A boca fala do que o coração tá cheio

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Eterno retorno



Descobri que o fogo é fluido
E quando o vento sopra forte
Labaredas informes
Se dispersam pelo ar

Apesar de tanta intensidade
Não consegue realizar...
Não a sua missão
Que demanda direção

Mas se fogo com ar
Não se pode controlar
Passei a investigar então
O caminho da concentração

Se sobre a chama lanço água
O fogo se apaga
E isso eu sei tão bem
A vida me ensinou também

O que não sabia todavia
E com alegria passo a vislumbrar
É que o fogo em sua jornada
Encontra na terra sua mais fiel aliada

Dela ele veio
E pra ela quer voltar
Permanecendo sem anseio
No descanso do seu seio

(16/02/2013)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Que coisa estranha!

O poeta[1] e o Cristianismo[2] explicam exatamente o contrário, ou, dito com mais precisão, o poeta a rigor não explica nada, pois ele explica o amor e a amizade – em enigmas, ele explica o amor e a amizade como enigmas, mas o Cristianismo dá a explicação eterna do amor. Daí se vê novamente que constitui uma impossibilidade viver ao mesmo tempo de acordo com ambas as explicações, pois a maior oposição possível entre duas explicações consiste decerto em que uma delas não é nenhuma explicação e a outra é a explicação. Amor e amizade, como o poeta os compreende, não contêm, por isso, absolutamente nenhuma tarefa ética. Amor e amizade são uma questão de sorte; é uma felicidade, no sentido poético (e por certo o poeta entende muito da felicidade), a mais alta felicidade está em enamorar-se, encontrar o seu único amado; é uma sorte, quase uma sorte tão grande quanto a outra, encontrar o seu único amigo. A tarefa aqui pode no máximo consistir em ser realmente grato por sua felicidade. Por outro lado, jamais poderá constituir-se numa tarefa o dever encontrar a pessoa amada ou encontrar aquele amigo; isso não pode ser feito, o que aliás o poeta compreende perfeitamente. A tarefa depende então de se a felicidade quer dar a alguém a tarefa; mas isso, afinal de contas, é justamente a expressão para dizer que, no sentido ético, não há uma tarefa. Quando, pelo contrário, se deve amar o próximo, a tarefa existe (a tarefa ética), a qual, por sua vez, é a fonte original de todas as tarefas. Justamente porque o crístico é o verdadeiro ético ele sabe abreviar os raciocínios e cortar fora as introduções panorâmicas, afastar todas as delongas preliminares e libertar de toda perda de tempo; o cristão está imediatamente na tarefa, porque ele a tem consigo. No mundo há uma grande discussão, aliás, sobre o que deveria ser chamado o bem supremo. Mas qualquer que seja o que chamamos assim, por mais diferente que seja, é incrível quanta complexidade se prende ao esforço de alcançá-lo. O Cristianismo, ao contrário, ensina ao homem imediatamente o caminho mais curto para encontrar o que há de mais elevado: fecha tua porta e ora a Deus – pois Deus é que é o bem supremo. E se um homem tiver que sair pelo mundo, sim, aí talvez ele possa ir longe e andar em vão, dar uma volta ao mundo – e em vão, para procurar a pessoa amada ou o amigo. Mas o Cristianismo jamais incorre na falta de mandar uma pessoa andar, nem que seja um único passo, inutilmente; pois quando abrires aquela porta, que tu fechaste para orar a Deus, e saíres, então a primeira pessoa que encontrares é o próximo, que tu deves amar. Que coisa estranha! [...]

[...] De muitas maneiras se confundiu o cristianismo, mas entre elas também está uma em que, ao chamá-lo “o que há de mais elevado”, “de mais profundo”, dava-se a impressão de que o puramente humano se relacionaria com o essencialmente cristão do mesmo modo como o elevado se relaciona com o mais elevado e com o mais elevado de todos. Ai, mas essa é uma linguagem enganadora, que de maneira não verdadeira e imprópria faz o Cristianismo empreendedoramente querer insinuar-se na curiosidade humana e no gosto de suas novidades. Existirá por acaso alguma coisa que o homem como tal, que o homem natural mais cobice do que as coisas mais altas!  Tão logo um vendedor de novidades trombeteia que sua mais nova novidade é o máximo, ganha ávidos adeptos no mundo, que desde os tempos de antanho sempre experimentou uma indescritível preferência por (e sentiu uma profunda necessidade de) ser enganado. Não, as coisas do Cristianismo são certamente superiores e supremas, mas, é bom notar, de tal maneira que ao homem natural elas escandalizam. Aquele que ao definir o essencial do Cristianismo como o bem supremo deixa de lado a determinação intermediária do escândalo, peca contra ele, comete uma temeridade, mais abominável do que se uma honrada mãe de família se vestisse como uma dançarina, ainda mais terrível do que se João, o austero juiz, se trajasse como um janota. O essencialmente cristão é em si mesmo pesado demais, em seus movimentos sério demais para, dançando, mexer-se numa tal leviandade nessa conversação ligeira sobre o alto, o mais alto e o altíssimo. O caminho para o que é essencial no Cristianismo passa por dentro do escândalo. Com isso não se diz que o acesso ao essencialmente cristão teria que ser escandalizar-se dele, pois isso seria de uma outra maneira impedir-se a si mesmo de alcançar o cristão: mas o escândalo vigia no acesso ao essencial do Cristianismo. Feliz daquele que não se escandalizar por causa disso.

