personalidade, pelas qualidades, pelas virtudes e pelos defeitos dessa pessoa sobre aquela que é o objeto da observação. Se tu pudesses realmente ver um homem lutar na maior seriedade, ou se conseguisses fazer um dançarino executar sozinho a dança que ele habitualmente executa com uma parceira, tu poderia então observar seus movimentos nas melhores condições, bem melhores do que quando o primeiro combate com um outro lutador de verdade, ou se o segundo dançasse com uma outra pessoa de verdade. E se tu compreendes a arte de, num diálogo com alguém, te transformares em “ninguém”, tu então tens todas as chances de te instruíres sobre o que reside nessa pessoa. Oh, mas quando um ser humano se relaciona com um falecido, então nessa relação só há uma pessoa, pois um morto não é nenhuma realidade efetiva; e ninguém, ninguém pode tão bem quanto um morto reduzir-se a ser “ninguém”, pois ele é “ninguém”. Aqui a observação não pode falhar; aqui o que está vivo se torna manifesto; aqui, este tem de se mostrar completamente como ele é; pois um defunto, este sim que é um homem ardiloso, ele se retirou completamente, ele assim não exerce a mínima influência capaz de perturbar ou auxiliar o vivente que se relaciona com ele. Um morto não é um objeto real; ele é tão-somente a ocasião que constantemente revela o que reside no interior do vivente que com ele se relaciona, ou que ajuda a tornar manifesto como é aquele vivente que não mantém com ele nenhuma relação.

Søren Kierkegaard

Nenhum comentário:

Postar um comentário