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domingo, 2 de setembro de 2012

A inversão de posições entre a Contemplação e a Ação *

Talvez a mais grave consequência espiritual das descobertas da era moderna e, ao mesmo tempo, a única que não podia ser evitada, uma vez que seguiu muito de perto a descoberta do ponto de vista arquimediano e o resultante advento da dúvida cartesiana, foi a inversão da ordem hierárquica entre a vita contemplativa e a vita activa.

Para que compreendamos quão fortes eram os motivos dessa inversão, precisamos em primeiro lugar nos desfazer do atual preconceito que atribui o desenvolvimento da ciência moderna, vista sua aplicabilidade, a um desejo pragmático de melhorar as condições da vida humana na terra. A história mostra claramente que a moderna tecnologia resultou não da evolução daquelas ferramentas que o homem sempre havia inventado para o duplo fim de atenuar o labor e de erigir o artifício humano, mas exclusivamente da busca de conhecimento inútil, inteiramente desprovido de senso prático. Assim, o relógio, um dos primeiros instrumentos modernos, não foi inventado para os fins da vida prática, mas exclusivamente para a finalidade altamente “teórica” de realizar certos experimentos com a natureza. É certo que esta invenção, logo que a sua utilidade prática foi percebida, mudou o ritmo e a própria fisionomia da vida humana; mas isto, do ponto de vista dos seus inventores, foi mero acidente. Se tivéssemos de confiar somente nos chamados instintos práticos do homem, jamais teria havido qualquer tecnologia digna de nota; e, embora as invenções técnicas hoje existentes tragam em si certo ímpeto que, provavelmente, gerará melhoras até certo ponto, é pouco provável que o nosso mundo condicionado à técnica pudesse sobreviver, e muito menos continuar a desenvolver-se, se conseguíssemos nos convencer de que o homem é, antes de tudo, uma criatura prática.

Seja como for, a experiência fundamental que existe por trás da inversão de posições entre a contemplação e a ação foi precisamente que a sede humana de conhecimento só pôde ser mitigada depois que o homem depositou sua fé no engenho das próprias mãos. Não que o conhecimento e a verdade já não fossem importantes, mas só podia ser atingidos através da “ação”, e não da contemplação. Foi um instrumento, o telescópio, obra da mão do homem, que finalmente forçou a natureza, ou melhor, o universo a revelar seus segredos. As razões para que se confiasse no fazer e se desconfiasse do contemplar ou observar tornaram-se ainda mais fortes após o resultado das primeiras pesquisas ativas. Desde que o ser e a aparência se divorciaram, quando já não se esperava que a verdade se apresentasse, se revelasse e se mostrasse ao olho mental do observador, surgiu uma verdadeira necessidade de buscar a verdade atrás das aparências enganosas. Realmente, nada merecia menos fé para quem quisesse adquirir conhecimento e aproximar-se da verdade que a observação passiva ou a mera contemplação. Para que tivesse certeza, o homem tinha que verificar e, para conhecer, tinha que agir. A certeza do conhecimento só podia ser atingida mediante dupla condição: primeiro, que o conhecimento se referisse apenas àquilo que o próprio homem havia feito – de sorte que o ideal passava a ser o conhecimento matemático, no qual se lida apenas com entidades produzidas pela própria mente – e, segundo, que o conhecimento fosse de tal natureza que só pudesse ser verificado mediante ação adicional.

Desde então, a verdade científica e a verdade filosófica separaram-se de vez; a verdade científica não só não precisa ser eterna, como não precisa sequer ser compreensível ou adequada ao raciocínio humano. Muitas gerações de cientistas foram necessárias antes que a mente humana desenvolvesse suficiente ousadia para encarar frontalmente esta implicação da modernidade. Se a natureza e o universo são produtos de um fabricante divino, e se a mente humana é incapaz de compreender aquilo que não tenha sido feito pelo próprio homem, então o homem não pode de modo algum esperar aprender da natureza coisa alguma que não possa compreender. Pode ser capaz, graças ao seu engenho, de descobrir e até mesmo imitar os métodos dos processos naturais, mas isto não significa que esses métodos tenham sentido para ele – não precisam ser inteligíveis. De fato, nenhuma revelação divina supostamente supra-racional e nenhuma verdade filosófica supostamente impenetrável jamais ofendeu tanto a razão humana como certos resultados da ciência moderna. Podemos realmente dizer com Whitehead: “Só Deus sabe que aparente tolice não virá a ser verdade amanhã”.


* Extraído de: ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2000.