E o mesmo acontece com o mandamento de amar ao próximo. Confessa tu também - ou caso te deixe confundido o fato de se falar assim, pois bem, então eu mesmo confessarei que muitas vezes isso me repeliu, e que estou ainda muito longe da ilusão de que cumpro este mandamento, que justamente é um escândalo para carne e sangue, e uma tolice para a sabedoria. Se tu, meu ouvinte, és talvez, como se diz, um sujeito culto, muito bem, eu também sou culto; mas caso tu creias que com a ajuda da "cultura" chega mais perto daquele máximo, aí tu cometes um enorme erro. E aqui se esconde justamente o equívoco, pois cultura todos nós desejamos, e cultura sempre tem na boca a excelência, sim, nenhum pássaro que tenha aprendido uma única palavra fica gritando esta palavra tão incessantemente quanto a cultura grita pelo "bem superior". Mas o Cristianismo não é, de jeito nenhum, o "bem superior" da cultura, e o essencialmente cristão educa justamente através do choque de escândalo. Isso entenderás aqui imediata e facilmente; pois será que a tua cultura te ensinou, ou tu crês que o zelo de algum homem por conquistar a cultura já lhe ensinou a amar o próximo? Ai, ai, será que antes a cultura e o zelo com que ela é perseguida não desenvolvem uma nova espécie da diferença, a diferença entre o cultivado e o inculto? Apenas presta a atenção ao que é dito entre os cultos a respeito do amor natural e da amizade, quanta igualdade em termos de cultura o amigo precisa ter, quão culta e precisamente cultivada num certo modo a moça tem de ser; lê os poetas, que quase nunca conseguem manter a franqueza à poderosa dominação da cultura, dificilmente conseguem acreditar no poder do amor humano para romper as cadeias das diferenças - tu achas que esses discursos, esses poemas, ou que uma vida que se afina com esses discursos e esses poemas aproxima um homem de amar o seu próximo? Vê só, aqui foram excluídas de novo as marcas do escândalo. Pois imagina a pessoa mais culta de todas, aquela a quem todos nós admirando dizemos "ela é tão culta", e pensa então no Cristianismo, que diz a ela "tu deves amar o próximo"! Sim, uma certa urbanidade no trato, uma cortesia frente a todos os homens, uma amistosa condescendência para com os mais humildes, uma conduta franca diante dos poderosos, uma liberdade de espírito belamente dominada: sim, isso é cultura - tu crês que também é amar ao próximo?

O próximo é o igual. O próximo não é a pessoa amada, pela qual tu tens a predileção da paixão. O próximo não é, de jeito nenhum, se tu és alguém culto, a pessoa culta, com quem tu compartilhas a cultura - pois com o próximo tu compartilhas a igualdade dos homens diante de Deus. O próximo não é, de jeito nenhum, alguém que é mais distinto do que tu, isto é, ele não é o próximo na medida em que é mais distinto do que tu, pois amá-lo por ser ele mais distinto pode bem facilmente ser uma preferência, e nesse sentido amor de si mesmo. De maneira alguma o próximo é alguém que é mais humilde do que tu, isto é, na medida em que ele é mais humilde do que tu ele não é o próximo, pois amar alguém porque ele é mais pobre do que tu bem pode ser a condescendência da preferência, e nesse sentido amor de si mesmo.. Não, amar o próximo é igualdade. É estimulante em tua relação para com uma pessoa distinta, que nela tu devas amar o teu próximo; é bom para a tua humildade na relação com o mais humilde, que tu nele não tenhas de amar o mais humilde, mas sim devas amar ao próximo; é libertador, se tu o fazes, pois tu deves fazê-lo.  O próximo é todo e qualquer homem; pois pelas diferenças ele não é o teu próximo, nem mesmo pela igualdade contigo no interior da diferença em relação aos outros homens. Pela igualdade contigo diante de Deus ele é o teu próximo, mas esta igualdade absolutamente todo homem tem, e a tem incondicionalmente.



