A boca fala do que o coração tá cheio

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Nilo Batista: do 11 de setembro às UPPs


Tudo já foi dito sobre a militarização da segurança pública. Ela irrompe no entorno histórico do 11 de setembro, com a comistão de dois estatutos jurídicos: o da guerra e o da justiça penal. Antes que nos refizéssemos da surpresa de uma guerra preventiva, surgiram as guerras punitivas, simultaneamente às penas militarizadas (daquelas internações por três meses de adolescentes rebeldes às supermaxes, com menção honrosa para nosso RDD). A teoria da guerra justa acabou legitimando guerras justiceiras. A concepção militar de ocupação foi transferida para a segurança cidadã, e as zonas pobres se convertem em zonas ocupadas – e eis a fina flor da sociologia entregando a medalha de prata às UPP’s. Por um caminho teórico muito prestigiado na academia, o inimigo migra das negociações diplomáticas, dos campos de batalha e das celeridades da lei militar de guerra para o direito penal comum. A tortura é permitida (até por decreto), largamente exercida (seja clandestinamente, como em nossas carceragens, seja ostensivamente, como em Guantánamo) e até mesmo aplaudida (por exemplo na estreia de Tropa de Elite). As premências do assalto militar a uma posição inimiga chegaram ao processo penal. A categoria jurídico-penal do terrorismo transita agilmente entre o atentado à soberania e a infração penal que o encarna: a campanha pela (desnecessária) criminalização do terrorismo coincide com as suspeitas sobre a tríplice fronteira … Tudo já foi dito.

Mas no jornal de hoje uma Comissão Parlamentar interpela o Ministro da Defesa sobre um cântico entoado por soldados do mal afamado 1º Batalhão de Polícia do Exército, no qual preconizavam “bate, espanca, quebra os ossos, bate até morrer”. A Comissão poderia, com bom direito, pedir esclarecimentos sobre ter sido este cântico estúpido vociferado na rua Barão de Mesquita, onde se sedia o batalhão, incrustrado em pleno bairro da Tijuca. Os vizinhos, como é de sabença geopolítica militar, devem ser bem tratados, são sempre aliados preferenciais. E os vizinhos deste batalhão não precisam de nenhum estímulo novo para temer sua soldadesca, para acreditar, sim, que eles são bem capazes de bater até morrer. Por que apregoá-lo aos berros?

Tudo já foi dito, porém essa historieta talvez nos recorde algo importante: no plano das relações externas, o inimigo existe, no sentido de que sua criação é possível. Não o queremos no direito penal, rejeitamos este imigrante mal documentado, com um passaporte falso alemão (expedido pelo nazi-funcionalismo) e outro passaporte falso latinoamericano (expedido pelos saudosistas do “inimigo interno”). Mas o inimigo é o personagem central do direito penal militar de guerra. E se os inimigos viessem para “degolar nossos filhos”, tudo o que esperaríamos dos boquirrotos mal-educados da Barão de Mesquita é que, no mínimo, batessem neles. Não há planejamento, estratégia e eficiência militar sem o estudo – sempre construtivo – do inimigo. Em suma, a existência de Forças Armadas, com as importantes funções que lhes atribuiu a Constituição, pressupõe a possibilidade da existência de guerra e portanto do inimigo.

É exatamente por isso, pela peculiaridade do adestramento militar para a violência bélica, que as Forças Armadas devem ser mantidas o mais distante possível da gestão policial da ordem pública.

(*) Nilo Batista é jurista e ex-governador do Rio de Janeiro.

Fonte: DAR

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Portas reabertas para o LSD


Droga símbolo dos anos 1960, o ácido lisérgico está de volta às pesquisas acadêmicas, com resultados promissores para a cura de problemas como a depressão


MARCELO OSAKABE E MARCELO MOURA

Califórnia, Estados Unidos, 1971. Um detento da prisão de San Luis Obispo sobe até o telhado e, pendurado em cabos de telefonia, atravessa o pátio e pula o muro. Do lado de fora, um carro o aguardava. Dias depois, ele chegou à Argélia, sob os cuidados do grupo revolucionário Panteras Negras. O fugitivo era Timothy Leary, doutor em psicologia formado pela Universidade Berkeley e professor de Harvard. Ou, nas palavras do então presidente dos EUA, Richard Nixon, “o homem mais perigoso da América”. Leary foi o principal ativista dos usos medicinais e recreativos do alucinógeno LSD, na década de 1960. Quando a droga foi proibida pelo governo americano em 1970, até para pesquisas científicas, Leary decidiu seguir sua campanha como um fora da lei. A imagem de Leary se confunde com a do ácido: aceito socialmente nos anos 1950 e 1960, maldito a partir da década de 1970 – e atualmente em processo de redenção. Há cerca de 20 estudos em andamento no mundo sobre LSD, um renascimento do uso terapêutico da droga.

