– Escuta, não te
assustes: lembra-te que eu comi do fruto proibido e no entanto não fui
fulminada pela orgia de ser. Então, ouve: isso quer dizer que me salvarei ainda
mais do que eu me salvaria se não tivesse comido da vida... Ouve, por eu ter
mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita. A
identidade pode ser perigosa por causa do intenso prazer que se tornasse apenas
prazer. Mas agora estou aceitando amar a coisa!
E não é
perigoso, juro que não é perigoso.
Pois o estado de
graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos. Todo o mundo está em
estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em
graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a
conhecer isso em si. Mas não há perigo de perdição, agora eu sei: o estado de
graça é inerente.
- Escuta. Eu
estava habituada somente a transcender. Esperança para mim era adiamento. Eu
nunca havia deixado minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa
porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me
acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu
acreditava tão pouco no que existe que adiava a atualidade para uma promessa e
para um futuro.
Mas descubro que
não é sequer necessário ter esperança.
É muito mais
grave. Ah, sei que estou de novo mexendo no perigoso e que deveria calar-me
para mim mesma. Não se deve dizer que a esperança não é necessária, pois isto
poderia vir a se transformar, já que sou fraca, em arma destruidora. E para ti
mesmo, em arma utilitária de destruição.
Eu poderia não
entender e tu poderias não entender que prescindir da esperança - na verdade
significa ação, e hoje. Não, não é destruidor, espera, deixa eu nos entender.
Trata-se de assunto proibido não porque é ruim mas porque nós nos arriscamos.
Sei que se eu
abandonar o que foi uma vida toda organizada pela esperança, sei que abandonar
tudo isso - em prol dessa coisa mais ampla que é estar vivo - abandonar tudo
isso dói como separar-se de um filho ainda não nascido. A esperança é um filho
ainda não nascido, só prometido, e isso machuca.
Mas sei que ao
mesmo tempo quero e não quero mais me conter. É como na agonia da morte: alguma
coisa na morte quer se libertar e tem ao mesmo tempo medo de largar a segurança
do corpo. Sei que é perigoso falar na falta de esperança, mas ouve - está
havendo em mim uma alquimia profunda, e foi no fogo do inferno que ela se
forjou. E isso me dá o direito maior: o de errar.
Escuta sem susto
e sem sofrimento: o neutro do Deus é tão grande e vital que eu, não agüentando
a célula do Deus, eu a tinha humanizado. Sei que é horrivelmente perigoso
descobrir agora que o Deus tem a força do impessoal - porque sei, oh eu sei!
que é como se isso significasse a destruição do pedido!
E é como se o
futuro parasse de vir a existir. E nós não podemos, nós somos carentes.
Mas ouve um
instante: não estou falando do futuro, estou falando de uma atualidade
permanente. E isto quer dizer que a esperança não existe porque ela não é mais
um futuro adiado, é hoje. Porque o Deus não promete. Ele é muito maior que
isso: Ele é, e nunca pára de ser. Somos nós que não agüentamos esta luz sempre
atual, e então a prome temos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo
e já. O presente é a face hoje do Deus. O horror é que sabemos que é em vida
mesmo que vemos Deus. É com os olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a
face da realidade para depois de minha morte - é por astúcia, porque prefiro
estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim
como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo.
Sei que o que estou
sentindo é grave e pode me destruir. Porque - porque é como se eu estivesse me
dando a notícia de que o reino dos céus já é.
E eu não quero o
reino dos céus, eu não o quero, só agüento a sua promessa! A notícia que estou
recebendo de mim mesma me soa cataclísmica, e de novo perto do demoníaco. Mas é
só por medo. É medo. Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que
passar a viver, e não apenas a me prometer a vida. E este é o maior susto que
eu posso ter. Antes eu esperava. Mas o Deus é hoje: seu reino já começou.
E seu reino, meu
amor, também é deste mundo. Eu não tinha coragem de deixar de ser uma promessa,
e eu me prometia, assim como um adulto que não tem coragem de ver que já é
adulto e continua a se prometer a maturidade.
