A boca fala do que o coração tá cheio

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

E o Amor se fez carne...

No princípio era o verbo, o verbo estava com Deus e o verbo era Deus. Mas, como o Deus Amor nunca foi, de fato, uma ideia ou um conceito filosófico grego, o logos não o pode suportar por muito tempo e o derramou na existência. O Amor, assim, se fez carne...

            O nascimento de Jesus não nos fala, portanto, da fundação de uma nova religião ou da formação de um novo pensamento cultural. A boa nova que o caminhar do filho do homem sobre a terra nos traz é de natureza muito mais simples e profunda: o Amor se realiza entre os homens no sagrado chão da existência.

            Ironicamente, muito antes de Nietzsche, o próprio Cristo já havia – nele mesmo – realizado a inversão da metafísica tradicional. Num movimento de transcendência às avessas, mergulhando na imanência da terra e do corpo, verbo e sujeito fundiram-se num casamento, tornando-se, literalmente, uma só carne.

            Agradar seus interlocutores nunca foi sua prioridade. Comprometido com sua potência divina, era, por muitas vezes, duro e rigoroso com os comportamentos que iam de encontro não às leis da vida – que os judeus tinham muitas, diga-se de passagem –, mas à Vida das leis. Conectado e sintonizado ao verdadeiro espírito da lei, caminhou em liberdade, tudo cumprindo, sem, contudo, ser subjugado por coisa alguma.

            Amigo das festas, dos vagabundos e de toda a pilantragem, comeu e bebeu – a ponto de ser chamado de comilão e beberrão – com ladrões e prostitutas. Recebeu e acolheu esse mundo de tal maneira que o mundo não foi capaz de suportá-lo, enviando-o para a morte na cruz. Morte, aliás, sobre a qual triunfou e sobre a qual nos ensinou.

            O nascimento de Jesus, comemorado nesse dia, é, certamente, muito mais do que a celebração de um mero legado do cristianismo. É a celebração da própria humanidade e da certeza de que o Reino de Deus não é uma meta espiritual a ser alcançada, mas uma realidade que já está em – e entre – nós.

            Assim é que, nesse Natal – momento em que, independente da correspondência ao fato histórico do nascimento de Jesus, milhões de pessoas ao redor do mundo estão vibrando juntas numa mesma intenção – meu desejo sincero é de seguir na trilha deixada pelas pegadas do nazareno. Não seguir os passos do judeu que, há 2000 anos, andou pela Galiléia operando sinais e prodígios. Não tenho a menor pretensão de imitar ou ser como Jesus. Por um motivo óbvio: não sou Jesus. Sou Rodrigo! Essa seria, talvez, a maior traição aos seus ensinamentos.

            De outra forma, minha oração é que, a cada dia, o Natal se faça em mim, realizando o nascimento e o crescimento da consciência crística em meio ao caminhar entre os homens. Para que assim como o beija-flor realiza sua essência quando está junto à sua flor, fazendo aquilo para o que foi criado, também eu – que tenho em mim tanto o Cristo, quanto o beija-flor! – possa experimentar a expressão do meu ser em toda sua plenitude.

Que nossos cristos, flores e beija-flores interiores vivam em todos nós!

Feliz Natal!

