A boca fala do que o coração tá cheio

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Vai ter com os cães, homem brabo!


Que os cães falam não é muita novidade. Alguns hoje, inclusive, falaram comigo. Falaram, não. Deram-me uma lição, eu diria. Na verdade, acho mesmo é que não deram nada. Foram apenas cães. Sua simplicidade não combina com lições. Eu é que – nas minhas muitas pendências existenciais – fiquei a significar um monte de coisas. Por enquanto, pelo menos, ainda me valho destes joguinhos da razão para explicar a vida. Acredito que no futuro – não no futuro mesmo, mas na eternidade que pode se realizar a qualquer momento – não mais precisarei deles. Nem dos joguinhos, nem das lições. Igualado aos cães, também eu, simplesmente serei.
            O dia era dos mais belos que já vi. Como todos os outros em que vou à praia, aliás. A praia tem esse efeito sobre mim. Desperta-me um senso estético que me faz encantar revendo e revivendo experiências já muitas vezes experimentadas. Mistério. Só isso, nada mais.
            O mar muito azul, a magnificência dos Dois Irmãos, o solzinho do outono (o verão é o verão, é verdade, mas a praia do outono/inverno tem um quê de especial) e o cafuné ininterrupto do vento a acariciar o corpo todo. Vou parar. Já disse que é mistério. Outra coisa que aprendi é que tem que ser muito bobo para se descrever ou explicar mistérios. Mistério se vive. Só. E calado.
           Voltemos aos cães. Oxalá os homens fossem ter mais com os cães. Ih! Acho que é a primeira vez que vejo a palavra oxalá escrita de meu próprio punho. Oxalá, então, e voltemos aos cães.
         Eram vários. Não me lembro quantos. Peludos, não-peludos, grandes e pequenos. Corriam pela areia com uma alegria sólida. Não pareciam preocupados ou ansiosos. Era alegria de tipo pura. Quando paravam de correr, rolavam na areia com uma deliciosidade que pouco vi entre os homens. E, depois, aquela bela sacudida! Bolinha para lá, bolinha para cá. Tibum! Eles adoram mergulhar. Sabem o que é bom. Eles, eu digo, os mansos.
            Sim, os mansos. Porque com os cães, assim como com os homens, há os mansos e os não-mansos: os brabos. E também lá havia um brabo. Foi, então, que descobri que, também assim como com os homens, os cães brabos são menos felizes.
            Descobri que ser brabo é a melhor maneira de morder a própria liberdade. O brabo ataca. E, atacando, não pode ficar solto. Sua existência se reduz a um pequeno círculo que tem o raio da coleira, que ele mesmo – sendo brabo – impõe a si. Correr não pode, brincar ninguém quer com ele – ele morde! – e o pior: ele mesmo não parece se sentir atraído por nada disso. Seu desejo é atacar.
             Com os olhos fitados nele, sua miséria, invariavelmente, fez-me mergulhar na minha própria. A solidez pujante da alegria dos cães mansos se transformara na solidez pesada e incômoda de uma coleira no pescoço. No meu pescoço. Que tenho eu a ver com este pobre prisioneiro? Por que, tantas vezes, ataco tanto? Não, não cairei nessa. Não de novo. Essa brincadeira já não tem mais graça. Desta vez, acho que vou fazer diferente: quero apenas decidir. Decidir ser manso. Que os cães felizes me ajudem!