E eis que eu estava
sabendo que a promessa divina de vida já está se cumprindo, e que sempre se
cumpriu. Anteriormente, só de vez em quando, eu era lembrada, numa visão
instantânea e logo afastada, de que a promessa não é somente para o futuro, é
ontem e é permanentemente hoje: mas isso me era chocante. Eu preferia continuar
pedindo, sem ter a coragem de já ter.
E eu tenho. Eu
sempre terei. É só precisar, que eu tenho. Precisar não acaba nunca pois
precisar é a inerência de meu neutro. Aquilo que eu fizer do pedido e da
carência esta será a vida que terei feito de minha vida. Não se colocar em face
da esperança não é a destruição do pedido! e não é abster-se da carência. Ah, é
aumentá-la, é aumentar infinitamente o pedido que nasce da carência.
[...] O leite da
vaca, nós o bebemos. E se a vaca não deixa, usamos de violência. (Na vida e na
morte tudo é lícito, viver é sempre questão de vida-e-morte.) Com Deus a gente
também pode abrir caminho pela violência. Ele mesmo, quando precisa mais
especialmente de um de nós, Ele nos escolhe e nos violenta.
Só que minha
violência para com Deus tem que ser comigo mesma. Tenho que me violentar para
precisar mais. Para que eu me torne tão desesperadamente maior que eu fique
vazia e necessitada. Assim terei tocado na raiz do precisar. O grande vazio em
mim será o meu lugar de existir; minha pobreza extrema será uma grande vontade.
Tenho que me violentar até não ter nada, e precisar de tudo; quando eu
precisar, então eu terei, porque sei que é de justiça dar mais a quem pede
mais, minha exigência é o meu tamanho, meu vazio é a minha medida. Também se
pode violentar Deus diretamente, através de um amor cheio de raiva.
E Ele compreenderá
que essa nossa avidez colérica e assassina é na verdade a nossa cólera sagrada
e vital, a nossa tentativa de violentação de nós mesmos, a tentativa de comer
mais do que podemos para aumentarmos artificialmente a nossa fome - na exigência
de vida tudo é lícito, mesmo o artificial, e o artificial é às vezes o grande
sacrifício que se faz para se ter o essencial.
Mas, já que somos pouco e, portanto
só precisamos de pouco, por que então não nos basta o pouco? É que adivinhamos
o prazer. Como cegos que tateiam, nós pressentimos o intenso prazer de viver.
E se pressentimos,
é também porque nós nos sentimos inquietamente usados por Deus, sentimos
inquietantemente que estamos sendo usados com um prazer intenso e ininterrupto
- aliás, a nossa salvação por enquanto tem sido a de pelo menos sermos usados,
não somos inúteis, somos intensamente aproveitados por Deus; corpo e alma e
vida são para isso: para a intertroca e o êxtase de alguém. Inquietos, sentimos
que estamos sendo usados a cada instante - mas isso acorda em nós o inquietante
desejo de também usar.
E Ele não só deixa,
como necessita ser usado, ser usado é um modo de ser compreendido. (Em todas as
religiões Deus exige ser amado.) Para termos, falta-nos apenas precisar.
Precisar é sempre o momento supremo. Assim como a mais arriscada alegria entre
um homem e uma mulher vem quando a grandeza de precisar é tanta que se sente em
agonia e espanto: sem ti eu não poderia viver. A revelação do amor é uma
revelação de carência - bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o
dilacerante reino da vida.
Se abandono a
esperança, estou celebrando a minha carência, e esta é a maior gravidade do
viver. E, porque assumi a minha falta, então a vida está à mão. Muitos foram os
que abandonaram tudo o que tinham, e foram em busca da fome maior.
Ah perdi a timidez:
Deus já é. Nós já fomos anunciados, e foi a minha própria vida errada quem me
anunciou para a certa. A beatitude é o prazer contínuo da coisa, o processo da
coisa é feito de prazer e de contato com aquilo de que se precisa gradualmente
mais. Toda a minha luta fraudulenta vinha de eu não querer assumir a promessa
que se cumpre: eu não queria a realidade.
Pois ser real é
assumir a própria promessa: assumir a própria inocência e retomar o gosto do
qual nunca se teve consciência: o gosto do vivo.
Clarice Lispector