Leary entrou em contato com o LSD como pesquisador da Universidade Harvard, em 1960. Ele integrou os esforços para explorar o potencial do LSD-25 (25ª variação descoberta do Lysergsäurediethylamid, que em alemão significa “dietilamida do ácido lisérgico”), droga sintetizada pelo cientista suíço Albert Hoffman em 1938. Em 1943, Hoffman ingeriu alguns cristais da substância e descobriu suas propriedades alucinógenas. “Fiquei tonto”, disse. “De olhos fechados, via uma torrente de cores, como um caleidoscópio.” Dono da patente da substância, o laboratório suíço Sandoz distribuiu a droga para pesquisadores, como Leary, em busca de utilidades que motivassem seu comércio. Não havia nada de subversivo nisso. No fim dos anos 1960, mais de 700 pesquisas no mundo avaliavam o emprego de alucinógenos como o LSD em terapias contra esquizofrenia e depressão, além de aumento da criatividade. Só o serviço secreto de inteligência dos Estados Unidos (CIA) conduziu mais de 400 projetos com drogas, a maior parte com LSD, ao custo estimado em US$ 25 milhões, segundo um artigo de 1977 da revista especializada Psicology Today.

Na forma de cápsulas e ampolas, com o nome Delysid, o ácido chegou às farmácias. Como ocorre hoje com remédios como o Rivotril, a exigência de receita médica era mera formalidade. Psicólogos e pacientes estavam ávidos por experimentar o medicamento capaz de abrir as “portas da percepção” – expressão associada ao efeito dos alucinógenos que batizou um livro do escritor Aldous Huxley e inspirou o nome da banda The Doors. Os atores Jack Nicholson e Cary Grant se ofereceram como voluntários das pesquisas. Grant disse que se tornou uma nova pessoa graças ao LSD. “Encontrei quem eu era por trás de todos os disfarces, hipocrisias e vaidades. Me desfiz deles, camada por camada.” Segundo a revista americana Vanity Fair, cerca de 40 mil pessoas no mundo todo experimentaram o LSD entre 1950 e 1965.

Leary tornou-se um apóstolo do LSD depois de uma viagem ao México, em 1960. “Foi a experiência religiosa mais profunda de minha vida”, disse. Ele viu nas drogas o potencial de curar pessoas e a própria sociedade. Pela universidade, pesquisou a droga em detentos de uma colônia penal e num grupo de seminaristas. Os estudos de Leary foram interrompidos em 1963, quando a diretoria de Harvard descobriu que estudantes consumiam o estoque da droga destinado à pesquisa. Leary foi expulso. Fora da academia, passou a defender abertamente o uso recreativo da droga, circulando entre celebridades da contracultura, como os escritores Aldous Huxley, Jack Kerouac e Allen Ginsberg.

A pregação de Leary influenciou os Beatles, que devem algumas canções ao LSD. “‘Day tripper’ é uma delas”, disse Paul McCartney, em 2004. “‘Lucy in the sky’ é outra, obviamente.” Autor de “Lucy in the sky with diamonds” (“Lucy no céu com diamantes”), John Lennon, em vida, negou que o título da música fosse uma referência às iniciais LSD. “Lucy era uma amiga de meu filho Julian”, disse. Mas Lennon não escondia sua intimidade com o ideólogo do ácido. Leary é uma das vozes na gravação do hino pacifista Give peace a chance, de Lennon. O LSD inspirou outras estrelas, como Eric Clapton e Jim Morrison, e desconhecidos que chegariam à fama décadas depois, como o fundador da Apple, Steve Jobs. “Tomar LSD foi uma das duas ou três coisas mais importantes de minha vida”, disse Jobs.

O consumo desmedido de alucinógenos, defendido por Leary, era temerário. Sem limites, mesmo substâncias legalizadas, como bebidas alcoólicas, trazem consequências desastrosas. “O LSD pode danificar o sistema neurológico, se for tomado sem responsabilidade”, diz Amanda Beckley, criadora da fundação Beckley, que apoia pesquisas com drogas alucinógenas. “A dose de LSD era cinco a dez vezes maior que a aplicada hoje.” Não tardou para que relatos de pessoas que pularam de prédios ou desenvolveram algum tipo de psicose começassem a ganhar visibilidade. Em março de 1966, a revista americana Life publicou na capa a reportagem “LSD: a ameaça explosiva da droga que saiu do controle”. Quando Richard Nixou conquistou a Presidência dos Estados Unidos, em 1968, o combate às drogas foi um dos motes de sua campanha vitoriosa. “Espero salvar centenas de milhares de vidas que, expostas ao vício, poderiam ser moral, física e mentalmente destruídas”, afirmou Nixon, em 1969, ao propor ao Congresso americano uma lei mais dura contra os entorpecentes.

