A boca fala do que o coração tá cheio

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Sagacidade temerária


Enganar-se a si mesmo quanto ao amor, é o mais horrível, é uma perda eterna, para a qual não há reparação nem no tempo nem na eternidade. Pois nos outros casos, por mais diversos que sejam em que se fala do ser enganado no amor, o enganado se relaciona mesmo assim com o amor, e o engano consiste apenas em que o amor não estava onde se acreditava estar; aquele, porém, que se engana a si mesmo excluiu-se a si mesmo e excluiu-se do amor. Também se fala de alguém ser enganado pela vida ou na vida; mas para aquele que numa autoilusão enganou a si mesmo quanto à vida, a perda é irreparável. Entretanto, mesmo aquele que ao longo de toda sua vida foi enganado pela vida, pode receber da eternidade uma copiosa reparação; mas o que se enganou a si mesmo impediu a si mesmo de conquistar o eterno. Aquele que exatamente por seu amor tornou-se uma vítima do engano humano, - oh, o que é mesmo que terá perdido, quando se mostrar na eternidade que o amor permanece, depois que cessou o engano! Aquele, porém, que - engenhosamente - enganou a si mesmo, caminhando sagazmente para a armadilha da sagacidade, ai, mesmo que durante toda a sua vida se considerasse feliz em sua ilusão, o que não terá ele perdido, quando na eternidade se mostrar que ele se enganou a si mesmo! Pois na temporalidade talvez um homem consiga prescindir do amor, talvez tenha êxito em evadir-se ao longo do tempo sem descobrir o auto-engano, talvez tenha sucesso no mais terrível, - numa ilusão, orgulhoso de - permanecer nela; mas na eternidade ele não pode prescindir do amor, e não pode deixar de descobrir que pôs tudo a perder. Portanto, onde a vida é tão séria, onde é tão terrível, senão justamente quando ela, punindo, permite ao voluntarioso fazer o que quiser, de modo que lhe permite ir vivendo, orgulhoso de ser enganado, até que um dia lhe permite reconhecer a verdade, de que se enganou a si mesmo eternamente! Verdadeiramente, a eternidade não deixa que escarneçam dela, antes é assim, que ela nem precisa usar do poder, mas poderosamente usa de um pouco de escárnio para punir de maneira terrível o temerário. Pois o que vincula o temporal e a eternidade, o que é, senão o amor, que justamente por isso existe antes de tudo, e permanece depois que tudo acabou. Mas justamente porque o amor é assim o vínculo da eternidade, e justamente porque a temporalidade e a eternidade são de natureza diferente, justamente por isso o amor pode parecer um fardo para a sagacidade terrena da temporalidade, e por isso na temporalidade pode parecer ao homem sensual um imenso alívio lançar para longe de si este vínculo da eternidade. O que se enganou a si mesmo crê, certamente, poder consolar-se, sim, até ter mais do que vencido; para ele se oculta, na presunção da tolice, o quão sem consolo é sua vida. Que ele "parou de se entristecer" não queremos negar-lhe; mas o que é que isso lhe adianta, se a salvação justamente consistiria em começar a entristecer-se seriamente sobre si mesmo!
O que se enganou a si mesmo crê talvez até poder consolar outros que foram vítimas do engano da infidelidade; mas que loucura, se aquele que já sofreu dano no eterno quer curar aquele que no máximo está doente para a morte! O que se enganou a si mesmo crê talvez até, por força de uma estranha autocontradição, ser solidário com o infeliz que foi enganado. Mas se prestares atenção ao seu discurso consolador e à sua sabedoria curativa, vais reconhecer o amor nos frutos: no amargor do escárnio, na agudeza dos argumentos, no espírito envenenado da desconfiança, no frio mordente do endurecimento, ou seja, nos frutos se reconhece que aí não existe nenhum amor.

Søren Kierkegaard

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