Quem
faz a escola é o aluno. Mentira. Das brabas. Se assim o fosse, a escola
certamente, seria um ambiente bem diferente do que é. Esse tipo de discurso, infelizmente, não
passa de uma artimanha desonesta que intenta transferir o ônus da
responsabilidade do fracasso de um sistema educacional estruturalmente desumano,
uma vez mais, para os mais vulneráveis.
Durante
algum tempo da minha vida, tive um interesse muito grande nas questões
relacionadas à segurança pública. Especialmente, em relação àquilo que dizia
respeito à questão das drogas. Não que eu ache que as drogas sejam, de fato,
uma questão de segurança pública. Mas, bizarramente, essa ainda é a nossa
realidade.
E
lembro-me que um dos primeiros contatos que tive com o tema, que me levou a
despertar um olhar mais crítico e mais curioso para o assunto, foi através do
documentário Notícias de uma guerra
particular, de João Moreira Salles. Nele, o então capitão do BOPE – e atual
garoto propaganda da Rede Globo – Rodrigo Pimentel falava sobre o trabalho de
enxugar gelo realizado pela polícia, matando traficantes e apreendendo armas e
munições sem que nada de mais radical fosse feito nas engrenagens que
sustentavam – e sustentam – de maneira mais sólida o comércio ilegal de drogas.
Segundo ele, policiais e traficantes, alienados – muitas vezes de maneira
consciente, diga-se de passagem! – de uma percepção mais ampla do sistema
político – e econômico, acima de tudo! – que deles se alimenta, engalfinham-se
numa guerra que acaba por transformar-se numa guerra particular, onde a
sobrevivência cotidiana é a única coisa que realmente importa.
Certamente,
não foi à toa que as imagens desse documentário vieram visitar minha mente essa
semana. Quem tem qualquer relação com a escola, seja como professor ou como
aluno, sabe que a realidade ali vivida, na maior parte das vezes, pouco se
diferencia do que relatou o ex-policial em sua fala. Professores e alunos,
movidos pelo desespero da sobrevivência e das exigências de uma sociedade que
exclui peremptoriamente os que não se adequam aos seus ditames, esquecem-se de que
estão ambos servindo a interesses nada nobres e inserem-se numa dinâmica onde
passam a se comportar como se inimigos fossem, percebendo a presença do outro
não mais como uma possibilidade de troca e aprendizado para ambos – que constituiria
a própria ideia de educação –, mas como uma ameaça constante.
E
creio que nenhum outro lugar expressa tão bem o desequilíbrio dessa relação patológica
quanto a sala de professores. Um lugar que, a priori, deveria ser um polo
irradiador de conhecimento, criatividade e, antes de tudo, amor, mas que,
paradoxalmente, por inúmeros motivos legítimos, quase sempre assume as características
de um quartel general. Frequentar esse recinto é, mais do que uma experiência
filosófica, uma experiência terapêutica.
Ali
pulula à flor da pele toda sorte de neuroses e medos humanos. Refugiado em sua
trincheira, o professor encontra abrigo junto aos seus para recompor as suas
forças e preparar-se para as novas investidas. E, como guerra não se faz sem a
pressuposição de que o outro, sendo menos legítimo em sua existência, deve ser
subjugado, sua principal arma é a repetição do discurso de poder que
desqualifica seu inimigo número um: o aluno não quer nada. Assim, parece que
todas as questões se resolvem e podemos seguir em paz a nossa vida.
Protegendo-se
do verdadeiro confronto com sua incapacidade de perceber a impermanência de um
mundo que se atualiza a todo momento e com sua dificuldade de se inserir como designer dessas novas estruturas que vão
se desenhando, boa parte dos professores não consegue vislumbrar que sua
atitude emocional (sim, como seres livres que somos, em alguma instância, pelo
menos, somos responsáveis também pelo que sentimos!) perante o quadro que se
apresenta termina sendo o – ou, pelo menos, mais um – elemento conservador das
engrenagens que nos aprisionam e que tanto criticamos.
O
fato é que, percebendo ou não, o mundo está passando por uma série de rápidas
transformações. Transformações paradigmáticas. Nesse sentido, creio que não só
será impossível a educação não ser atingida – como já está sendo! – pela energia
desse novo tempo, como será, ela mesma, o grande cerne e a força motriz de
geração desse novo mundo.
Por
isso, a crise da educação e seu falido modelo “escolástico” não me assustam.
Analogamente ao que Marx pensou em relação à expansão e aprofundamento do
capitalismo como base para uma virada socialista – não, não sou marxista, de
esquerda, direita ou qualquer outra tribo político-religiosa –, acredito que o
fundo do poço em que se encontra a educação em nosso país, para além de todos
os males reais, traz em si um potencial de transformação muito grande. Não
temos para onde ir. E, quando chegamos nesse ponto, tomar outra direção já não
é mais uma opção. É um imperativo.
Assim,
meu desejo é que as muitas salas de professores espalhadas por esse Brasil
possam, deixando de ser palco de futilidades e, especialmente, de discursos de
ódio e separação, assumir esse papel revolucionário. Enquanto o professor não se
perceber como aluno e não se enxergar no aluno, enxergando-o também como
professor, nessa unidade indissolúvel que somos, não haverá espaço para uma
real educação. Infelizmente, por algum motivo, criamos uma cultura onde
acreditamos piamente na figura do professor como aquele que fala, transmitindo
conhecimento e na figura do aluno como aquele que ouve, absorvendo o conteúdo.
Porém, mais sábio que aquele que aprende conhecimento dos livros e os transmite
é o professor que aprende a ler seus alunos.
Já
passou da hora de deixarmos para trás o conforto da ingenuidade e encararmos o
que todos sabemos: a mudança não virá daqueles que se nutrem do sistema. Nós
somos a mudança. E toda mudança começa com um novo olhar. Apesar de todo seu moralismo,
não podemos negar que Paulo de Tarso – o fariseu que teve com Cristo uma
experiência mística – deixou-nos como legado algumas preciosidades. Em sua
carta aos romanos, por exemplo, brindou-nos com a beleza desse ensinamento: Não vos conformeis com este mundo, mas
transformai-vos pela renovação da vossa mente. Ele sabia que a
transformação do mundo começa não nas estruturas exteriores às quais estamos
submetidos, mas no interior de cada um, através das mudanças de percepção.
Portanto,
deixando para trás todo espírito de separatividade e fragmentação que nos
aliena, sigamos, num só passo junto aos alunos, em amor, por amor e para o
amor. Afinal, convenhamos, educar não é nada muito além do que amar.