Diferente
de outros autores que geralmente apresentam a dúvida cartesiana simplesmente
como um método de especulação, Hannah Arent entende que esta teria um alcance
muito mais abrangente. Para a autora, o tipo de dúvida proposto por Descartes
tinha um caráter muito mais inclusivo, visto que objetivaria um fim fundamental
demais para ser motivada por conteúdos assim tão concretos (Cf. ARENDT, 1981, p.286).
No
entendimento da filósofa alemã, a dúvida estava para a modernidade, assim como
o thaumazein estava para o pensamento
grego. A invenção do telescópio teria tido uma importância fundamental nessa
nova atitude diante do mundo e da realidade. Enquanto os gregos, na busca pelo
conhecimento, apresentavam uma postura de assombro diante de tudo o que é como
é, valorizando a observação, a contemplação e a especulação, Descartes, agora
alertado pelo enganoso conhecimento dos sentidos e da própria razão, revelado
pela nova descoberta, introduz a dúvida como a única certeza capaz de levar o homem
a um conhecimento que seja fixo e seguro.
“A antiga oposição entre a verdade sensual e a
verdade racional, entre a capacidade inferior dos sentidos e a capacidade
superior da razão no tocante à apreensão da verdade, perdeu sua importância ao
lado desse desafio, ao lado da óbvia implicação de que a verdade e a realidade
não são dadas, que nem uma nem outra se apresenta como é, e que somente na
interferência com a aparência, na eliminação das aparências, pode haver
esperança de atingir-se o verdadeiro conhecimento” (Ibidem, p. 287).
Assim, marcada a separação total
entre o Ser e a Aparência, a dúvida cartesiana terá como principal característica a
sua universalidade, questionando todo e qualquer pensamento ou experiência. É
interessante perceber que Descartes não duvidava simplesmente de que a
compreensão humana tivesse acesso a toda verdade ou que a visão do homem pudesse
tudo ver. Assim como a inteligibilidade à compreensão humana não constituía
demonstração da verdade, a visibilidade também não seria suficiente para provar
a realidade (Cf. Ibidem, p. 288). Dessa maneira, a dúvida proposta por Descartes é
uma dúvida que duvida da própria existência da verdade, ou, pelo menos, do
tradicional conceito de verdade, que “valera-se do duplo pressuposto de que o
que realmente existe se revelará por si mesmo e que as faculdades humanas são
adequadas para recebê-lo” (Ibidem, p.
288).
Diante
dessa nova percepção do mundo, o que se segue é que uma nova moralidade se constrói.
Paradoxalmente, com a perda da certeza da verdade, daquilo que se recebia pela
razão ou pelo testemunho dos sentidos, o homem moderno acabou por desenvolver
um maior zelo pela veracidade. E até mesmo na esfera religiosa, onde não se
deixa de crer na salvação, mas perde-se a certeza dela, percebe-se um maior
cuidado em relação à prática de boas obras. Em sentido estrito, é “como se o
homem só pudesse dar-se ao luxo de mentir enquanto estava seguro da existência
imutável da verdade e da realidade objetiva, que certamente sobreviveriam e
derrotariam as suas mentiras” (Ibidem,
p.290).
Não
é de se espantar também que as sociedades eruditas e as Academias Reais tenham
se tornado os grandes centros de influência moral na modernidade (Cf. Ibidem,
p.291). As próprias virtudes cardeais modernas – como o sucesso, a
industriosidade e a veracidade – acabaram por moldar toda uma nova forma de
fazer ciência.
“Onde antes a verdade residira no tipo de theoria
que, desde os gregos, significara a contemplação do observador que se
preocupa com a realidade aberta diante de si, a questão do sucesso passou a
predominar, e a prova da teoria passou a ser uma prova prática – ou funciona ou
não. O que era teoria virou hipótese e o sucesso da hipótese virou verdade” (Ibidem, p.291).
Com isso, mesmo que a verdade não existisse, havia o entendimento de que
o homem poderia ser veraz, assim como poderia ser confiável ainda que não
existisse propriamente uma certeza confiável. Em um mundo onde tudo tinha se tornado duvidoso,
a única certeza que restou foi a dúvida. Assim, a formulação clássica “cogito ergo sum” foi entendida por Hannah Arendt mais como uma
generalização de um “dubito ergo sum”
do que uma confiança exacerbada no pensamento. Afinal, foi através da certeza
da dúvida que Descartes concluiu que os processos ocorridos na mente humana
possuem certeza própria e, por isso, tornam-se aptos a serem objetos de
investigação na introspecção.
Referências
bibliográficas:
-
ARENDT, Hannah. A
condição humana. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1981.