          Søren Kierkegaard



[1] Poeta aqui refere-se ao homem do estádio estético, preso ao sensual, que – para Kierkegaard – é identificado ao egoístico: aquele que ama por amor de si, transformando o outro em um segundo eu.
[2] Para Kierkegaard, Cristianismo nada tem a ver com um determinado corpus doutrinário de qualquer confissão religiosa instituída. Refere-se aos ensinamentos de Cristo encontrados no Novo Testamento e interpretados mediante sua experiência existencial concreta, podendo ter pontos de contato ou não com as tradições cristãs.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Sagacidade temerária


Enganar-se a si mesmo quanto ao amor, é o mais horrível, é uma perda eterna, para a qual não há reparação nem no tempo nem na eternidade. Pois nos outros casos, por mais diversos que sejam em que se fala do ser enganado no amor, o enganado se relaciona mesmo assim com o amor, e o engano consiste apenas em que o amor não estava onde se acreditava estar; aquele, porém, que se engana a si mesmo excluiu-se a si mesmo e excluiu-se do amor. Também se fala de alguém ser enganado pela vida ou na vida; mas para aquele que numa autoilusão enganou a si mesmo quanto à vida, a perda é irreparável. Entretanto, mesmo aquele que ao longo de toda sua vida foi enganado pela vida, pode receber da eternidade uma copiosa reparação; mas o que se enganou a si mesmo impediu a si mesmo de conquistar o eterno. Aquele que exatamente por seu amor tornou-se uma vítima do engano humano, - oh, o que é mesmo que terá perdido, quando se mostrar na eternidade que o amor permanece, depois que cessou o engano! Aquele, porém, que - engenhosamente - enganou a si mesmo, caminhando sagazmente para a armadilha da sagacidade, ai, mesmo que durante toda a sua vida se considerasse feliz em sua ilusão, o que não terá ele perdido, quando na eternidade se mostrar que ele se enganou a si mesmo! Pois na temporalidade talvez um homem consiga prescindir do amor, talvez tenha êxito em evadir-se ao longo do tempo sem descobrir o auto-engano, talvez tenha sucesso no mais terrível, - numa ilusão, orgulhoso de - permanecer nela; mas na eternidade ele não pode prescindir do amor, e não pode deixar de descobrir que pôs tudo a perder. Portanto, onde a vida é tão séria, onde é tão terrível, senão justamente quando ela, punindo, permite ao voluntarioso fazer o que quiser, de modo que lhe permite ir vivendo, orgulhoso de ser enganado, até que um dia lhe permite reconhecer a verdade, de que se enganou a si mesmo eternamente! Verdadeiramente, a eternidade não deixa que escarneçam dela, antes é assim, que ela nem precisa usar do poder, mas poderosamente usa de um pouco de escárnio para punir de maneira terrível o temerário. Pois o que vincula o temporal e a eternidade, o que é, senão o amor, que justamente por isso existe antes de tudo, e permanece depois que tudo acabou. Mas justamente porque o amor é assim o vínculo da eternidade, e justamente porque a temporalidade e a eternidade são de natureza diferente, justamente por isso o amor pode parecer um fardo para a sagacidade terrena da temporalidade, e por isso na temporalidade pode parecer ao homem sensual um imenso alívio lançar para longe de si este vínculo da eternidade. O que se enganou a si mesmo crê, certamente, poder consolar-se, sim, até ter mais do que vencido; para ele se oculta, na presunção da tolice, o quão sem consolo é sua vida. Que ele "parou de se entristecer" não queremos negar-lhe; mas o que é que isso lhe adianta, se a salvação justamente consistiria em começar a entristecer-se seriamente sobre si mesmo!
O que se enganou a si mesmo crê talvez até poder consolar outros que foram vítimas do engano da infidelidade; mas que loucura, se aquele que já sofreu dano no eterno quer curar aquele que no máximo está doente para a morte! O que se enganou a si mesmo crê talvez até, por força de uma estranha autocontradição, ser solidário com o infeliz que foi enganado. Mas se prestares atenção ao seu discurso consolador e à sua sabedoria curativa, vais reconhecer o amor nos frutos: no amargor do escárnio, na agudeza dos argumentos, no espírito envenenado da desconfiança, no frio mordente do endurecimento, ou seja, nos frutos se reconhece que aí não existe nenhum amor.

Søren Kierkegaard