Aprovada em 1970, a Comprehensive Drug Abuse Prevention and Control Act enquadrou o LSD e outros alucinógenos na categoria das drogas mais perigosas, proibidas não apenas para consumo, como também para pesquisa. No ano seguinte, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu proibição semelhante, em nível mundial. “Nixon buscou erradicar o consumo de drogas proibindo até a pesquisa e o uso medicinal”, diz Pedro Abramovay, professor de Direito da Faculdade Getulio Vargas. A proibição na ONU acabou por igualar traficantes e cientistas e fechou as torneiras de recursos em países onde ainda era permitido pesquisar. “Depois de 1972, ficou impossível conseguir financiamento para novos estudos”, afirma Richard Doblin, doutor em políticas públicas pela Universidade Harvard e fundador da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps).

As portas da pesquisa com alucinógenos só foram reabertas na década de 1990, quando a Food and Drug Administration (FDA), autoridade de saúde dos Estados Unidos, igualou a classificação das drogas psicodélicas à de substâncias como ópio e anfetamina, livres para estudo. Os resultados da liberação começam a aparecer. Em 2011, o doutor em psiquiatria Peter Gasser concluiu uma pesquisa de LSD no tratamento para depressão (leia o quadro ao lado). Foi o primeiro estudo completo, após quatro décadas de proibição. “Diante de efeitos benéficos tão evidentes, é intrigante por que terapias com LSD foram tão abertamente ignoradas”, afirmou o neurocientista norueguês Pal-Orjan Johansen, autor de uma pesquisa sobre o uso do LSD no combate ao alcoolismo.

Uma das explicações para a longa proibição do LSD é a influência decisiva das questões morais no curso das descobertas científicas. A história do LSD é um capítulo do histórico conflito entre o racionalismo científico e os dogmas que permeiam o senso comum da sociedade. Quando propôs a proscrição do LSD, Nixon tinha argumentos objetivos a seu favor, como altos índices de violência associada a drogas, mas não escondeu que aquela era, sobretudo, uma cruzada moral. São essas questões que fazem os governos interferir no trabalho dos laboratórios, autorizando e proibindo procedimentos, concedendo e negando recursos. Outro exemplo da influência das questões morais na evolução da ciência é a polêmica na autorização de pesquisas com células-tronco embrionárias. Promissoras no tratamento de doenças hoje incuráveis do sistema nervoso, mas combatidas por religiosos, elas só foram liberadas no Brasil em 2008.

O debate sobre moral e os limites da ciência é necessário, mas traz lentidão e até prejuízos ao desenvolvimento científico. As duas décadas de intervalo entre proibição e liberação das pesquisas com drogas alucinógenas não significaram apenas um atraso no desenvolvimento de novas terapias. Os estudos que poderiam ter ocorrido na década de 1970 jamais serão retomados, uma vez que as patentes dessas substâncias já caíram em domínio público. “Nenhum grande laboratório financia pesquisas sem a perspectiva de monopolizar o mercado”, diz Amanda. “Eles não querem descobrir no LSD um rival para remédios que já têm.”

As novas pesquisas com alucinógenos são financiadas por doadores sem finalidades comerciais, como o cantor Sting ou o fundador do Napster, Sean Parker. Gente de mente e bolsos abertos também bancou os últimos dias de Timothy Leary. Após sua fuga espetacular da prisão, em 1971, ele entrou em acordo com o governo americano, cumpriu pena de três anos e moderou suas ações. Morto em 1996, vítima de câncer, ele durou o bastante para ver a retomada dos estudos com a droga a que dedicou a vida. Após a cremação, 7 gramas de suas cinzas foram embarcados no foguete espacial Pegasus, que ficou em órbita por seis anos até se desintegrar na atmosfera. Timothy e seus cristais de LSD ficaram no céu, como a Lucy da música psicodélica.




Fonte: Época

quarta-feira, 11 de julho de 2012

SOBRE A NATUREZA DO EROS NO BANQUETE DE PLATÃO

Introdução:

Talvez nenhum outro conceito filosófico tenha sido tão fortemente difundido no imaginário popular quanto a ideia do amor platônico. Entretanto, se por um lado é interessante essa aproximação entre o mundo filosófico – muitas vezes um ambiente extremamente esotérico – e a vivência cotidiana das pessoas, por outro, deve-se tomar cuidado para que conceitos tão caros à história da filosofia não se degenerem a ponto de perderem totalmente qualquer ponto de contato com a intenção original de seus autores.
Nesse sentido, procurando comunicar de forma acessível a quem quer que tenha interesse, sem, contudo, abrir mão de um certo rigor acadêmico, esse estudo pretende apresentar, de forma introdutória, algumas considerações sobre a natureza do amor na obra O Banquete, de Platão. Para isso, primeiramente, será introduzida a estruturação do diálogo e algumas considerações iniciais; em um segundo momento, explorar-se-á a natureza do eros propriamente dita; e, por fim, será oferecida uma breve conclusão com as considerações finais.