domingo, 7 de dezembro de 2014

Notícias de uma escola pública

Quem faz a escola é o aluno. Mentira. Das brabas. Se assim o fosse, a escola certamente, seria um ambiente bem diferente do que é.  Esse tipo de discurso, infelizmente, não passa de uma artimanha desonesta que intenta transferir o ônus da responsabilidade do fracasso de um sistema educacional estruturalmente desumano, uma vez mais, para os mais vulneráveis.
Durante algum tempo da minha vida, tive um interesse muito grande nas questões relacionadas à segurança pública. Especialmente, em relação àquilo que dizia respeito à questão das drogas. Não que eu ache que as drogas sejam, de fato, uma questão de segurança pública. Mas, bizarramente, essa ainda é a nossa realidade.
E lembro-me que um dos primeiros contatos que tive com o tema, que me levou a despertar um olhar mais crítico e mais curioso para o assunto, foi através do documentário Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Salles. Nele, o então capitão do BOPE – e atual garoto propaganda da Rede Globo – Rodrigo Pimentel falava sobre o trabalho de enxugar gelo realizado pela polícia, matando traficantes e apreendendo armas e munições sem que nada de mais radical fosse feito nas engrenagens que sustentavam – e sustentam – de maneira mais sólida o comércio ilegal de drogas. Segundo ele, policiais e traficantes, alienados – muitas vezes de maneira consciente, diga-se de passagem! – de uma percepção mais ampla do sistema político – e econômico, acima de tudo! – que deles se alimenta, engalfinham-se numa guerra que acaba por transformar-se numa guerra particular, onde a sobrevivência cotidiana é a única coisa que realmente importa.
Certamente, não foi à toa que as imagens desse documentário vieram visitar minha mente essa semana. Quem tem qualquer relação com a escola, seja como professor ou como aluno, sabe que a realidade ali vivida, na maior parte das vezes, pouco se diferencia do que relatou o ex-policial em sua fala. Professores e alunos, movidos pelo desespero da sobrevivência e das exigências de uma sociedade que exclui peremptoriamente os que não se adequam aos seus ditames, esquecem-se de que estão ambos servindo a interesses nada nobres e inserem-se numa dinâmica onde passam a se comportar como se inimigos fossem, percebendo a presença do outro não mais como uma possibilidade de troca e aprendizado para ambos – que constituiria a própria ideia de educação –, mas como uma ameaça constante.
E creio que nenhum outro lugar expressa tão bem o desequilíbrio dessa relação patológica quanto a sala de professores. Um lugar que, a priori, deveria ser um polo irradiador de conhecimento, criatividade e, antes de tudo, amor, mas que, paradoxalmente, por inúmeros motivos legítimos, quase sempre assume as características de um quartel general. Frequentar esse recinto é, mais do que uma experiência filosófica, uma experiência terapêutica.
Ali pulula à flor da pele toda sorte de neuroses e medos humanos. Refugiado em sua trincheira, o professor encontra abrigo junto aos seus para recompor as suas forças e preparar-se para as novas investidas. E, como guerra não se faz sem a pressuposição de que o outro, sendo menos legítimo em sua existência, deve ser subjugado, sua principal arma é a repetição do discurso de poder que desqualifica seu inimigo número um: o aluno não quer nada. Assim, parece que todas as questões se resolvem e podemos seguir em paz a nossa vida.
Protegendo-se do verdadeiro confronto com sua incapacidade de perceber a impermanência de um mundo que se atualiza a todo momento e com sua dificuldade de se inserir como designer dessas novas estruturas que vão se desenhando, boa parte dos professores não consegue vislumbrar que sua atitude emocional (sim, como seres livres que somos, em alguma instância, pelo menos, somos responsáveis também pelo que sentimos!) perante o quadro que se apresenta termina sendo o – ou, pelo menos, mais um – elemento conservador das engrenagens que nos aprisionam e que tanto criticamos.
O fato é que, percebendo ou não, o mundo está passando por uma série de rápidas transformações. Transformações paradigmáticas. Nesse sentido, creio que não só será impossível a educação não ser atingida – como já está sendo! – pela energia desse novo tempo, como será, ela mesma, o grande cerne e a força motriz de geração desse novo mundo.
Por isso, a crise da educação e seu falido modelo “escolástico” não me assustam. Analogamente ao que Marx pensou em relação à expansão e aprofundamento do capitalismo como base para uma virada socialista – não, não sou marxista, de esquerda, direita ou qualquer outra tribo político-religiosa –, acredito que o fundo do poço em que se encontra a educação em nosso país, para além de todos os males reais, traz em si um potencial de transformação muito grande. Não temos para onde ir. E, quando chegamos nesse ponto, tomar outra direção já não é mais uma opção. É um imperativo.
Assim, meu desejo é que as muitas salas de professores espalhadas por esse Brasil possam, deixando de ser palco de futilidades e, especialmente, de discursos de ódio e separação, assumir esse papel revolucionário. Enquanto o professor não se perceber como aluno e não se enxergar no aluno, enxergando-o também como professor, nessa unidade indissolúvel que somos, não haverá espaço para uma real educação. Infelizmente, por algum motivo, criamos uma cultura onde acreditamos piamente na figura do professor como aquele que fala, transmitindo conhecimento e na figura do aluno como aquele que ouve, absorvendo o conteúdo. Porém, mais sábio que aquele que aprende conhecimento dos livros e os transmite é o professor que aprende a ler seus alunos.
Já passou da hora de deixarmos para trás o conforto da ingenuidade e encararmos o que todos sabemos: a mudança não virá daqueles que se nutrem do sistema. Nós somos a mudança. E toda mudança começa com um novo olhar. Apesar de todo seu moralismo, não podemos negar que Paulo de Tarso – o fariseu que teve com Cristo uma experiência mística – deixou-nos como legado algumas preciosidades. Em sua carta aos romanos, por exemplo, brindou-nos com a beleza desse ensinamento: Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente. Ele sabia que a transformação do mundo começa não nas estruturas exteriores às quais estamos submetidos, mas no interior de cada um, através das mudanças de percepção.
Portanto, deixando para trás todo espírito de separatividade e fragmentação que nos aliena, sigamos, num só passo junto aos alunos, em amor, por amor e para o amor. Afinal, convenhamos, educar não é nada muito além do que amar.